O Brasil é dos brasileiros, babacas
"Que o fascista Bananinha tenha sentido o baque: o Brasil é dos brasileiros, não dos vira-latas que celebram fritando hambúrguer no McDonald's. Golaço!"
Começo o texto, pelo vocativo do título. O babacas, do vocativo, eu gostaria que fosse apenas um ataque ao Bananinha, ao Carluxo e ao Nicolas Chupetinha. Infelizmente, a motivação do texto não é apenas consignar o golaço de placa que marcaram Sidônio e Alexandre Padilha, e que mereceu resposta imbecil do fritador de hambúrgueres, Eduardo Bananinha que sim, objetivamente, não crê que o Brasil deva ser dos brasileiros.
Há que se procurar algum móvel psicanalítico e ideológico da reação destemperada de alguns da ultra-esquerda contra o lema “o Brasil é dos brasileiros”, que não é um movimento nativista, muito menos um movimento xenofóbico, mas uma jogada de marketing genial e uma resposta óbvia ao entreguismo dos fascistas no Brasil e das falas neocoloniais e imperialistas de Trump. Comparar a frase no boné na Câmara com movimentos fascistas europeus, que têm como lema “Alemanha para os alemães” ou coisas parecidas, que inspiraram movimentos retrógrados e reacionários como os coletes amarelos franceses ou o Brexit inglês, é demonstrar desconhecimento histórico, semiótico e de sintaxe.
Marx dizia que toda ideologia é uma falsa consciência, até mesmo o marxismo, porque, de fato, toda ideologia envolve o mundo numa interpretação que vem previamente delimitada por um conjunto de ideias sistêmicas, que vão adaptar o mundo ao sistema de crenças de quem o vê. O mundo não é, num sentido materialista empírico grosseiro. O mundo é sempre uma interpretação do mundo, não só para quem é idealista, mas para quem é materialista dialético. É necessário um aparato conceitual avançado para decifrar o mundo, assim, todo sistema de crenças é temporal, datado e falho. Olhando de uma outra forma, todos nós somos ideológicos e todas as ideologias são falhas, e é óbvio que uma ideologia será tanto mais próxima da verdade quanto maior for o seu compromisso revolucionário de não falsear a realidade para corresponder a certos interesses de classe, castas, grupos, etc. É a teoria do mirante, quanto maior for o alcance e o interesse de intervir na realidade de maneira eficaz para a evolução da humanidade, mais uma determinada ideologia terá menos falseamentos, menos adaptações e reificações do mundo real. Na teoria do mirante, a classe mais explorada e com maior interesse de revolucionar o mundo e que tem a ideologia mais perto das verdades históricas.
Toda ideologia pode necrosar, até mesmo o materialismo dialético, que defendo que, ainda, é a ideologia mais avançada para desvelar o mundo. A ideologia é este duplo, se um lado é sempre uma forma de falseamento da realidade – porque corresponde a determinados interesses de grupos ou de classes –, por esta mesma característica é ela também que desvela e revela o mundo aos homens – já que no duplo papel da ideologia, falseamento, desvelamento, nenhuma outra ideia contemporânea (incluindo-se aí a fenomenologia, o estruturalismo e o pós estruturalismo e todas as variações pós modernas de reação ao marxismo) tem e vitalidade e a ideia de análise integral e sistêmica do mundo, ou o compromisso de transformá-lo e revolucioná-lo que tem o marxismo.
Mas sim, até o marxismo, até o materialismo dialético pode caducar, pode se tornar uma cópia caricata da ferramenta de análise elaborada, nos princípios, por Marx e Engels, e virar uma caricatura reificada anacrônica do processo dialético de análise, vulgarização mecanicista não dialética que fez com que o próprio Marx dissesse “eu não sou marxista”, quando confrontado com as versões rebaixadas do materialismo dialético que eram popularizadas por Lafargue, como um dos exemplos.
Mas porque esta volta toda para falar do lema do boné usado pelos deputados de esquerda no Congresso, porque esta maçã é amarga, mas, mordido o primeiro pedaço, não há outra opção que não comê-la até o fim. É importante esclarecer que nem sempre a aparência de marxismo que está sendo vendida na internet, por youtubers habilidosos em conseguir seguidores muito mais do que em estudar a teoria marxista, tenha função progressista ou esteja conectada a interesses de classes, grupos, ou nações libertárias e revolucionárias.
