O algoritmo quer dominar a América Latina
A soberania informacional está sendo minada — e as democracias da região, reprogramadas sem que ninguém perceba
Do Vale do Silício ao coração da política latino-americana, uma guerra invisível está em curso. A soberania informacional está sendo minada — e as democracias da região, reprogramadas sem que ninguém perceba.
O novo ciclo da dominação invisível - Há algo de profundamente enganoso na aparência de normalidade que ainda paira sobre as democracias latino-americanas. Enquanto os calendários eleitorais se sucedem e os rituais institucionais continuam a operar sua liturgia, uma outra realidade — subterrânea, tecnicamente sofisticada e estrategicamente coordenada — avança com força avassaladora: a colonização dos processos de subjetivação por forças externas ao campo democrático, operada por plataformas digitais, consórcios transnacionais de dados e aparelhos de guerra cognitiva. Estamos diante de um novo ciclo de dominação, mais difuso e menos visível, mas não menos brutal que seus predecessores.
A dominação já não se apresenta sob a forma clássica da força militar ou da ocupação territorial. Ela se infiltra como design, como algoritmo, como política de dados. Reconfigura a percepção coletiva, manipula afetos, desorganiza a memória e implode a confiança nas instituições pela lógica da saturação e do cinismo programado. O novo imperialismo não se impõe mais por tanques, mas por termos de uso. É assinado a cada clique, alimentado por cada gesto, sedimentado pela falsa sensação de autonomia que nos atravessa enquanto somos moldados por dispositivos que nos ultrapassam.
Neste contexto, a América Latina volta a ocupar o lugar que lhe foi historicamente destinado pelas lógicas do capital global: o de laboratório. O laboratório da financeirização nos anos 1990, o laboratório das privatizações forçadas, o laboratório da guerra de quarta geração e, agora, o laboratório da modulação algorítmica da política. Violência na Colômbia, lawfare na Argentina, instabilidade judicial e chantagem institucional no Brasil, desorganização democrática no Equador, sabotagem informacional na Bolívia — não são eventos isolados, mas expressões locais de uma mesma racionalidade global, orientada pela reorganização do poder em sua dimensão pós-soberana.
Este ensaio é, portanto, um chamado à leitura estratégica do tempo histórico. Propõe-se a mapear os contornos da guerra invisível que se alastra sobre o continente, a compreender o papel das Big Techs como agentes ativos de um novo projeto imperial, a interpretar o trumpismo não como exceção norte-americana, mas como tecnologia global de reorganização autoritária. E, sobretudo, a sustentar a tese de que a batalha fundamental do presente não é apenas econômica ou institucional — é cognitiva. E como toda batalha cognitiva, ela se decide antes de tudo na disputa pela percepção da realidade.
O mapa da instabilidade – América Latina como laboratório da guerra de quarta geração - A recorrência dos colapsos políticos, das rupturas institucionais e das guerras simbólicas na América Latina nas últimas duas décadas não pode mais ser explicada apenas pelos fatores internos que tradicionalmente compõem a narrativa da instabilidade regional. A ideia de que a crise seria fruto de “ineficiência administrativa”, “corrupção endêmica” ou “populismo inconsequente” já não se sustenta frente à regularidade com que emergem, em diferentes países, as mesmas estratégias de sabotagem: uso seletivo do sistema de justiça, captura dos meios de comunicação, operações de desinformação massiva, chantagem econômica e o avanço coordenado de agendas autoritárias com roupagem institucional.
Essa regularidade é o que revela o caráter laboratorial da região. A América Latina opera hoje como campo de testes da guerra de quarta geração — uma guerra sem face definida, que dispensa a confrontação direta e aposta na fragmentação dos vínculos sociais, na implosão da confiança pública e na produção de um estado de caos controlado. Não se trata de golpes tradicionais, mas de processos diluídos, contínuos, que combinam ação jurídica, interferência digital, colapso informacional e o envenenamento lento das formas coletivas de sentido.
