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Jacqueline Muniz

Antropóloga e cientista política. Professora do bacharelado de Segurança Pública da UFF. Gestora de Segurança Pública

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O assassinato do ex-chefe da polícia e a reafirmação do esquema político-criminal do PCC

'O Estado não é só um avatar antagonista do crime organizado: ele é gestor de seus limites, expedidor de licenças tácitas e garante uma regulação seletiva'

Ruy Ferraz Fontes (Foto: Reprodução I Prefeitura de Praia Grande)

É a política, por meio das estruturas do Estado, que organiza o crime organizado. O monopólio criminal do PCC em São Paulo e sua capilaridade transfronteira não resultam apenas da violência em suas disputas armadas, do seu suposto “empreendedorismo bandeirante” ou do “modelo de negócios contemporâneos” de seus dirigentes. Esse poder depende dos consórcios político-criminais que o sustentam, garantem proteção e renovam continuamente os pactos que permitem ao PCC gerir mercados ilícitos com razoável estabilidade da por sua hegemonia politicamente construída. O Estado não tem sido apenas um avatar antagonista do crime organizado: ele é gestor de seus limites, expedidor de licenças tácitas e garantidor de sua regulação seletiva. Pode-se governar com ou contra o crime, conforme as oportunidades de alianças político-policiais-criminais.

Carreiras eleitorais são parte importante desse “esquema”. Funcionam como lavanderias do dinheiro do crime com seus Caixas 2, erguendo fachadas de legalidade e de reputação empresarial com o recurso luxuoso da contraprestação com emendas parlamentares duvidosas sem objeto definido e rastreabilidade. Campanhas, mandatos e lobbies reciclam capitais (i)lícitos, compram proteção institucional e viabilizam empreendimentos criminosos. O circuito capitalista do dinheiro sujo que vira limpo e volta a ser sujo, em sua diversificação de negócios, requer os carimbos, os “habite-se” e a papeleira do Estado, que transformam o ilegal em legal e o legal em ilegal, segundo conveniências políticas e arranjos eleitorais de ocasião. Assim, política, mercado e crime se amalgamam no esquema político-criminal em rede, que estabiliza provisoriamente as relações entre grupos criminais e atores institucionais, até a próxima disputa para renegociações. Sujeitos caem, sujeitos são substituídos para que o “esquema” siga aquém e além da alternância dos governantes e permaneça com sua política de produção de espetáculo a favor e contra parceiros estatais, conforme a conveniência do momento.

Diante da tragédia, como o recente assassinato do ex-chefe de polícia, as chamadas leis draconianas são propostas pelos oportunistas e populistas penais de plantão, que fazem as vezes de arautos dos bons costumes sociais e, ao mesmo tempo, de garotos-propaganda do crime. E o crime organizado agradece! Afinal, as chamadas “leis duras”, impraticáveis no mundo real, impossíveis de serem plenamente cumpridas, produzem limbos normativo-procedimentais. Nessas zonas de indeterminação florescem acomodações seletivas, favores informais e barganhas subterrâneas que fortalecem a economia política criminosa. Essa engenharia político-jurídica reduz os custos de operação da economia política criminal, favorecendo sua expansão em rede e de modo itinerante. Do mesmo modo, iniciativas como a PEC da blindagem parlamentar reforçam a impunidade e ampliam a proteção de agentes políticos que integram e operam algum esquema criminoso, fortalecendo as brechas para o enraizamento e ampliação de carreiras político-criminais.

As execuções espetaculares são parte da gramática pública dessa engrenagem. Assassinatos de alvos emblemáticos e com grande visibilidade e plateia, como o de um delator no Aeroporto de Guarulhos e o do ex-chefe da polícia de São Paulo, não são meros homicídios. São anúncios estratégicos que:

  1. Demonstram força operativa e competência coativa acumulada para fidelizar e conquistar novos parceiros;
  2. Revalidam consórcios político-criminais pelo efeito demonstração da capacidade de indução intimidatória pela sustentação de ameaças difusas e latentes com assassinatos espetaculares;
  3. Advertem contra quebras de acordos e os elevados custos políticos e morais com rupturas unilaterais;
  4. Reabrem ciclos de renegociação entre facções e destas com o Estado, oportunizando entregas eleitorais como saldos policiais e vantagens asseguradas nos negócios;
  5. Aprimoram as dinâmicas de corrupção, diversificando e mascarando a folha de pagamento a patrões, sócios, funcionários e prestadores de serviços;
  6. Reforçam e renovam a cartela de informantes e vigilantes dentro e fora do Estado;
  7. Exibem a facilidade e o baixo custo de eliminar testemunhas e autoridades como parte de uma tática publicitária de agregar mais valor à reputação criminal;
  8. Agravam a percepção coletiva de insegurança, legitimando respostas caricatas e simplistas aos clamores populares, que favorecem o funcionamento político-econômico do crime organizado;
  9. Autorizam ofensivas policiais varejistas, no estilo “enxuga-gelo”, que dão uma satisfação social provisória, trocando seis por meia dúzia: crime-ostentação, de um lado, e polícia de espetáculo, de outro.

Esse mecanismo multiplica seus efeitos perversos: o medo social converte-se em capital político para soluções autoritárias, enquanto os domínios armados, como o PCC, reforçam seus canais de negociação com a política e o mercado, possibilitando sua ampliação territorial, diversificação logística e de atividades econômicas. Matar com ostentação mostra-se lucrativo e de custo reduzido: regula mercados, reorganiza alianças e reafirma pactos de poder.

O assassinato do ex-chefe da polícia paulista não é uma ocorrência isolada. Ele materializa a reafirmação do esquema político-criminal, expondo as rentáveis relações entre organizações criminosas e Estado. Enfrentar essa engrenagem não significa criar novas cruzadas punitivas ou leis de exceção, mas desmontar os consórcios político-criminais e os limbos normativos-procedimentais que transformam a política em lavanderia e o Estado em gestor da economia criminal em rede e itinerante. Não adianta cortar na própria carne se os políticos produzem auto blindagem que impede a transparência, a luz do sol nos porões decisórios dos bastidores da política. Ao se olhar para dentro com lupa, pode-se ver com muito mais nitidez o que está do lado de fora, no mercado e indo além das quebradas e do varejo das bocas de fumo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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