Quero meu “Bar Brasil” de volta!
Uma parte da história invisibilizada por ciúme
Em algum dia de 1981, Tarso de Castro nos chamou - Paulo Caruso e eu - para uma conversa de trabalho. Ele tinha acabado de assumir o desafio de ressuscitar a revista “Careta”, cujo título Domingo Alzugaray tinha adquirido. Ele nos recebeu na redação - um prédio de tijolinhos que abrigou uma fábrica em outros tempos - mas nos levou para o “sujinho”. Já eram 11 da manhã e ele estava precisando de uma vodka. Felizmente abriu mão dos ovos coloridos que mofavam no balcão. Àquela altura, Paulo e eu já tínhamos publicado várias HQ de política na “Status”, outra revista do Alzugaray. Como por exemplo aquela em que Lula vira governador de São Paulo e os empresários endinheirados para os quais trabalhava como metalúrgico viram seus funcionários.
Tarso pediu para a gente criar uma historinha de apenas duas páginas, para abrir a revista, com o mesmo pique das HQ da “Status”. Tarso ainda não tinha engolido a primeira vodka quando o Paulo disparou: “A historinha vai se chamar ‘Bar Brasil’”. E eu completei: “O dono do bar será o Figueiredo! E seus ministros, os garçons. E os clientes, os caras da oposição, como Ulysses Guimarães. Será o único lugar do Brasil onde a ditadura e a oposição se encontram”. Tarso aprovou na hora.
Durante os nove meses seguintes eu passei boa parte das terça-feiras no estúdio do Paulo, na Vila Madalena, produzindo as historinhas. Eu no texto, ele no desenho. Com a morte da “Careta”, fomos contratados por Mino Carta, cuja revista “Senhor” entrou no portfólio da Editora Três.
Em vez de abrir a revista, passamos a fechá-la: o “Bar Brasil” foi para a última página, ficou numa página só e agora em cores. A repercussão foi enorme. A Rádio Excelsior nos chamou para comandar um programa noturno chamado “Bar Brasil”, diretamente do Bar Brasil de verdade, na esquina da Alameda Santos com a rua Haddock Lobo. O dono da TV Bandeirantes, Johnny Saad, quis transformar as historinhas de papel em desenho animado. Mas nem Paulo nem os técnicos da emissora conseguiram viabilizar o projeto a custos razoáveis. Publicamos três livros com as historinhas, um pela Editora Três, outro pela L&PM e o terceiro pela Paz&Terra. Ou seja: o “Bar Brasil” era um sucesso! A minha parceria com o Paulo era um sucesso!
Até que, em algum dia de 1985, um amigo comum e colega de redação me avisa, à boca pequena: “o Paulo Caruso fechou um contrato com a cachaça 51”. Cachaça? Só podia ser por causa do “Bar Brasil”. Sim, o colega bem informado continuou, eles vão montar um stand com a réplica do “Bar Brasil” numa feira internacional.
Fiquei branco. Meu coração disparou. Paulo não havia dito nada. Cinco anos de parceria! Corri para o estúdio, já com o coração na mão. “Paulo, me contaram que você fechou um contrato com a 51”. Eu ainda tinha alguma nesga de esperança de que fosse uma intriga do nosso colega, mas ele confirmou.
“E eu não vou ganhar nada com isso?” perguntei.
“Não”, ele respondeu, “porque o Bar Brasil é meu. Eu dei o nome!”
“Você deu o nome e eu dei o conceito. E meu nome aparece ao lado do teu há cinco anos. E há cinco anos fazemos juntos. O Bar Brasil é nosso!”
Ele levantou e passou a berrar: “O Bar Brasil é meu!”.
Não lembro se no mesmo dia ou no dia seguinte me reuni com Domingo Alzugaray. Contei o que tinha acontecido. Ele propôs que eu continuasse fazendo a historinha com outro parceiro. Não topei. Não falei mais com Paulo. Algum tempo depois vi, com surpresa, na última página da “Senhor”, uma historinha chamada “Avenida Brasil”, assinada só por ele.
Além disso, ele passou a invisibilizar o “Bar Brasil”. Como se nunca tivesse existido. Só falava da “Avenida Brasil” nas entrevistas. Nas exposições nunca mais incluiu o “Bar Brasil”. Nunca o processei. Os mais de 300 painéis do “Bar Brasil” sempre estiveram sob sua guarda. Escondidos. Uma parte importante da nossa história, a transição entre a ditadura e a democracia, embargada por ciúme ou vingança ou capricho.
Desde a sua morte, em 4 de março de 2023 estou tentando reaver 50% do “Bar Brasil” que é meu de direito, ou seja, 150 painéis, a única herança que tenho para deixar para meus filhos.
Mas enquanto seus herdeiros não chegam a um acordo, eu fico impedido de ter acesso ao que é meu e os brasileiros impedidos de conhecer, em forma de humor, um período da nossa história que não temos o direito de esquecer.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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