O complexo de vira-lata como projeto político
Esse complexo de vira-lata serve como blindagem para o entreguismo
A ideia de que o brasileiro sofre de uma baixa autoestima natural — um defeito cultural que nos faria olhar sempre para baixo e pra fora — é uma meia verdade que encobre o essencial. Viralatismo é o nome. Esse sentimento vem da tutela, é promovido, cultivado, reforçado e usado como ferramenta política. A classe média tá repleta de viralatas orgânicos. É um projeto que atravessa séculos e serve a interesses muito claros.
Desde o Império, e com mais força ao longo do século XX, as elites brasileiras venderam a imagem de que o país só funciona quando copia modelos estrangeiros. O progresso, nos seus discursos, sempre vem de fora: do capital estrangeiro, da gestão importada, da “modernização” que exige abrir mão do que é nosso. Essa lógica modulou políticas econômicas, culturais e educacionais, criando uma mentalidade que associa desenvolvimento à subordinação.
O resultado é um país que duvida de si mesmo. A mídia e o sistema de ensino repetem que somos incapazes de gerir nossas riquezas, que nossa cultura precisa ser validada em Paris ou Nova York ou Miami para ter valor, que nossa política só será eficiente quando for “profissionalizada” segundo padrões externos. Assim, cada privatização, cada acordo desigual, cada corte em nome da “responsabilidade” aparece como sacrifício inevitável para nos tornarmos “civilizados”. Nelson Rodrigues, um conservador lúcido, captou isso ao falar do “complexo de vira-lata” como um traço humilhante, mas não inevitável. Muito antes, Manoel Bomfim, em América Latina: Males de Origem, já expunha o mecanismo: “Todo o pensamento político se resume em conservar as coisas como estão, em manter a presa. Para isto, fecham-se as colônias completamente, absolutamente, ao resto do mundo; toda a sua produção tem de passar pela metrópole, que deve tirar a sua parte.” A lógica colonial sobrevive, apenas trocando de roupagem.
Esse complexo de vira-lata serve como blindagem para o entreguismo. Ele transforma a entrega do patrimônio público e dos recursos naturais em ato de bom senso. Converte o país em fornecedor dócil de commodities, em mercado aberto para produtos e capitais alheios, e em consumidor da ideia de que autonomia é sinônimo de atraso. Nossa capacidade de gerar riquezas é sempre alinhada ao entreguismo. Um povo que se vê como incapaz não disputa poder; apenas agradece pelo que sobra.
Os exemplos são abundantes e escandalosos. Vão de campanhas publicitárias que tratam o Brasil como “atrasado por natureza” — para justificar reformas que retiram direitos — até governos que vendem estatais lucrativas a preço de banana sob o pretexto de “modernizar”. A cabeça baixa e a vassalagem para os EUA. Incluem ainda políticas que celebram cada “investimento estrangeiro” que desmonta a indústria nacional e a dependência tecnológica, a obsessão por selos de validação de agências e fundos internacionais, e a mania de transformar produtos, artistas e saberes brasileiros em algo “aceitável” só quando passam por chancela estrangeira. Em todos os casos, a mensagem é a mesma: sozinhos, somos um erro; com tutela, talvez valhamos algo.
Essa construção também atua no plano simbólico. Não se limita à economia. Ela molda a forma como o brasileiro é ensinado a enxergar a si mesmo: como massa passiva, incapaz de governar ou criar, sempre à espera de tutores. É essa visão que sustenta tanto o cinismo das elites quanto o conformismo popular, naturalizando a desigualdade e enfraquecendo qualquer projeto de transformação real.
Desarmar esse mecanismo exige expor o que ele é: não uma questão de psicologia coletiva, mas uma peça central de um projeto político. Politizar e dar voz e espaços à discursos e práticas que contrariem deveria ser prioridade. Enquanto o complexo de vira-lata continuar sendo tratado como traço cultural, seguirá operando como uma das armas mais eficazes para manter o Brasil ajoelhado.
A propósito: viva Manoel Bomfim!
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