Série da Globo em seu louvor confirma que quem paga o baile escolhe a música
Minissérie da TV Globo adoça as sombras da história, elevando Marinho a santo de papel, silenciando pactos com ditadores e dissipando rivais
Quatro episódios em horário nobre, prometendo uma viagem pelo caminho do veículo que plantou as raízes do império. Mas assisti-la é como atravessar um rio de mel, onde a paciência se afoga no excesso de elogios que ecoam como ecos em uma catedral vazia.
Jornalistas e editores, velhos como árvores antigas e jovens como brotos tenros, alternam-se para tecer uma tapeçaria edulcorada, onde cada alma parece aspirar à auréola.
A bajulação a Roberto Marinho evoca aqueles velhos retratos soviéticos, onde o revisionismo histórico pintava com pinceladas grossas, transformando abismos em colinas suaves, e os baixos em picos disfarçados.
A narrativa escolhe um só lado do espelho, ignorando o reflexo sombrio que pede contraponto. Apresenta Marinho como um visionário que, qual fênix, ergueu das cinzas um jornal falido em um império de vozes e imagens que moldou o espírito brasileiro.
No entanto, cala-se sobre as amizades com ditadores militares, fios invisíveis que ligavam o patriarca a Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo. Benefícios estatais choviam como chuvas generosas, concessões que fertilizavam o grupo, enquanto ministros como Jarbas Passarinho e Armando Falcão dançavam na mesma roda, trocando favores por coberturas que brilhavam como ouro falso.
Menciona de leve que tinha até comunistas seus “de estimação”, numa época em que ser comunista era carregar nas costas um alvo, mas evita mergulhar nas águas profundas de como o conglomerado floresceu sob o regime, com subsídios que brotavam como raízes famintas e monopólios que se estendiam como véus opacos.
É um revisionismo que veste luvas de seda, humanizando controvérsias sem as encarar nos olhos. Críticos se embolam em contorcionismos que justificam o apoio à ditadura, convertendo subserviência em mera astúcia de sobrevivência.
Omissões gritam como ventos noturnos: o alinhamento com interesses capitalistas, a oposição feroz a Getúlio Vargas, o aplauso ao golpe de 1964 que abriu portas para censuras e propagandas que pairavam como fantasmas sobre a nação. A produção suaviza o papel na ditadura, soando como um hino interno, e ignora escândalos tributários que manchavam o império como tinta derramada.
Inevitáveis, os paralelos com “Cidadão Kane” surgem, onde o poder da mídia se entrelaça com manipulações sutis, mas aqui o colaboracionismo com autoritarismos é varrido para cantos escuros, como poeira sob tapetes tecidos de memórias seletivas.
A minissérie falha em sonhar: como seria o Brasil sem a Globo tecendo as narrativas, sem seu fio invisível determinando o desfecho dos anseios coletivos?
Nenhuma palavra sobre o “rei da imprensa”, Assis Chateaubriand, esse espectro nordestino que revolucionou a mídia antes que a Globo despontasse como aurora.
Nascido na Paraíba em 1892, Chatô superou uma gagueira que o prendia como correntes, transformando-se em orador de fogo, visionário implacável. Fundou os Diários Associados, o maior conglomerado da América Latina, com jornais que se multiplicavam como folhas ao vento, rádios que ecoavam vozes distantes e revistas que capturavam o espírito da época.
Sua ambição o levou a criar aeroclubes, fomentando a aviação em terras de estradas esburacadas, onde o céu se tornava estrada.
Em 1950, acendeu a primeira chama da televisão brasileira com a TV Tupi, importando máquinas e treinando almas do nada, democratizando imagens que dançavam nas salas de milhões.
Não parou: ergueu o Museu de Arte de São Paulo (Masp), caçando obras-primas com artimanhas controversas, pressionando empresários a “doar” em troca de favores que cheiravam a chantagem midiática.
Sua irreverência culminou em 1948, quando, em Londres, condecorou Winston Churchill com a Ordem do Jagunço, uma honraria inventada com o tempero do Nordeste. Após comprar um quadro pintado pelo ex-primeiro-ministro, Chatô vestiu-o com gibão de couro e chapéu de cangaceiro, batendo três vezes nas costas com uma peixeira de cabo dourado, proclamando: “Eu vos armo comendador da valorosa Jerarquia do Nordeste do Brasil”.
A cena, mistura de diplomacia excêntrica e teatro das sombras, revelava o estilo de Chatô – um caldeirão de genialidade e autoritarismo que moldou a imprensa como um artesão molda o barro.
Cinco minutos para Chatô seriam como uma gota de justiça em um oceano de silêncios, mas o vazio reforça o monopólio da Globo, apagando rivais que prepararam o solo para sua própria ascensão, como ventos que antecedem a tempestade.
Nem tudo se perde do inventário do tempo: a série reluz com inovações tecnológicas, visuais que cortam como lâminas afiadas, arquivos que desenterram memórias e depoimentos dos herdeiros Marinho, carregados de emoção – genuína ou ensaiada – que flui como o talento inerente ao grupo. Mas tudo muito seletivo, como só podíamos esperar.
Um ponto alto foi a recriação da redação do jornal O Globo na metade do século passado, evocando o frenesi de máquinas de escrever e o aroma de tinta fresca em um tempo de transformações.
Outro brilho vem do reacionário e genial Nelson Rodrigues, um dos poucos pontos altos da série, com sua prosa afiada que cortava como navalha as hipocrisias da sociedade. O resgate da crônica e da famosa peça teatral “O beijo no asfalto” merece registro.
Contudo, o olhar étnico-racial é raso para um século inteiro: como os negros dançavam nas páginas e telas?
Quantos subiram além de Grande Otelo e uns poucos eleitos?
Hoje, 2 de agosto de 2025, o Jornal Nacional com apresentadores negros, radiantes e afiados, é como um bálsamo para os olhos, mas por que tanto tempo para admitir que nossa tapeçaria não é tecida só de fios brancos, de classe média alta, masculinos e ricos?
Em eras de IA e redes sociais, onde a verdade se fragmenta como espelhos quebrados, essa série reflete como as mídias antigas reescrevem o passado para ancorar o presente.
O jornalismo deve questionar, não erguer altares. O centenário pedia mais autocrítica, menos fogos de artifício, até porque estamos ainda bastante longe do réveillon.
Todo o esforço da Globo foi para deixar claro sem ser evidente que quem paga o baile escolhe a música – e os dançarinos escolhidos a dedo que a acompanham.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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