O Estado reflete suas neuroses
O Brasil precisa olhar-se no espelho que o Alemão e a Penha devolveram: um reflexo de culpa, repressão e medo
Acabo de lançar a obra, “O Espelho – A Investigação das Neuroses Sociais do Século XXI – Appris/2025 e, com a efervescência do tema na mente fui impactado com a chacina patrocinada pelo governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, nos complexos do Alemão e Penha, o que me motiva a uma análise sobre o enfoque do livro.
A operação policial que resultou na morte de 132 pessoas, no início desta semana, ultrapassa a tragédia numérica. É o retrato mais nítido das neuroses sociais de um país adoecido pela violência institucional e pela normalização do inaceitável. O Estado, que deveria ser o espelho da razão coletiva, tornou-se o reflexo distorcido de uma sociedade em permanente estado de medo, culpa e repressão.
Na perspectiva psicanalítica e sociológica explorada em “O Espelho – A Investigação das Neuroses Sociais do Século XXI”, a civilização moderna vive sob o império do poder disciplinar, descrito por Michel Foucault, e do superego coletivo, formulado por Freud. O que se viu nas vielas do Alemão não foi apenas uma operação de segurança pública — foi a atuação do superego social em sua forma mais crua, punindo corpos pobres e negros para reafirmar uma ilusória sensação de controle.
A psicanálise nos ensina que, quando a repressão substitui o diálogo, o recalque retorna sob forma de violência. Freud chamou isso de “mal-estar na civilização”; Lacan veria aí o triunfo do discurso do mestre — aquele que se impõe sem escuta, que mata para não ouvir o outro. O Estado brasileiro, tomado por uma neurose de onipotência, age como se pudesse extirpar o mal eliminando o sintoma. Mas o sintoma — o crime, a pobreza, a desordem — é expressão da própria estrutura que o produz.
No campo sociológico, essa operação é a atualização de um velho ritual de purificação. A chacina é o sacrifício simbólico que reafirma a ordem, ainda que essa ordem seja construída sobre cadáveres. Foucault já havia apontado que o poder não apenas pune, mas também administra a vida — e, quando decide quem deve morrer, torna-se biopolítico. No Brasil, essa biopolítica é seletiva: regula o corpo branco, educado e produtivo; extermina o corpo negro, periférico e desempregado.
Vivemos o que Byung-Chul Han chamaria de sociedade do cansaço, mas aqui o cansaço é de quem morre — não de quem comanda. A exaustão moral se expressa na indiferença com que parte da sociedade assiste a 132 mortes e diz: “eram bandidos”. É o ponto mais agudo da neurose da normalização: transformamos o horror em rotina e o sangue em estatística.
Mas há algo mais profundo. A chacina do Alemão e da Penha é o espelho de um país que nunca se reconciliou com o próprio inconsciente histórico. A escravidão, o racismo estrutural, o autoritarismo policial e o desprezo pelos pobres permanecem recalcados, mas retornam, como todo conteúdo reprimido, em atos violentos e irracionais. O Estado, nesse sentido, age como um neurótico que tenta controlar o incontrolável, projetando no outro — o favelado, o jovem negro — o inimigo interno que habita em si mesmo.
A psicanálise social de “O Espelho” sugere que a violência institucional é uma forma de gozo: o gozo sádico do poder em punir e o gozo masoquista da sociedade em consentir. Trata-se de uma catarse coletiva, um espetáculo de morte que reafirma o narcisismo da autoridade. No palco dessa neurose, a favela é o cenário onde o Estado encena sua própria insanidade, acreditando que mata monstros quando, na verdade, apenas os projeta.
A solução, se há alguma, começa naquilo que Camus chamava de revolta lúcida — o ato de recusar o absurdo sem ceder à barbárie. É preciso revoltar-se contra a lógica que naturaliza o massacre, contra a ideologia que confunde segurança com extermínio e contra a estrutura social que cria, pune e repete o mesmo ciclo.
O Brasil precisa olhar-se no espelho que o Alemão e a Penha devolveram: um reflexo de culpa, repressão e medo. Só ao reconhecer essa imagem — e não ao destruí-la — poderá iniciar a verdadeira cura. Porque a chacina não foi um desvio da ordem. Foi a própria ordem que se revelou doente.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