Na Colômbia, a militarização da política sob o pretexto do combate ao narcotráfico reatualiza a guerra permanente como forma de governo. No Equador, a criminalização seletiva de adversários políticos e a degradação das instituições democráticas caminham lado a lado com a intervenção silenciosa de consultorias norte-americanas ligadas à segurança e ao controle social. A Bolívia vive o retorno de discursos separatistas e tentativas de neutralizar o MAS por meio de campanhas judiciais e sabotagens midiáticas. Na Argentina, o lawfare atinge seu grau máximo com a condenação escandalosamente arbitrária de Cristina Fernández de Kirchner, figura central do campo progressista latino-americano, acusada e sentenciada em um processo que ignorou princípios elementares do devido processo legal, ancorado em ilações midiáticas e operações coordenadas por setores judiciais alinhados ao conservadorismo. A tentativa de banimento político de Cristina não é apenas um ataque a uma liderança específica, mas um experimento institucional para testar os limites da destruição simbólica de adversários ideológicos por vias pseudolegais. Paralelamente, o país assiste à implementação de políticas de choque calcadas em um discurso de moralização seletiva e eficiência neoliberal, que opera como cortina de fumaça para um processo acelerado de desmonte do Estado e entrega de ativos estratégicos ao capital financeiro internacional. A Argentina tornou-se, nesse sentido, um espelho invertido da democracia: tudo funciona formalmente, enquanto os fundamentos populares do sistema são sistematicamente esvaziados. E no Brasil, o cenário de chantagem parlamentar, erosão legislativa e captura das agências reguladoras expõe a vulnerabilidade estrutural de uma democracia permanentemente sitiada.
Nada disso ocorre por acaso. O padrão é reconhecível e revela uma forma de guerra expandida, que se desloca do campo militar tradicional para os territórios da linguagem, da confiança, da percepção e do desejo. O inimigo já não precisa se anunciar com bandeiras estrangeiras: ele se apresenta como defensor da liberdade de expressão, como guardião da moral pública, como promotor do progresso técnico — e, muitas vezes, como plataforma. A guerra de quarta geração é justamente essa: a guerra onde o inimigo se dissolve na própria forma da normalidade. Reconhecer esse padrão é o primeiro passo para reverter sua lógica. Porque aquilo que parece apenas o caos local pode, na verdade, ser a arquitetura de uma nova forma de dominação regional, que opera por dentro das instituições, neutraliza a política pela via judicial, e silencia a soberania por meio da exaustão.
Big Techs, MAGA e o neocolonialismo 4.0 - No centro do novo arranjo imperial que se consolida sobre a América Latina, não estão mais os exércitos ou os acordos diplomáticos explícitos, mas as plataformas digitais — entes corporativos transnacionais que operam acima dos Estados e modulam a realidade por meio de códigos opacos, termos de uso inquestionáveis e infraestruturas que já não pertencem à esfera pública. Google, Meta, Amazon, Palantir, X/Twitter e outras corporações do Vale do Silício deixaram de ser empresas de tecnologia: são hoje atores geopolíticos, com capacidade de reorganizar fluxos de informação, manipular percepções e intervir diretamente na política doméstica de nações soberanas.
Essas empresas compõem a espinha dorsal do que podemos chamar de neocolonialismo 4.0 — uma forma de dominação que prescinde da presença física do colonizador e se realiza pela colonização da infraestrutura informacional e da subjetividade coletiva. A lógica da extração permanece, mas agora o que se extrai não são apenas minérios ou riquezas naturais: são dados, padrões de comportamento, afetos, sistemas de crença, estruturas de decisão. Trata-se da privatização da cognição, da terceirização do pensamento, da conversão do cidadão em recurso computacional explorável.
Esse novo regime de dominação está intimamente articulado ao projeto MAGA, nascido no coração do trumpismo, mas já expandido como tecnologia geopolítica de reorganização da extrema-direita global. O que se convencionou chamar de trumpismo não é apenas uma aberração política estadunidense: é um dispositivo estratégico, um vetor de disrupção institucional, baseado na saturação de informações contraditórias, no ataque permanente às mediações democráticas e na mobilização afetiva de massas ressentidas, conectadas por plataformas que operam como verdadeiras máquinas de guerra semiótica.
O MAGA, assim como sua versão brasileira — o bolsonarismo —, serve como cavalo de Troia para os interesses das Big Techs: ao promover o colapso da política representativa, o desprestígio do saber técnico e a demonização do Estado, esses movimentos abrem espaço para uma nova forma de governança: a governança algorítmica privatizada, na qual decisões públicas passam a ser mediadas por plataformas, dados e modelos de IA cujo controle escapa completamente aos cidadãos.