Aliás, há um fenômeno que só pode ser analisado a partir da visão da Indústria Cultural ou da Sociedade do Espetáculo, que é o nicho de consumo, visualização, fidelização, engajamento, venda e, por fim, monetização de certos youtubers meio coachs de ultra esquerda, que se fantasiam quixotescamente de revolucionários e servem sempre como fast food, ideia pré-concebida fácil e digerível, no pior estilo Paulo Coelho, a saída revolucionária imediata para todos os problemas que afligem o Brasil, e revolução para o segundo seguinte; até porque, de fato, estes “ideólogos” não são ideólogos no sentido de cristalização da missão e das ideias da classe mais progressistas e explorada da sociedade, senão sujeitos fora da classe trabalhadora, que falam para um nicho de consumo de classe média e média alta radicalizada, que consome a revolução como quem consome um cogumelo shitake ou uma cerveja puro malte. É uma fatia da classe média, falsamente radicalizada, alguns radicalizados pela experiência de confrontação no movimento estudantil, hoje sem nenhum elo radicalizado no Brasil com o movimento sindical ou operário, mas que, de fato, não colocam em risco nada, mas estão propensos, de forma existencialista – como um Alonso Quijano que consumia livros de cavalaria como se fosse a realidade última do mundo – a consumir as lives as mais radicais possíveis sobre todos os problemas reais do Brasil. É uma pregação para convertidos, mas que fideliza uma claque que fica satisfeita em participar, de alguma forma, para a futura revolução imaginária dos coachs do socialismo mágico.
Consideram-se moralmente superiores e, para problemas políticos reais, geralmente respondem com um discurso moralista, caricato, com alguma citação de Marx, Lênin, Trotsky e Stálin (dependendo da corrente a que pertençam) completamente deslocada da realidade na qual esta citação é utilizada, tal qual Quixote acreditava que a bacia do barbeiro era o capacete de ouro, elmo de Mambrino, e arrotam soluções revolucionárias para qualquer problema real, porque efetivamente não têm elo com qualquer movimento popular, organização operária, disputa política da vida real. Para o momento sórdido recuado da política no Brasil, no qual enfrentamos a ameaça real do fascismo, num esforço hercúleo de entendimento e aliança, com quem nós sabemos que não são nossos companheiros, eles respondem com 5 frases altissonantes pseudo revolucionárias que nada tem que ver com a realidade. É o povo do “não é só por 20 centavos” e “fora todos” revival. 2013 não acabou jamais.
Pois bem, dos mesmos autores do Fora todos! Nem Dilma nem Temer, agora vem a cantilena de quem não deveríamos usar a frase “O Brasil é dos brasileiros” porque estaríamos copiando um lema fascista.
São tantos erros numa mesma afirmação, que não sei nem por onde começar. Mas é melhor começar pela questão histórica. Se a gente considera que todo nacionalismo é reacionário, devemos jogar fora todas as guerras de libertação nacional, todo o processo de descolonização da América, África e Ásia, incluindo a revolução cubana. Fidel tem um artigo maravilhoso que tem o título “nacionalismo revolucionário e nacionalismo reacionário” que é definitivo. Para saber se um processo “nacionalista” é reacionário ou progressista, temos que ser ver as classes envolvidas na disputa, o programa e os objetivos finais da luta. A Revolução Cubana e a Revolução Sandinistas, nenhuma das duas começa como revolução socialista, o sandinismo é uma crença de libertação nacional progressista, mas não necessariamente socialista. Aliás, tanto José Martí, em Cuba, quanto Sandino, na Nicarágua, tinham os mesmos objetivos. Martí, Cuba para os cubanos, Sandino, Nicarágua para os nicaraguenses, lembrando, que como nem um e nem outro eram xenófobos, o conceito de Cubano ou Nicaraguense estender-se-ia indefectivelmente a todos que vivessem e morassem em seus países, sem exclusão de credo, cor ou raça. Algo tão límpido e claro como o dia, mas que tem gente que quer confundir porque tem dois móveis, um psicanalítico, o ressentimento com o governo Lula e com o PT, outro ideológico, confundir a temática para lucrar e lacrar, tentando achar pelo em ovo e diminuir o impacto avassalador que um simples boné teve contra as hostes fascistas.
Em lugar de ajudar na luta para desmascarar o falso patriotismo e o entreguismo dos fascistas bolsonaristas, estes lacradores quinta-colunas preferem atacar os aliados e brigar eternamente pelos seus 20 centavos de fama.
