Sensibilidade versus truculência
Pela primeira vez, mostrou-se que a população não parecia disposta a optar pela indiferença quanto aos temas que a afetam, ainda que no âmbito do Parlamento
Nas manifestações do dia 21 passado, com multidões nas ruas contra o projeto da blindagem e outras companhias, a mais impressionante, talvez, tenha sido a do Rio de Janeiro. Ali, em Copacabana, reuniu-se o que havia de melhor na música brasileira, com a nata dos artistas deixando seus afazeres para expressar, com ênfase, de que lado se achavam nos debates políticos. Pela primeira vez, mostrou-se que a população não parecia disposta a optar pela indiferença quanto aos temas que a afetam, ainda que no âmbito do Parlamento. No restante do país, sem excluir São Paulo e a Avenida Paulista, repetiu-se, enfaticamente, o repúdio às plataformas da extrema direita. À frente da massa humana, os discursos repunham as nossas ideias no seu devido lugar, com uma enorme bandeira do Brasil tremulando sobre a memória farsesca da norte-americana, antes decorando as posições adversárias.
No entanto, quem foi ou assistiu à distância àquele elenco de talentos do nosso patrimônio cultural, premiado pela maturidade, não pôde deixar de se contaminar pela força da emoção. Lá estávamos, com certeza, diante de uma coisa nossa, como se houvéssemos perdido essa forma de juntar esperança e sensibilidade com firmeza de caráter nas lutas contra a ditadura. Porque era disso, também, que se tratava naquele inesquecível domingo, dia 21, quando, de norte a sul, as pessoas desfilaram ao ar livre para demonstrar que existiam, que tinham princípios e que se colocavam ao lado dos oprimidos, contra os desmandos de um passado recente. Caetano, Gil, Chico, Djavan, Paulinho, Lenine, Ivan Lins, Geraldo Azevedo, Frejat, Maria Gadú e os que se uniram a eles provaram as razões do seu prestígio. Caminhando, cantando e seguindo a canção, como diria Geraldo Vandré, puseram a extrema direita nas cordas e derrotaram a espúria “PEC da Blindagem”. Quanto à anistia, dosimetria ou iniciativas semelhantes para livrar os golpistas da cadeia, que fiquem em estado de alerta. Tudo o que se afirmou e se defendeu durante as incríveis concentrações aponta para o estado de espírito de não recuar e exigir respeito pela Justiça em suas deliberações. Ainda teremos a ver, é claro, os partidários dos infratores, civis ou militares, condenados ou em fase de julgamento, arquitetando mágicas na Câmara dos Deputados para os livrar das responsabilidades. Por outro lado, ergueu-se uma barreira de opinião bastante sólida para representar um NÃO sonoro a cada uma dessas maquinações. O pleito de 2026, cada vez mais perto na linha do horizonte, basta para lembrar que votos emigram de acordo com o equilíbrio ou o desequilíbrio dos comportamentos.
Não há como saber se voltaremos a ter oportunidade de rever, juntos, aqueles mestres da arte brasileira. Por intermédio deles, provou-se que a sensibilidade, uma vez em curso, supera a truculência em todos os seus níveis. É uma receita consagrada pela experiência, à qual não conseguimos resistir: o nosso jeito, ao mesmo tempo ardente e doce, como desejamos nos posicionar em nossa história. Em homenagem a eles, novamente, podemos gritar: Que viva a vida! Abaixo a morte!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



