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      Ricardo Queiroz Pinheiro

      Bibliotecário e pesquisador, militante do livro e leitura, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC)

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      Palantir, poder e silêncio: quando a vigilância vira política pública

      A Palantir não é uma empresa de tecnologia qualquer. Ela nasceu com dinheiro da pela In-Q-Tel, o fundo de capital de risco da CIA

      Você nao tem a obrigação de saber o que é a Palantir? Mas ela pode se interessar por você. Tudo isso a depender dos rumos da política. Vamos  lá. Essa empresa americana virou peça-chave no governo Trump para montar uma estrutura de vigilância estatal que cruza dados de todo tipo: imposto, saúde, redes sociais, histórico policial, localização. No Brasil, ela ainda não se instalou de forma aberta, mas já observa o terreno — de longe, pelas bordas, pelas parcerias e pela digitalização acelerada dos serviços públicos. O modelo está pronto: uma plataforma que organiza a vigilância como política de Estado, vendida como tecnologia neutra, mas construída para controlar. E o que está em jogo não é o futuro. É o agora, reorganizado em silêncio e com uma doutrina pronta.

      A Palantir não é uma empresa de tecnologia qualquer. Ela nasceu com dinheiro da pela In-Q-Tel, o fundo de capital de risco da CIA, foi pensada pela lógica da guerra e hoje vende soluções para governos que querem saber mais do que a democracia costuma permitir. Sua plataforma não coleta os dados propriamente, ela faz o mais importante: os conecta, os entrecruza. Junta sistemas diferentes, organiza, filtra, calcula. E permite que decisões sejam tomadas com base em padrões: quem merece crédito, quem é um risco para o Estado, quem está “fora do perfil”. É a tradução da vigilância para o cotidiano. E a política pública vira planilha moral.

      Nos Estados Unidos, isso já tem impacto real na vida das pessoas. Trabalhadores imigrantes sendo localizados e detidos rapidamente com base em cruzamentos de dados. Famílias sendo vigiadas por aceitar auxílio emergencial. Movimentos sociais sendo mapeados como “potenciais focos de instabilidade”. Não é preciso repressão direta quando o sistema já bloqueia acesso, antecipa suspeitas, isola conexões e carimba o indivíduo. A Palantir vende exatamente isso: uma ferramenta de poder sem cara de poder.

      Os dois fundadores da empresa, Peter Thiel e Alex Karp, se apresentam como figuras antagônicas — um investidor ultraliberal e abertamente trumpista, o outro um acadêmico progressista, com vínculos com o Partido Democrata. Mas isso é aparência. Thiel é o bilionário que financiou a campanha de Trump e ajudou a desenhar sua política de segurança nacional. Karp, por sua vez, garante a imagem “racional” e tecnocrática da empresa. Juntos, criaram uma arquitetura de poder que combina ideologia autoritária com engenharia social algorítmica. E ambos lucram com a conversão da política em código e informações organizadas. O bad cop conservador e o liberal a procura do eu profundo do outro.

      Agora pense no Brasil. Com o avanço da digitalização e a pressão por “eficiência”, a porta está aberta. Cadastro Único, Receita Federal, sistemas de saúde, segurança, educação, transporte — tudo sendo interligado, muitas vezes sem controle social e sem debate público. Basta um contrato mal fiscalizado, uma mudança de governo, uma nova justificativa de “segurança nacional”, e a engrenagem gira. Um jovem periférico pode ser barrado num concurso por associação algorítmica. Um beneficiário do Bolsa Família pode cair num filtro de “fraude potencial”. Um servidor público pode ter sua vida escaneada por um sistema que cruza produtividade, saúde e rede social. Um militante político marcado por suas posições "radicais".

      A política cotidiana é essa: quem tem acesso, quem é rastreado, quem perde o benefício, quem vira suspeito, quem pode causar um conflito. E isso não é uma abstração, tampouco teoria da conspiração. Está ligado à forma como o Estado se reorganiza — menos performance, mais técnica voltada à vedação: não apenas automatizado, mas controlado por modelos que vedam o acesso antes da disputa, que escolhem quem pode chegar e quem deve ser barrado. A Palantir entra como fornecedora dessa nova lógica. E o risco não está apenas no que ela faz, mas no que permite que outros façam: governos, bancos, empresas de segurança, plataformas de crédito, sistemas de avaliação de desempenho.

      Falar em soberania digital, nesse contexto, não é apego a fronteiras. É disputar o poder de decidir como os dados são usados, por quem, com qual finalidade. É recusar que empresas estrangeiras ditem os critérios de governança local. É construir capacidade pública de desenvolver, fiscalizar, auditar e corrigir os sistemas que atravessam o cotidiano. Sem isso, a ideia de democracia já desgastada perde ainda mais o lastro material. Fica só como fachada para um governo algorítmico e autoritário que opera sem voto, sem parlamento e sem escuta.

      A conversa de que os fundadores da empresa discordam politicamente — Thiel com Trump, Karp com os democratas — só serve para blindar os contratos. Enquanto um alimenta o discurso autoritário e o outro posa de humanista e leitor de Goethe, a Palantir segue fazendo o mesmo trabalho: organizar o poder do Estado como ferramenta técnica, despolitizar as decisões, bloquear o dissenso antes que ele fale. Não se trata de temer o avanço digital. Mas de recusar que ele seja comandado por interesses que operam acima da lei, à margem da sociedade, contra qualquer ideia concreta de justiça e patrocine a perpetuação de fascistas no poder.

      Talvez pareça que tudo isso diz respeito apenas aos Estados Unidos, ao Trump, aos acordos de segurança internacional. Mas quando uma empresa com esse grau de penetração passa a organizar o funcionamento do Estado, ninguém está de fora. A política cotidiana passa a ser decidida por sistemas opacos, contratos técnicos, modelos de risco. Não é mais uma questão de vigilância: é de governo. E isso vem junto com o pacote — tarifaços, chantagens diplomáticas, sabotagem de políticas públicas, corrosão da soberania em nome da eficiência. A pergunta que se impõe, pra quem ainda acredita em democracia, é simples e dura: vamos aceitar isso como destino ou vamos disputar, de fato, quem comanda as engrenagens?

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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