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Reynaldo José Aragon Gonçalves

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global. Editor do site codigoaberto.net

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O risco invisível do GPS: como o Brasil pode ser desligado em segundos

A dependência de GPS e Galileo coloca comércio, defesa e serviços estratégicos em risco caso haja conflito geopolítico

GPS (Foto: Freepik)

De Congonhas à Margem Equatorial, do Pix ao transporte de soja, tudo depende de satélites que não são nossos. Uma vulnerabilidade invisível que pode ser usada como arma.

O poder invisível dos satélites

Você entra em um avião em Congonhas. O piloto inicia a aproximação, ajusta instrumentos, e o pouso é feito com segurança. Mas o que quase ninguém percebe é que essa rotina só acontece porque um sinal de satélite estrangeiro guia cada manobra. O mesmo vale para o Pix que você envia do celular, para o contêiner de soja que chega a Xangai, para o caixa eletrônico que libera dinheiro em Manaus ou para a Bolsa de Valores que sincroniza suas operações em milissegundos.

Tudo depende de sistemas GNSS — as constelações de satélites que fornecem posicionamento, navegação e tempo para o mundo. No Brasil, isso significa viver ligado ao GPS dos Estados Unidos e, em menor escala, ao Galileo da União Europeia. Em outras palavras: o país funciona graças a satélites que não controla e que podem ser desligados a qualquer momento.

Esse é o ponto de partida de um problema invisível e estratégico. Invisível porque está no espaço, porque não aparece na tela do celular, porque não é tema de manchete. Estratégico porque sem ele aviões ficam sem rota, navios sem porto, plataformas sem referência e bancos sem tempo. A dependência de satélites estrangeiros é uma vulnerabilidade silenciosa, mas que pode decidir o destino de uma nação em caso de conflito ou disputa geopolítica.

Dependência estrangeira e vulnerabilidade nacional

O Brasil, diferentemente de outras potências emergentes, nunca construiu um programa próprio de navegação por satélite. Enquanto Índia criou o NavIC e o Japão mantém o QZSS para garantir soberania mínima, o país continua refém do GPS dos Estados Unidos e do Galileo da União Europeia. Não há sequer um debate público consistente sobre a necessidade de desenvolver uma rede nacional ou regional de GNSS, nem planejamento estratégico a médio prazo.

Essa dependência cria uma vulnerabilidade invisível, mas decisiva. No cotidiano, significa que rotas aéreas, exportações de soja e minério, operações militares na Amazônia e até transações bancárias dependem de uma infraestrutura controlada fora do território nacional. Em tempos de paz, o sinal flui livremente. Em cenários de conflito ou atrito geopolítico, a decisão de desligar ou degradar o serviço não cabe ao Brasil.

É uma contradição gritante: o país que se apresenta como potência agrícola, energética e diplomática global opera sua logística e defesa apoiado em sistemas que não controla. Trata-se de uma fragilidade estratégica ignorada por elites e governos sucessivos, que nunca colocaram a questão da autonomia em navegação por satélite no centro da agenda nacional.

GNSS como arma de guerra híbrida

Sistemas de navegação por satélite não são apenas ferramentas civis; são também armas silenciosas em disputas modernas. Nos últimos anos, o mundo já viu isso acontecer. Durante a guerra na Ucrânia, interferências de sinal — conhecidas como jamming — deixaram drones e aviões civis sem referência, obrigando pilotos a depender de instrumentos antigos. No Mediterrâneo, navios comerciais foram enganados por sinais falsos — o chamado spoofing — que os fizeram aparecer em lugares errados nos mapas eletrônicos.

Essas técnicas, baratas para atores locais e sofisticadas quando usadas por Estados, transformaram o GNSS em um componente central da guerra híbrida: atacar sem declarar guerra, criar caos sem disparar um tiro. Para o Brasil, os riscos são diretos. Uma onda de jamming no Atlântico Sul poderia paralisar navios carregados de soja e minério; um ataque de spoofing na Margem Equatorial colocaria plataformas de petróleo em risco; uma degradação seletiva de sinal na Amazônia poderia cegar operações militares e policiais.

A vulnerabilidade é clara: se um país com capacidade tecnológica decidir interromper o sinal, o Brasil pode ser “desligado” sem que um único tiro seja disparado. O que parece distante já é rotina em outros conflitos, e revela o quanto dependemos de uma infraestrutura estratégica que não controlamos.

Multipolaridade e disputa global

A disputa pelos céus não é apenas científica; é geopolítica. Cada potência trata seu sistema de satélites como instrumento de poder. Os Estados Unidos controlam o GPS, ainda o mais usado no mundo. A União Europeia criou o Galileo para não depender de Washington. A Rússia mantém o GLONASS, um legado da Guerra Fria que segue ativo e integrado às suas forças armadas. E a China investiu pesado no BeiDou, que já cobre todo o planeta e é pilar da sua estratégia de influência tecnológica no Sul Global.

Esses sistemas não concorrem apenas na precisão técnica; eles definem alianças e dependências. Quem usa GPS depende da política dos EUA. Quem adota BeiDou, abre portas para a esfera de influência chinesa. A Europa aposta em autonomia, mas o Galileo também é parte do jogo ocidental. Nenhum desses serviços é neutro. Cada sinal de satélite carrega junto uma bandeira.

