O valor de nossa causa e o ganho político imediato
Mesmo que a presença de Bolsonaro favoreça Lula eleitoralmente, aliviar suas penas seria um erro político com graves consequências para o país
Em sua decisão de primeira instância, o STF impôs severas condenações e penas de prisão aos dirigentes da organização criminosa que arquitetou e tentou consumar o golpe de Estado que culminou nos atos vandálicos de 8 de janeiro de 2023.
Como era de se esperar, as reações a essas determinações jurídicas apresentaram facetas opostas: os simpatizantes do bolsonarismo entraram em desespero ao saber que seu líder, além de ser tachado de chefe da quadrilha, está também alijado das disputas eleitorais dos próximos anos.
Por sua vez, entre os do campo popular, predominou um estado de euforia pelo fato de que, pela primeira vez em nossa história, agentes golpistas a serviço das classes dominantes estavam sendo devidamente penalizados por seus atos criminosos.
Assim, em função das diferentes formas como as medidas judiciais foram recebidas, os comportamentos dos integrantes de cada grupo também passaram a ter sinais opostos: os bolsonaristas se lançaram em uma campanha clamando por anistia aos sentenciados, enquanto os do campo progressista exigem que as penas sejam cumpridas.
Curiosamente, nessa situação de dubiedade, as forças populares se encontram diante de uma disjuntiva difícil de lidar. O que nos seria mais conveniente: exigir que o rigor da lei se faça valer para que todos os criminosos efetivamente cumpram as penas que lhes foram aplicadas ou concordar com um alívio nessas condenações, que resulte na viabilização da participação do patriarca do bolsonarismo no próximo pleito eleitoral?
Por contraditório que possa parecer em um primeiro momento, do ponto de vista estritamente político-eleitoral, o mais conveniente para o campo popular tende a ser a presença concreta do chefe da organização criminosa na cabeça da chapa contra a qual o campo popular representado por Lula terá de se contrapor. Como entender que isso seja realmente assim?
Precisamos ter em conta que o clã bolsonarista e seu patriarca encarnam todo o imenso ódio latente em nossa sociedade contra os setores mais humildes da população. Por isso, a adesão irrestrita ao líder bolsonarista pode ser esperada de todos os que, por diversas motivações, têm na aversão às massas populares a razão de sua existência. Nesse grupo, podemos incluir desde banqueiros e grandes latifundiários até pobres de direita ressentidos. Quase nada é capaz de afetar a disposição dessas pessoas de apoiar aquele em quem se espelham — e o uso de “quase” antes de “nada” se deve ao fato de que sempre resta a inimaginável e improvável hipótese de que ele passe a defender as aspirações do povo trabalhador e da nação brasileira.
Entretanto, embora possa contar com a fidelidade quase inabalável dos elementos já citados, sua figura causa profunda ojeriza no restante da população. Como o número de seus apoiadores não deve ultrapassar 35% dos votantes, ele se torna uma opção sem potencial na disputa contra Lula no segundo turno. Mesmo que toda a sua atuação política se dedique a favorecer os poderosos, sua inabilidade em gerir os negócios das elites reduz sua capacidade de atrair quem ainda não tenha sido contaminado pela fobia antipovo. A menos que se sintam em um beco sem saída, as facções mais liberais das classes dominantes não aceitariam ser por ele conduzidas.
Conforme expusemos mais acima, os adeptos do bolsonarismo nutrem um rancor muito intenso contra os setores mais frágeis da sociedade. É um sentimento tão enceguecedor que leva os pobres de direita a apoiar movimentos que, no final, acabam sendo prejudiciais a eles próprios. Podemos mesmo dizer que o grosso dos bolsonaristas coloca sua causa acima de seus interesses pessoais, ou seja, estão dispostos a tudo desde que sirva para esmagar os mais carentes.
No entanto, o patriarca do bolsonarismo está longe de aceitar sacrificar-se em prol de alguma causa. Nem pensar! Com a covardia que o caracteriza, seu ganho pessoal precisa necessariamente estar sempre em primeiro lugar. A missão de servir aos poderosos e derrotar as aspirações populares lhe é muito válida e desejável, desde que ele possa tirar proveitos próprios da empreitada, claro.
