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Jacqueline Muniz

Antropóloga e cientista política. Professora do bacharelado de Segurança Pública da UFF. Gestora de Segurança Pública

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Retorno da premiação faroeste, um passaporte para "organizar" o crime organizado

Modelo de bonificação por mortes transforma polícia em instrumento do crime e aprofunda a insegurança pública

Forças especiais da PM do Rio (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Em 1999, quando estivemos no governo estadual, abolimos o modelo de bonificação conhecido como “premiação faroeste”, criado na gestão Marcello de Alencar, e implantamos um sistema de metas, ouvindo os policiais, com premiações mensais para todos, independentemente de patente ou função, compatível com a realidade verdadeira do trabalho policial profissional — investigativo e ostensivo — ao criarmos as AISPs, o ISP e as Delegacias Legais. Tratou-se de um esforço de modernização e valorização profissional que reconhecia que o desempenho policial não pode ser rebaixado à capangagem e ao justiçamento. Eles convertem o profissional de polícia em um criminoso a mais, um zumbi do policiamento que, na lógica da trocação de tiro, adquire um prazo de validade vencido de sua vida. A vida do policial passa a ser negociada como mercadoria política por superiores e pares promotores da queima de arquivo ou do “tiro amigo”, que inventa heróis para ocultar negociatas com a bandidagem que dizem combater. Mata-se o traficante para colocar no lugar um preposto, um “bandido de estimação” e captador de recursos para o pessoal do andar de cima.

O trabalho profissional de polícia no uso potencial e concreto da força não se confunde com o amadorismo oportunista do estímulo à matança deliberada. Afinal, esta dissolve a responsabilidade tática, administrativa e penal do atirador. A premiação faroeste ou por “neutralização” permite a ação colaborativa do matar junto e misturado, com partilha solidária de tiros, matando simultaneamente o mesmo morto. Nada como um único morto matado várias vezes, o cancelamento de um único CPF para, a um só tempo, possibilitar várias bonificações em vários contracheques.

A questão de pôr na letra da lei a prática do “bandido bom é bandido morto” permite, além da naturalização do matar, a rotinização do “matar errado”. Isto porque não existe um BANDIDÔMETRO como protocolo público que possa servir de unidade de medida segura e confiável. O bandidômetro informal não tem como ser validado por toda a sociedade e pelo MP, para garantir sempre “matar certo”, os mesmos de sempre, diante das câmeras delatoras de algum celular favelado indiscreto. Ao mudar de mão corporativista, este bandidômetro rapidamente se volta contra quem fez uso dele ou autorizou o seu emprego, incluindo os governantes e políticos que funcionam como promoters do “tiro, porrada e bomba”.

Experiências internacionais já mostraram os graves riscos desse modelo. No México e em países da América Central em tempos passados, políticas semelhantes de premiação por letalidade produziram policiais-mercenários, multiplicaram falsas provas e comprometeram a governabilidade. O mesmo padrão ocorreu em regimes autoritários, onde o incentivo à morte como “resultado” policial corroeu instituições e ampliou a dependência da política das polícias e outros dispositivos de repressão.

Há que enfatizar que o “liberou para matar” da premiação faroeste requentada intimida e silencia a maioria dos policiais civis que querem ser polícia para valer e cujo trabalho diário é discreto, rotineiro e sem performance ostentatória. É este trabalho ordinário de investigação e inteligência, de baixa visibilidade aos olhos da população, que sustenta a polícia como polícia e, por isso, se torna indispensável para a segurança pública. A premiação faroeste, agora ressuscitada das catacumbas das más práticas, empurra toda a polícia civil para a clandestinidade, clientelização e a-legalidade de sua atuação. Isto subalterniza o trabalho policial cotidiano, criando uma casta de falsos operacionais. Estes fabricadores de estatísticas para agradar governador exploram a morte até do próprio colega de ofício como moeda de troca. Principalmente se esta morte vier a contribuir para operações-vingança na favela que otimizam mais bonificações em uma única ocorrência de matança. Como resultado da publicidade do medo que produzem e agravam, eles adquirem o privilégio de ganhar cada vez mais sem mérito e fazendo uso heterodoxo da carteira de polícia e da autoridade por nós concedida.

É preciso dizer que qualquer polícia, mesmo a nossa, que lida com domínios territoriais armados diariamente, tem poucas oportunidades reais de atirar e, mais ainda, de atirar para matar. Para sair soltando o dedo como se não houvesse o amanhã é preciso uma boa dose de invenção de ocorrência com chancela política. Isto revela que mesmo com a fabricação artificial e exagerada de ocorrências letais, a maioria dos policiais civis, além de serem desmoralizados com a existência da premiação, não terá uma única chance sequer de matar para equiparar vencimentos, recebendo como devolutiva governamental de seu trabalho sério a humilhação e o esquecimento institucional. Mesmo instaurando uma gincana para matar mais, não será possível garantir equidade nas bonificações e contemplar toda a polícia, agora condenada a uma milicialização patrocinada pelo Estado. É preciso ser patrão, sócio ou parceiro do crime para viabilizar as possibilidades de matar — além das chances de morrer barato, é claro.

Esse ciclo de invenção de ocorrências e distribuição desigual de privilégios transforma a premiação em uma engrenagem eleitoreira, ingênua ou de má-fé. A coleta sistemática da propina negocia vidas como moeda de troca para alimentar o caixa 2 das campanhas, financiando políticos que vendem a imagem de “linha dura” enquanto suas carreiras vivem da violência, do medo e do pânico social. Cria-se, assim, um circuito perverso entre matança, marketing e manutenção do poder.