A captura institucional promovida por essas corporações não é apenas financeira ou legislativa — é ontológica. Elas reconfiguram o que é a realidade, o que pode ser pensado, o que aparece como possível. Em outras palavras, o poder colonial do século XXI opera não mais sobre o território, mas sobre o imaginário. E é por isso que a resistência precisa deixar de olhar apenas para o campo jurídico ou institucional: é no plano da informação, da percepção e da linguagem que a nova dominação se consolida.
Essa lógica se manifesta de forma particularmente cruel na América Latina, região que, após séculos de pilhagem colonial, vê-se agora submetida a uma nova forma de subordinação — não mais imposta por exércitos estrangeiros, mas por nuvens de dados, plataformas de modulação e sistemas algorítmicos que operam acima da soberania estatal. Os países latino-americanos, com estruturas institucionais fragilizadas e elites historicamente subalternas aos interesses externos, tornam-se presas fáceis desse novo arranjo neocolonial.
A guerra que se trava no continente já não busca apenas derrotar governos progressistas: ela visa impedir a própria imaginação de alternativas. Sabotar qualquer horizonte de projeto popular, democrático e soberano tornou-se o objetivo central das máquinas discursivas articuladas em rede, sustentadas por uma infraestrutura técnica que pertence, em sua quase totalidade, a interesses sediados nos Estados Unidos.
É nesse ponto que América Latina e Vale do Silício se encontram de forma brutal: de um lado, a pulsão histórica por autodeterminação, justiça social e soberania popular; de outro, uma arquitetura tecnopolítica de contenção, articulada por plataformas privadas que operam como novas metrópoles digitais, controlando o fluxo da informação, o alcance das vozes dissidentes e a própria gramática do possível.
Neste cenário, resistir não é apenas uma tarefa política: é uma luta pela reapropriação da linguagem, da atenção e da memória coletiva. E o futuro da democracia na América Latina dependerá, em grande parte, da capacidade de seus povos em romper com esse novo colonialismo invisível — antes que todas as formas de pensar em liberdade sejam moduladas até o esgotamento.
A guerra contra a soberania informacional - A ideia de soberania sempre foi objeto de disputa. No século XIX, lutou-se por fronteiras e território. No século XX, pelo controle dos meios de produção e dos sistemas políticos. No século XXI, porém, a soberania desloca-se para uma arena ainda mais profunda e invisível: a arena da informação. Aqueles que controlam os fluxos informacionais, as plataformas de comunicação, os bancos de dados, os algoritmos de decisão e os sistemas de classificação da realidade, controlam não apenas o presente, mas também o futuro possível. É essa a natureza da guerra que se trava hoje contra os países da América Latina — uma guerra contra sua soberania informacional.
Essa guerra não se anuncia como tal. Não se apresenta com declarações formais nem com o rufar de tambores. Ela se disfarça sob a linguagem neutra da tecnologia, sob o jargão técnico das soluções inteligentes e sob o manto sedutor da inovação. O que está em curso é a despossessão sistemática das capacidades cognitivas e comunicacionais dos povos, por meio da privatização de suas infraestruturas digitais, da dependência de tecnologias opacas e da submissão ao regime de governança algorítmica imposto pelas plataformas do Norte global.
A soberania informacional, entendida aqui como a capacidade de um povo decidir, com autonomia e transparência, os rumos da sua própria memória, linguagem, comunicação e produção de sentido, vem sendo sistematicamente minada em nome da “conectividade”, da “eficiência” e da “interoperabilidade”. Países como Brasil, Argentina, Colômbia e México operam hoje com infraestruturas críticas que não controlam, alimentam sistemas de IA que não compreendem e se comunicam por meios mediados por corporações que os tratam como meros mercados de extração de atenção e dados.
Essa nova forma de colonização — a colonização informacional — é ainda mais perversa que as anteriores porque naturaliza a dominação. Ao contrário dos regimes coloniais explícitos, ela opera pela sedução, pela lógica do consentimento condicionado, pela dependência funcional de ferramentas que se tornam rapidamente indispensáveis. Quando uma sociedade entrega seus fluxos de comunicação, suas ferramentas de busca, suas redes de circulação simbólica e seus sistemas de autenticação à lógica das Big Techs, ela não apenas terceiriza sua infraestrutura — ela entrega a própria soberania do real.