Por isso, não faz sentido imaginar que ele esteja disposto a agir como fez Lula quando se defrontou com a ameaça concreta de ser preso. Naquela ocasião, havia várias alternativas para que Lula se livrasse da prisão. Por exemplo, ele poderia ter pedido asilo político em alguma das várias embaixadas dispostas a recebê-lo ou poderia ter concordado em usar tornozeleira eletrônica e ser agraciado com prisão domiciliar. Em qualquer uma dessas situações, Lula teria evitado ser enviado a uma prisão para cumprir a pena que lhe havia sido aplicada.
Como sabemos, Lula enfrentou a situação com altivez e recusou todas essas possibilidades. Ele sabia que, se aceitasse, se livraria dos sofrimentos pessoais, mas sua causa seria imensamente prejudicada. Estaria admitindo ao povo que seus condenadores tinham razão. Assim, preferiu submeter-se ao castigo, dispôs-se ao sacrifício, pois tinha uma causa maior, um objetivo que estava acima de seus interesses pessoais: a causa do povo trabalhador brasileiro.
Contudo, o patriarca do bolsonarismo é o completo oposto. Embora sua causa seja a mesma dos grandes banqueiros, rentistas e capitalistas agroexportadores, ele jamais se sacrificaria por ela. Disso decorre seu desespero: a iminência de ter de fato de passar um bom tempo enjaulado. Justo ele, que costumava cobrar mais rigor com os presidiários, dizendo que as prisões brasileiras eram iguais a hotéis cinco estrelas, oferecendo conforto a vagabundos. Agora, teme receber o mesmo tratamento “cinco estrelas” que propunha aos outros detentos.
Todavia, as forças democráticas e populares estão diante de um terrível dilema. Por um lado, é certo que a probabilidade de Lula ser eleito aumenta muitíssimo na eventualidade de o patriarca do bolsonarismo ser o candidato do grande capital nas próximas eleições. Pelos motivos já expostos, tudo nos leva a concluir que, em um segundo turno, o bolsonarista-mor não conseguiria somar nada além do que já tivesse obtido no primeiro. A dificuldade para uma vitória eleitoral de Lula tenderia a ser muito maior se a disputa se desse contra algum bolsonarista disfarçado e aparentemente civilizado.
Em vista disso, há alguns em nosso campo que gostariam de suavizar as penas do dito cujo para, com isso, elevar nossa perspectiva de vitória no pleito decisivo. Porém, considero essa uma proposta extremamente negativa para os interesses de nosso povo — não porque ela não viesse a render o fruto esperado para a ocasião, mas pelas consequências desastrosas que acarretaria para o futuro imediato.
Caso o líder principal da organização criminosa e seus cúmplices mais próximos se livrem das penas que lhes foram justamente aplicadas pelos crimes cometidos, isso representará a confirmação de que, no Brasil, os autores de medidas de força tomadas em favor das classes dominantes, do imperialismo e contra as maiorias populares não são passíveis de punição. Seria um forte estímulo a novas tentativas golpistas, pois reforçaria a antiga convicção de que golpes de Estado no Brasil não levam ninguém à prisão. Evidentemente, a próxima tentativa não demoraria a chegar.
Porém, diferentemente das forças nazibolsonaristas, nós não somos punitivistas, não sentimos prazer com o sofrimento dos inimigos do povo. Por isso, estamos preparados para aceitar que, em razão de seu carcomido estado mental, o chefe da organização criminosa cumpra sua pena em prisão domiciliar.
Em conclusão, Lula e as forças do campo popular-democrático terão, mais uma vez, de colocar sua causa à frente dos interesses do momento. Ainda que enfrentar eleitoralmente uma chapa liderada pelo máximo expoente do bolsonarismo signifique assegurar de antemão uma retumbante vitória no pleito, é preciso levar em conta os efeitos negativos que o não cumprimento das penas pelos criminosos acarretaria para nosso futuro imediato. Portanto, mesmo que implique uma disputa mais acirrada e difícil contra as forças das classes dominantes, é de grande relevância que o povo esteja disposto a travá-la para garantir que não tenhamos uma vitória de Pirro.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