Bem, isto já aconteceu antes em outros países e, aqui no Rio, cerca de 30 anos atrás. Aprendemos, faz meio século, que não se mede eficácia, eficiência e efetividade de polícia por corpos no chão e exclusivamente por apreensões. Mais que produtos, o desempenho de polícia precisa aferir o processo de produção destes produtos, todos de natureza coercitiva. Saldos operacionais não podem se transformar em um fim em si mesmos. Até porque isto sabota a própria operacionalidade da polícia, produzindo escassez de sua capacidade repressiva qualificada e com foco. Lembro mais uma vez aqui que não se tem como fazer estoque de repressão, o que impossibilita seu uso continuado para o bem ou para o mal.

O retorno à “premiação faroeste” representa um retrocesso perigoso: perverte a natureza do trabalho policial, aumenta a probabilidade de forjados, incentiva o dedo nervoso com acertos pessoais de conta e alimenta o conhecido kit sucesso — a fabricação de “saldos operacionais” falsos para inflar estatísticas e maquiar a produtividade policial. E mais: eleva o valor das propinas negociadas com facções e milícias, além de institucionalizar a coleta para caixa 2 de campanha eleitoral dos políticos garotos-propaganda da matança. O resultado é perverso: crescimento da letalidade, aumento da vitimização policial e generalização de esquemas de corrupção baseados na negociação da vida — do criminoso, do suspeito ou mesmo do inocente útil — e da sua liberdade trocada por armas e drogas apreendidas ou pela vida de um “parça” de menor valor e com língua solta de delator. Mata-se um ou vários para manter o esquema. A ausência de rendição é parte do consórcio produtivo entre político, polícia e crime.

É importante destacar que desde a gestão Castro temos assistido a desmandos explícitos e quebra de subordinação na polícia civil em nome da criação de uma autarquia sem tutela que se abre como firma para exploração de alguns. Assistiu-se a grupelhos tomarem de assalto a nossa PCERJ para atender a seus projetos particulares de poder. Tem-se mantido a lógica lucrativa de se mudar a pá da vez para manter a panela que segue se dando bem, entra e sai governo. Cabe lembrar que já tivemos três chefes de polícia presos no Rio de Janeiro por liderarem arranjos político-criminosos.

A premiação faroeste presta, na prática, um serviço valioso ao crime organizado. Ela mata a “galinha dos ovos de ouro” do trabalho policial — investigação e inteligência — justamente os instrumentos capazes de revelar como o crime funciona, quem é quem, quem lucra e quem protege. Além disso, reduz as despesas do crime organizado: um morto, mão de obra precarizada, barata e substituível, é um indivíduo a menos para sustentar dentro da cadeia e cujos familiares não precisarão ser bancados para garantir fidelização faccional.

Do ponto de vista da economia política do crime, a premiação funciona como subsídio indireto às facções e milícias. Reduz custos, organiza fluxos de proteção e cria dependência recíproca entre policiais, políticos e criminosos. Assim, a morte deixa de ser exceção ou risco de confronto e passa a ser método de governança compartilhada.

A isto se soma a autonomização predatória do poder de polícia: quando o aparelho corporativista sequestra esse poder, ele deixa de ser um poder do Estado e da sociedade e se torna o poder do policial. É esse poder privatizado que passa a chantagear governantes, silenciar o parlamento, acuar o Judiciário e ameaçar a sociedade. Trata-se, em última instância, de um passaporte para a organização do crime pela própria polícia.

Esse processo expulsa a “polícia do bem” das ruas e fortalece a “polícia dos bens”. Uma polícia comprometida com o público é sufocada por uma polícia privatizada, rentista e mercantilizada. Essa substituição aprofunda a insegurança coletiva, pois fragiliza a confiança institucional e naturaliza o risco de qualquer cidadão ser o “inocente útil” da vez.

No mundo inteiro, os critérios de desempenho profissional da polícia investigativa são outros: por exemplo, taxas de resolução de crimes e de elucidação confirmadas pelo Ministério Público. Curiosamente, a PCERJ ostenta as mais baixas taxas de elucidação de homicídios do Brasil, o que revela o tamanho da contradição em ressuscitar esse tipo de premiação que nada tem a ver com eficiência policial.

O nome verdadeiro dessa proposta de premiação faroeste é chantagem corporativista. Explora a insegurança e o medo da população e expõe o aparelhamento político-partidário da polícia de forma explícita e desavergonhada.

Já vivemos isso. E foi muito ruim não apenas para a sociedade, mas para a própria polícia, que se apequenou, se corrompeu, judiou e perseguiu seus integrantes, distanciando-se de seu verdadeiro mandato. Chegamos ao Rio de Janeiro da insegurança generalizada com a contribuição luxuosa de entulhos autocráticos e corporativistas. A premiação faroeste e a apropriação privatista do poder de polícia são mais um estímulo para que a polícia DO BEM seja expulsa das ruas e desarmada pela POLÍCIA DOS BENS, com anuência do Estado provedor intencional de nossa insegurança. Não surpreende que os bravateiros e oportunistas da premiação faroeste, de dentro e de fora da PCERJ, sejam os que odeiam a polícia e promovam sua desinstitucionalização para melhor manipular os policiais civis, servidores públicos de primeira grandeza em sociedades democráticas! A polícia civil é nosso patrimônio e nos cabe blindá-la destas apropriações político-partidárias e particularistas.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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