O segundo erro é semiótico. Todo texto é polissêmico e interpretativo. Se assim não fosse, seria muito difícil chegarmos à dialética materialista. O conceito de alienação tem origem religiosa e é, antes de tudo, ligado ao pecado original e à perda da conexão do homem com o divino, o homem é alienado por sua natureza pecadora e humana e só pode romper esta alienação através da graça de Deus, reconectando-se com sua natureza divina perdida. Depois, o termo foi sendo desgastado, em Hegel, dialético, mas idealista, é o desdobramento da Razão (que ao fim e ao cabo, num gênesis muito mais elaborado e sofisticado é uma ideia refinada de Deus) que se “aliena de si mesma” no mundo e que deve se reencontrar, ao fim e ao cabo, através da “astúcia da razão” e do “fim da história”. Aliás, reminiscências desta astúcia da razão e do fim da história permanecem nas versões mais vulgares do marxismo. Por fim, Marx, dialético, mas materialista, recolocou o mundo sobre os pés, retirando-o da posição de ponta cabeça, e criou a moderna teoria da alienação, que prescinde de uma astúcia da razão e de um fim da história – sim, há resquícios dos dois elementos em algumas previsões deterministas do próprio Marx – e que está ligada à venda da força de trabalho no processo capitalista e, com isto, a alienação das suas funções vitais e vitalizantes. Talvez nossos "coachs" marxistas e esquerdistas do século XXI, houvesse internet naquela época, viralizaram atacando Marx por utilizar termos reacionários, clericais e idealistas, já que para eles, palavras e frases não são polissêmicas. Se estudarem um pouco mais a história, talvez fiquem de cabelos arrepiados ao saberem que ideia da universalidade da igualdade dos homens está ligado à ideia da universalidade da graça em Deus, e que a teoria ateia e muito anticlerical comunista deve muito às ideias da terceira igreja, dos movimentos heresiarcas e messiânicos, incluindo as revoltas anabatistas, que foram criando nas bases primeiro camponesas e depois proletárias a ideia de um corpo que se comunica, que se irmana e se iguala na história. Na falta de polissemia histórica, acreditam que Marx saiu da cabeça do próprio Marx, numa partenogênese menos gloriosa do que a de Atenas que saiu da cabeça de Zeus. Entender as nuanças e contradições dos processos históricos nos ensina tolerância e polissemia.
A segunda questão é semiótica. A burrice semiótica desta esquerda que ajuda a direita é de dar dó. Uma frase tirada do seu contexto, é só uma frase. Giuseppe Mazzini, revolucionário italiano que lutou pela unificação da Itália em 1849, e que inspiraria, entre outros, Garibaldi, tinha o tema “Dio e Popolo” (Deus e povo). Segundo nossos queridos vulgarizadores pseudo marxistas, este liberal com ideias bem próximas dos anarquistas e lutador pela independência da Itália, nesta pobreza semiótica deles, viraria um precursor do fascismo, já que o lema de povo tinha que ver com Nação e Pátria. Olhar os lemas e frases fora do seu contexto pode levar a absurdos como este, que, aliás, já foram cometidos aqui por estas plagas, até na ridícula perseguição ao Padre Antônio Vieira, cuja estátua quase foi sequestrada por uma esquerda em transe quixotesco que não entendeu bulhufas da pregação apaixonada de Vieira contra a escravidão e o antissemitismo.
Por último, a questão é sintática. Toda palavra é polissêmica por essência, frases então! Podem trocar de lugar ou função como alguém trocar de roupa, várias vezes ao dia. William Wordsworth criou o conceito, que deve ser recuperado para os dias de hoje, de “suspension of disbelief” – suspensão da descrença –, para análise de textos literários, mas que devemos utilizar mais para a leitura de vários tipos de textos, até de memes. Há que se entender um texto, literário ou não, dentro do seu contexto histórico, motivação, papel social, forma. Isto leva a que evitemos confusões, como as que o maior político marxista de todos os tempos Lênin fez, por exemplo, ao analisar Nietzsche, e só conseguir enxergar no seu texto uma posição reacionária e pró absolutismo, sem visualizar a visceral crítica da moral religiosa e do homem ressentido, que seria depois o substrato do qual Freud tiraria a psicanálise e Adorno as motivações psicossociais para o fascismo – aliás, Sigmund Freud também. Lênin, maravilhoso dialético, não teve a devida distância histórica para analisar Freud e Nietzsche – aliás, basicamente, toda a Segunda e Terceira Internacional também, só a interpretação heresiarca de Escola de Frankfurt vai utilizar dos preciosos estudos de Freud para interpretar fenômenos tão intrincados como o fascismo, que sem a psicanálise freudiana, só podem ser observados a partir de uma psicologia behaviorista empirista, nada dialética. Todo texto é polissêmico, todo texto tem que ser visto dentro do seu contexto. O Brasil do boné de Sidônio e de Alexandre Padilha não é o Brasil dos patetas que marcham para um pneu ou prestam continência para a bandeira dos Estados Unidos. Não é um Brasil de pureza racial ou xenofóbica, é o Brasil de todos os brasileiros, nascidos aqui ou não, do poema Pátria Minha, de Vinícius de Moraes.
“(…) Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!
Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma;” (…)
Vinícius de Moraes, Poesia Completa, Nova Fronteira, 2017.
Que o fascista Eduardo Bananinha tenha sentido o baque de dizermos para Donald Trump e para todos os neocolonialistas, que o “Brasil é dos brasileiros”, nascidos ou não, filhos todos desta mátria tão explorada e infeliz, tão desigual é explorada, é razoável. Foi um golaço, a pátria deles não é o Brasil, vira latas que gozam até fritando hambúrgueres de um McDonald 's qualquer.
Que algum esquerdista caricato tosco tenha sentido o golpe e se aliado a grita deles, é incompreensível, não tem análise que os cure. Eu já comprei meu boné e vou usar, e aí repito:
“O Brasil é dos brasileiros, babacas!”
Neste caso, no plural, infelizmente.
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