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      Paulino Cardoso

      Historiador, analista geopolítico e Editor do Mundo Multipolar

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      O espectro da total dominação

      Nel Bonilla, ao dissecar o modo de reprodução de elites atlanticistas na Europa, nos possibilita compreender como os EUA exercem seu softpower

      Presidente dos EUA, Donald Trump - 16/07/2025 (Foto: REUTERS/Umit Bektas)

      Por Paulino Cardoso - Donald Trump realmente fez um favor incrível ao Governo Lula ao, baseado em informações equivocadas acerca da conjuntura política brasileira, imaginar que poderia matar dois coelhos com uma cajadada só: amedrontar os países do Sul Global fustigando a presidência brasileira dos BRICS e, de quebra, dar uma forcinha para seu vassalo da América do Sul. Caso o presidente Lula saiba (e queira) aproveitar esta será uma ótima oportunidade para sair das cordas, amedrontar o Congresso Nacional, colocar um freio na mídia corporativa, além de manter sua base mobilizada.

      Por outro lado, o agente laranja permitiu a dissidentes como eu, a aprofundar a reflexão sobre os desafios apresentados à esquerda brasileira para se livrar das amarras impostas pela subordinação ao Partido Democrata estadunidense e , na falta de um outro termo, democracias liberais europeias.

      Enquanto burilava sobre isto, eis que me cai às mãos, virtualmente, uma entrevista de Pascal Lottaz, professor de origem suíça radicado no Japão e pesquisador de Estudos da Neutralidade, com Nel Bonilla,  escritora e pesquisadora, responsável pelo Substack “Worldliness: The Threads Connecting Geopolitics”, com o seguinte título:Elites Manipulados: A Guerra Mental de Washington Contra a Europa , aqui o link com a versão em português. Entusiasmado, fui direto ao artigo que foi objeto da conversa.
      Em Captura de Elite e Autodestruição Europeia: A Arquitetura Oculta da Hegemonia Transatlântica ,  é possível compreender a postura da liderança alemã entre a  sabotagem do Nord Stream e a concordância em gastar de 5% PIB em armas da OTAN. Qualquer um com dois neurônios estranha a postura antinacional dos líderes europeus, marcada pela pela genuflexão diante do “Daddy Trump.”.

      A Chave explicativa está em uma citação relevante em que o “ Secretário de Estado de Woodrow Wilson, Robert Lansing, ditou o memorando de 1924 sobre os "jovens mexicanos ambiciosos" . Você conhece a frase: abram nossas universidades para a elite deles, inunde-os com os valores americanos, e eles governarão o México para nós: melhor, mais barato e sem um único fuzileiro naval.”

      Segundo ela, cem anos depois de Lansing ter definido o projeto, a Alemanha tornou-se o seu exemplar mais perfeito. Quando o gabinete de Olaf Scholz deu sinal verde para a destruição do Nord Stream 2, um ato de autossabotagem econômica sem benefício estratégico plausível para a Alemanha, e Merz, agora chanceler, prometeu nunca mais usá-lo, eles estavam traindo a Alemanha. 

      E, ponto importante,ao mesmo tempo, “cumpriam um destino biográfico forjado a partir de seus horizontes limitados, fabricado em seminários da Ivy League, oficinas do Pentágono e nos aposentos forrados de veludo da Ponte Atlântica .”

      Por que as elites europeias estão incendiando a própria casa?

      Nos fazendo lembrar Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém (2020), Nel Bonilla nos faz ver que ,” a resposta não reside na corrupção pura e simples ou no fervor ideológico. É muito mais banal e muito mais eficaz. A resposta também reside em biografias, redes e instituições . Também reside na hegemonia no nível da elite funcional: quando as ideias dominantes se tornam senso comum. E, neste caso, a hegemonia não é imposta apenas pela violência, mas pela educação, pelo recrutamento pela elite e pela repetição ritualizada.”

      Segundo ela, o professor Inderjeet Parmar (2019) denomina essa estrutura  de maquinaria suave das redes de conhecimento de elite : “ fluxos de pessoas, dinheiro e ideias ” que institucionalizam o consenso de Washington a Berlim. O Programa Fulbright , o Fundo Marshall Alemão , a Atlantik-Brücke , a Conferência de Segurança de Munique e as Reuniões Bilderberg são ecossistemas formativos. Eles selecionam, educam e elevam aqueles que podem levar a visão de mundo adiante.

      E aqui, nos interessa muitíssimo, “fundamentalmente, essas redes não são fóruns passivos. São a " tecnologia de poder essencial das elites americanas ": um modo de produção de conhecimento e seleção de pessoal que é espetacularmente bem-sucedido em reproduzir globalmente uma visão de mundo pró-EUA. A socialização da elite em si não é um processo benigno. Ela consolida suposições, define o que é politicamente imaginável e naturaliza a assimetria.

