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Elisabeth Lopes

Advogada, especializada em Direito do Trabalho, pedagoga e Doutora em Educação

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STF e o acerto histórico: a justiça que lavou a alma do Brasil

Os votos de Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cristiano Zanin e Cármen Lúcia representaram um alívio coletivo, quase uma catarse de anos de dor

Primeira Turma do STF durante sessão de abertura do julgamento da trama golpista (Foto: Antonio Augusto/STF)

Apesar do exótico e incompreensível voto do Ministro Luiz Fux, que se revelou não apenas estranhamente contraditório, mas um gesto de complacência extrema frente a crimes contra a democracia, a Justiça prevaleceu no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de mais sete ex-integrantes de seu governo pela tentativa de golpe de Estado. 

A posição de Fux provocou perplexidade pelas fartas incongruências incontornáveis. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), da qual ele faz parte, já havia aceitado de forma unânime a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), reconhecendo a gravidade inequívoca dos atos golpistas. Sua postura ambígua, que oscila entre o reconhecimento prévio da materialidade dos crimes e a posterior relativização no julgamento, soa como um gesto compassivo ao autoritarismo. Ao absolver Jair Bolsonaro, líder da comprovada organização criminosa e condenar apenas seu ajudante de ordens, Mauro Cid, Fux ultrapassa os limites do espectro jurídico. 

Como bem referiu o eminente ex governador do RS, Tarso Genro: “o voto do ministro Fux foi inspirado na metodologia dos advogados dos mafiosos americanos, que se preocupavam em separar a conduta de cada um de seus criminosos, dos integrantes da máfia que faziam o serviço direto de violência, de assassinato e de morte, para que as condutas deles não integrassem o mesmo processo mafioso de dominação. Qual o objetivo dessa metodologia? Era o seguinte: barrar as investigações neste extrato da comunidade mafiosa e, portanto, não permitir que a avaliação se desse de maneira integrada, com os comportamentos conectados, para impedir que se chegasse ao núcleo dirigente, aos poderosos chefões. É claro que isso não tem nada a ver com o comportamento pessoal do Ministro Fux, porque ele está num tribunal e pode expor como quiser. Mas nós temos obrigação de advertir isso, porque é um método de bloqueio do sistema de justiça e um método de proteção dos verdadeiros responsáveis pela direção da comunidade criminosa, foi isso que aconteceu, por isso ele teve que usar 14 horas, 13horas, 15 horas para tentar fazer Bolsonaro escapar da Justiça, do direito e da responsabilidade que o STF tem de proteger a Constituição” (conteúdo disponível na rede social).

Desde a denúncia da PGR e, sobretudo, diante da densidade técnico-jurídica do voto do ministro Alexandre de Moraes, relator na Ação Penal da trama golpista, as teses mirabolantes de Fux ressoaram como um exercício de fantasia, revelando um voto marcado por cinismo ideológico. A escuta atenta, democrática e respeitosa dos demais ministros, por longas treze horas, a um voto inconsistente e contraditório, ao estilo dos advogados dos mafiosos, apenas confirma a célebre máxima de Marx: “a prática é o critério da verdade”. E contra essa máxima, pouco valem as tergiversações de Fux ao invocar a democracia americana como modelo, quando seus argumentos naufragam diante da realidade concreta do regime autoritário de Donald Trump.

Contudo, essa performance isolada de Fux não foi suficiente para macular o resultado final, que se impôs com os votos consistentemente jurídicos baseados no devido processo legal dos demais ministros da Corte.

O julgamento da Ação Penal 2668 representou um marco histórico na consolidação do Estado Democrático de Direito. Apesar das divergências ficcionais de Fux e ressalvas próprias de uma Suprema Corte plural, a maioria dos ministros da 1ª Turma decidiu pela condenação dos oito réus responsáveis pela tentativa deliberada de aniquilar a democracia e instaurar um regime de exceção, com o objetivo de perpetuarem-se ilegitimamente no poder. 

A decisão configurou uma resposta exemplar no plano nacional e internacional ao reafirmar que a justiça brasileira é soberana e não se curva a ameaças ou se dobra a sustentações políticas de quem age de modo interessado. 

Quatro ministros cumpriram o papel que deles se esperava como guardiões da Carta Magna, demonstrando que a lei se sobrepõe a interesses pessoais ou ideológicos. Restou provado de forma inequívoca que o país vive, de fato, sob a égide de um regime democrático, em que o contraditório e a liberdade de voto se manifestaram plenamente. Cada magistrado exerceu sua independência de pensamento e fundamentou suas posições nos princípios mais elevados do direito, consolidando a mensagem de que não há espaço para a impunidade de atos golpistas no Brasil.

O contundente voto do ministro Alexandre de Moraes historicizou a tentativa de golpe contra o Estado de Direito, ao reconstruir de maneira minuciosa a sequência de atos atentatórios à Constituição, ironicamente evocada nas “quatro linhas” pelo próprio líder golpista. O ministro expôs a gravidade das condutas, enquadrando-as na sua devida materialidade histórica e jurídica, e demonstrou que não se tratou de meros excessos políticos, mas de uma conspiração organizada para subverter a democracia. Ao longo de suas argumentações desmantelou uma a uma as teses levantadas pela defesa, sustentando-se na melhor expressão do direito, no respeito inabalável às garantias processuais e no devido processo legal. Seu voto destemido e densamente pormenorizado sobre os atos da intentona golpista, além do preciosismo técnico-jurídico, converteu-se em marco simbólico da resistência democrática e da afirmação de que nenhum poder ou indivíduo está acima da Constituição.