E o Brasil? Continua sem programa próprio, sem plano de independência. Em vez de se posicionar, mantém-se como cliente cativo de potências externas. A questão que se coloca é direta: vamos seguir reféns do Ocidente ou buscar autonomia junto aos BRICS e vizinhos latino-americanos? A multipolaridade oferece alternativas, mas exige decisão política e visão estratégica. Ficar no meio do caminho é aceitar a dependência como destino.

Ponto cego da mídia e das elites

No Brasil, quase não se fala de GNSS. A mídia trata o tema, quando muito, como curiosidade tecnológica, ignorando que satélites de navegação são infraestrutura tão estratégica quanto energia elétrica ou petróleo. As elites econômicas e políticas, por sua vez, não enxergam a questão como prioridade. O resultado é um silêncio que mantém a população na ignorância sobre uma vulnerabilidade decisiva.

Enquanto China, Índia, Japão e Rússia investiram bilhões para não depender de ninguém, no Brasil não houve sequer um debate público sério sobre o assunto. Em vez de política de Estado, temos apenas improviso: seguimos confiando em que o sinal dos satélites estrangeiros nunca falhará. É uma aposta ingênua em um mundo marcado por disputas geopolíticas cada vez mais duras.

Essa negligência é mais do que um erro técnico; é uma escolha política. Ao não tratar GNSS como questão estratégica, o Brasil perpetua a dependência e entrega a terceiros a chave de sua logística, de sua defesa e de sua economia. A pergunta incômoda, que a mídia raramente faz, é simples: por que o Brasil nunca lançou um programa próprio de navegação por satélite?

Casos concretos e pedagógicos

Os riscos do GNSS não estão apenas em relatórios militares ou análises acadêmicas. Eles já aparecem no dia a dia — ainda que discretos e pouco noticiados. Nos céus da Amazônia, pilotos relatam quedas momentâneas de sinal, obrigando aeronaves a depender de rotas tradicionais e mais arriscadas. NOTAMs (avisos a aeronaves) já registraram situações em que a navegação ficou instável, comprometendo pousos e decolagens.

No mundo, os exemplos são ainda mais claros. No Mar Negro, navios de carga foram “enganados” por sinais falsos e apareceram em mapas digitais a quilômetros de distância de sua posição real. No Mediterrâneo, interferências frequentes obrigaram companhias aéreas a replanejar rotas. E na guerra da Ucrânia, ataques de jamming tornaram drones inoperantes e desorientaram tropas em plena operação.

Esses episódios não são ficção científica. Eles mostram que o risco de ver aviões, navios ou sistemas financeiros do Brasil comprometidos não é hipótese distante — é apenas questão de tempo. A diferença é que, por aqui, seguimos sem mecanismos de proteção, sem sistemas próprios e sem debate público.

Cenários de risco para a América Latina e o Caribe

As tensões atuais na região mostram que o GNSS pode ser usado como arma silenciosa em disputas que envolvem Brasil, Venezuela e Colômbia. No Caribe, a presença crescente de embarcações militares dos EUA e as respostas de Caracas criam um ambiente propício para testes de jamming seletivo em rotas navais e aéreas. Um bloqueio de sinal poderia desorganizar patrulhas, atrasar o comércio marítimo e expor vulnerabilidades sem que houvesse disparo de um único tiro.

Na fronteira entre Colômbia e Venezuela, onde atuam grupos armados, cartéis e forças regulares, técnicas de spoofing já poderiam ser exploradas para confundir drones de vigilância, ocultar rotas de contrabando ou desviar unidades militares. Nesse tipo de cenário, a guerra eletrônica se mistura ao crime organizado, criando uma zona cinzenta de difícil responsabilização.

Na Amazônia brasileira, a ameaça se amplia. Interferências localizadas poderiam ser usadas para proteger operações ilegais de garimpo, madeira e drogas, cegando temporariamente radares e aeronaves. Se ampliadas por um Estado hostil, essas ações poderiam comprometer o controle territorial. No Atlântico Sul, onde estão as rotas de exportação e a Margem Equatorial, ataques de spoofing ou jamming colocariam em risco a logística do agronegócio, da mineração e da exploração de petróleo.

Esses cenários não são ficção: são projeções plausíveis diante de exemplos recentes em zonas de conflito. No contexto latino-americano e caribenho, onde as tensões são reais e crescentes, o uso do GNSS como arma híbrida já é um risco presente.

Conclusão — soberania informacional e territorial

Os sistemas de navegação por satélite não são apenas mapas no celular. Eles são a engrenagem invisível que move aviões, navios, bancos, exércitos e plataformas de petróleo. No Brasil, essa engrenagem está nas mãos de outros. Sem GNSS, o país perde a capacidade de exportar, de operar financeiramente, de proteger suas fronteiras e de garantir segurança no ar e no mar.

A questão não é técnica: é estratégica. Depender de GPS ou Galileo é depender de Washington e Bruxelas. Ignorar o tema é condenar o Brasil a viver de empréstimo tecnológico, sempre vulnerável a uma decisão externa. No mundo multipolar que se desenha, soberania não é apenas bandeira no território, mas também o controle sobre o espaço invisível dos sinais.

Fica a pergunta final, incômoda e urgente:

se amanhã os Estados Unidos desligarem o GPS, quanto tempo o Brasil aguenta funcionando?

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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