      Continuando, como observa Parmar, essas redes definem o que conta como " pensamento pensável " e " perguntas que podem ser feitas ". As fundações Ford e Rockefeller , a RAND Corporation , a Brookings , o Carnegie Endowment e o Center for American Progress são máquinas de integração de elite onde, por meio desses processos de integração e socialização, um certo tipo de conhecimento se transforma em poder. Assim, um broche Fulbright ou Atlantik-Brücke torna-se um crachá de acesso total a Bruxelas e Washington, D.C., e a maneira mais segura de "pertencer".

      Para Nel Bonilla, as elites europeias não são meramente influenciadas pelos Estados Unidos. Por meio desse sistema, elas são formatadas, profissionalmente moldadas e ideologicamente atreladas a ele. É claro que não total ou completamente, como se não tivessem autonomia alguma ou como se a história nacional não tivesse influência sobre essas elites, mas cada uma das características dessas nações europeias dará um toque único à visão de mundo transatlântica que norteia suas políticas.

      Essa mesma maquinaria destinada a formatação das elites europeias, também pode ser pensada, não apenas para cooptação das elites nacionais, mas, igualmente, naqueles personagens que, por meio das organizações não-governamentais irão compor a sociedade brasileira e que em tempos de democracia representativa, ocupam espaços de representação, controle social e depois ocuparão cargos públicos.

      Nel Bonilla, ao dissecar o modo de reprodução de elites atlanticistas na Europa, em especial, na Alemanha, nos possibilita compreender como os EUA exerce seu softpower, como se dá a cooptação desde a mais tenra idade. É sabido como ONGs, financiadas pela Fundação Ford, indicam jovens e potenciais lideranças para fazer seus mestrados e doutorados nos Estados Unidos. Quantas dessas pessoas passaram a ocupar lugar de visibilidade pública ou mesmo exercer cargos eletivos ou não. 

      Se sairmos da sociedade civil e formos para o espaço acadêmico, um lugar chave para reprodução da própria classe média, veremos que este mecanismo é muito mais visível. O mundo acadêmico, em especial nas ciências humanas, é pródigo em disseminar todas as ideologias pós-modernas, do multiculturalismo as identidades de gênero, que fantasiadas de conquistas civilizatórias, são instrumentos de fabricação de consenso e de exercício de uma geopolítica do conhecimento. Como dizia o velho Edgar De Decca, em O Nascimento das Fábricas (1991), “O estabelecimento do mercado é também o estabelecimento de um dado registro de , no qual os homens pensam e agem conforme determinadas regras do jogo”.

      Uns tontos esquerdistas brasileiros vibraram com a ascensão do D Link nas últimas eleições alemãs. Foi difícil explicar que eles fazem parte de uma esquerda consentida, a qual foi dada visibilidade de mídia e se tornou chave para impedir que a Aliança Sahra Wagenknecht, uma esquerda anti-sistema, anti-guerra e anti-woke fosse eleita para o parlamento alemão. 

      Em suma, Nel Bonilla pode nos ajudar a reconhecer os fios por meios dos quais os grupos à esquerda e à direita são cooptados pelas forças atlanticistas e que possibilitam no Brasil o exercício da dominação de espectro total, que não nos permite buscar alternativas nacionais e populares. 

      Em conclusão ela própria delineia a missão: “Substituir personalidades não será suficiente. A tarefa é desmantelar a linha de montagem biográfica que começa com intercâmbios de jovens financiados por fundações, passa por bolsas de estudos em think tanks e termina em gabinetes ministeriais ou conselhos corporativos. A menos que essa esteira seja rompida ou, pelo menos, diversificada para além da câmara de eco do Atlântico, quaisquer "caras novas" replicarão os mesmos reflexos estratégicos. A alternativa é gritante: testemunhar sua nação sangrar a serviço das elites de outro império ou recuperar a capacidade de decidir seu próprio futuro.”

      “A escolha, portanto, não é mais entre status quo e reforma, mas entre hegemonia e sobrevivência . A janela para um desalinhamento pacífico pode estar se fechando, mas ainda não se fechou. Aprender com a história não oferece garantias, mas oferece oportunidades de interrupção.”

      Fonte em português:https://sakerlatam.blog/captura-da-elite-e-autodestruicao-europeia-a-arquitetura-oculta-da-hegemonia-transatlantica/Fonte original:https://themindness.substack.com/p/elite-capture-and-european-self-destruction

      Referências:

      ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.DE DECCA, Edgar. O nascimento das fábricas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.

      2121 citações no total em Dimensions.

      PARMAR, Inderjeet. Redes de Conhecimento de Elite Transnacionais: Gerenciando a Hegemonia Americana em Tempos Turbulentos. Security Studies , Volume 28, Número 3, 27 de maio de 2019, pp. 532-564(33) . DOI: https://doi.org/10.1080/09636412.2019.1604986

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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