Outrossim, num país em que as mulheres ainda lutam por igualdade e enfrentam cotidianamente barreiras históricas e estruturais para ter seus direitos reconhecidos, o voto da única mulher no STF, Carmen Lúcia, foi o marco histórico decisivo na formação da maioria para a condenação dos réus do núcleo crucial. Vale relembrar um trecho ímpar, entre tantos, de seu voto: "O que há de inédito nesta ação penal é que nela pulsa o Brasil que me dói. A presente ação penal é quase um encontro do Brasil com seu passado, com seu presente e com seu futuro na área das políticas públicas dos órgãos de Estado".

Para os brasileiros que amam o país, que se reconhecem no orgulho ufanista da Aquarela do Brasil de Ari Barroso, os votos dos ministros Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cristiano Zanin e da ministra Carmen representaram um alívio coletivo, quase uma catarse de anos de dor. Lavou a alma e deu voz à indignação acumulada desde o golpe militar em1964 e mais recentemente, em 2016 com o golpe parlamentar que destituiu a presidente Dilma Rousseff do cargo de chefe de Estado, abrindo espaço para a usurpação do cargo por um vice ambicioso e desleal. Em ato contínuo, essa fase deletéria se aprofundou ainda mais a partir de 2019, com a ascensão de um governo de extrema direita, marcado pelo desprezo à humanidade, à civilidade, à ética e à legalidade. Um governo de traços autoritários e práticas que beiravam o fascismo, sustentado na negação das necessidades da maioria, na corrosão da democracia, na banalização da vida e em sucessivos atos atentatórios à democracia desde seu início.

Uma nação grandiosa e soberana em vários setores que asseguram o desenvolvimento sustentável e sua caracterização como um país emergente, que a despeito de governos destrutivos dos anos de chumbo da ditadura militar, do governo de transição do oportunista de Temer, da pífia, inacreditável e vulgar gestão de Bolsonaro, a democracia embora combalida, resistiu.

Vale dizer que Apesar de você, canção emblemática do valioso brasileiro Chico Buarque, escrita em tempos de censura implacável, de silenciamento das vozes, de restrição ao direito de ir e vir, de torturas intermináveis e de corpos de homens e mulheres que resistiam à ditadura sendo mutilados e lançados anonimamente pelos cantos do país, sem que suas famílias sequer pudessem enterrá-los, de posicionamentos surreais de um ou de outro membro do sistema judiciário, amanhã será outro dia.

O povo brasileiro está cansado dos altos e baixos da democracia do país. Está esgotado. Viver em constantes sobressaltos acaba com auto estima de uma nação, liquida a esperança por um país justo, democrático e soberano. 

O julgamento do STF nesta semana proporcionou aos brasileiros a expectativa de que a partir de agora chega a outro dia da democracia brasileira, pelo menos quanto à punição de quem ousar atentá-la. Chico Buarque, artista completo e considerado pela crítica um ícone da música brasileira, finalmente, em seus 81 anos de vida, vivenciou na quinta-feira (11/09), outro dia.

Entretanto, a luta pelo fortalecimento da democracia não se encerra com o julgamento de 11 de setembro e dos demais que virão sobre os que tentaram extingui-la. Estamos sob ameaças de um governo estrangeiro autoritário, que por outras razões, se utiliza convenientemente da condenação de Jair Bolsonaro para desestabilizar o governo brasileiro e abrir caminho para a eleição em 2026 de um candidato da extrema direita, como Tarcísio de Freitas, vassalo do bolsonarismo. É disso que se trata. O julgamento de setembro representou a reafirmação de que a democracia brasileira, embora golpeada tantas vezes, resiste e se renova em outros dias. A coragem dos ministros que se mantiveram fiéis à Constituição restituiu ao povo a esperança, a certeza de que ainda há juízes que honram o Estado de Direito. 

Mas a lição que fica é inequívoca, uma vez que, a defesa da democracia não se limita ao judiciário, ela precisa ser permanente e popular. Cabe a cada brasileira e brasileiro participar e não permitir que o obscurantismo volte a ameaçar nossas liberdades, cobrando com juros a quem inventar a tristeza, como diz nosso talentoso poeta Chico. [...] Quando chegar o momento, esse meu sofrimento, vou cobrar com juros, juro. Todo esse amor reprimido, esse grito contido, este samba no escuro. Você que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza de desinventar. Você vai pagar e é dobrado, cada lágrima rolada nesse meu penar. [...] Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Eu pergunto a você onde vai se esconder, da enorme euforia, como vai proibir, quando o galo insistir, em cantar. Água nova brotando e a gente se amando sem parar.

(Trechos da Canção de Chico Buarque ‧ 1978 - Apesar De Você)

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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