E é na América Latina que esse processo atinge seu ponto mais agudo. Não apenas pelas desigualdades históricas, mas porque o continente tem sido alvo de uma estratégia articulada de contenção epistêmica e política, que visa neutralizar sua potência transformadora, sua história de insurgência e sua imaginação política. A guerra contra a soberania informacional, nesse sentido, é também uma guerra contra a possibilidade de um projeto popular continental.
Em um continente onde a memória é campo de disputa permanente, onde as narrativas históricas foram mutiladas pela pedagogia do esquecimento, e onde o presente é bombardeado por fluxos de desinformação coordenada, reconstruir soberania informacional é um ato radical de resistência. É compreender que a luta pela democracia já não se dá apenas no campo das urnas ou das leis — ela se dá no campo da infraestrutura, da linguagem e da modulação da consciência coletiva.
O retorno do velho projeto imperial por novas vias - O projeto imperial sobre a América Latina jamais foi abandonado. Apenas trocou de forma, de método e de linguagem. Se no século XX a dominação se dava por meio de ditaduras militares, golpes explícitos e ocupações indiretas via agências multilaterais, o século XXI inaugura um novo capítulo: o da colonização mediada por sistemas técnicos, por linguagens digitais, por infraestruturas opacas que atuam como ferramentas de subordinação sem necessidade de ocupação territorial.
O velho projeto imperial está de volta, mas vestido de inovação. Agora ele fala a linguagem do empreendedorismo, da governança algorítmica, da liberdade de expressão — desde que modulada por termos de uso. A guerra não se anuncia mais com tanques, mas com dashboards. O colonizador não impõe leis: impõe métricas. E a servidão se dá por meio da dependência funcional a sistemas que nos foram apresentados como inevitáveis.
As elites latino-americanas — historicamente formadas em diálogo com os valores e interesses do Norte — seguem desempenhando o papel de mediação interna dessa dominação. Como em ciclos anteriores, não há imperialismo que se sustente sem uma burguesia compradora, sem uma classe dirigente que aceite ceder a soberania em troca de estabilidade financeira, visibilidade internacional ou promessas tecnológicas de modernização.
Mas o que distingue esta nova fase da dominação é sua capacidade de operar sob a aparência de neutralidade técnica. Os dispositivos de captura não se apresentam como forças políticas, mas como soluções técnicas. O lawfare surge como moralização jurídica. A modulação algorítmica aparece como personalização de conteúdo. A desinformação industrializada é travestida de debate público. E a destruição da soberania informacional é vendida como integração ao mercado global de dados.
Nesse contexto, a América Latina é duplamente atingida: por um lado, como território periférico exposto à extração contínua de dados, recursos e saberes, sem retorno equivalente; por outro, como espaço simbólico cuja história de resistência precisa ser apagada para que o novo ciclo de submissão se torne palatável. A guerra híbrida, neste sentido, é também uma guerra contra a memória — uma tentativa de reprogramar os códigos da emancipação e destruir os referenciais simbólicos de soberania.
O que se consolida, portanto, é um modelo imperial sem imperador visível, onde a dominação se exerce por meio de redes, sistemas, plataformas e fluxos informacionais que escapam ao controle democrático. Não é o fim do imperialismo: é a sua sofisticação máxima. E é por isso que a América Latina segue no centro da disputa global — não apenas como campo de exploração, mas como trincheira de possíveis insurgências.
A luta contra esse novo imperialismo não poderá repetir os instrumentos do passado. Ela exigirá um novo léxico, novas alianças e, sobretudo, um novo horizonte epistêmico, capaz de compreender que os algoritmos, os servidores e os bancos de dados se tornaram o novo território a ser libertado.
Brasil — trincheira ou laboratório do colapso? - Nenhum outro país da América Latina condensa, com tamanha intensidade, as contradições, as potencialidades e as fraquezas da região diante do novo ciclo de dominação informacional como o Brasil. Ao longo da última década e meia, o país foi sendo sistematicamente preparado — não por um plano unívoco, mas por múltiplas intervenções articuladas — para ocupar a posição de laboratório avançado da guerra híbrida na América do Sul. O que está em jogo não é apenas o destino de uma democracia periférica, mas a possibilidade de um modelo de captura aplicável em escala continental.
A partir de 2005, com o fim das negociações da ALCA e o avanço de políticas voltadas à soberania econômica, energética e diplomática, o Brasil passou a ser alvo de um processo de erosão contínua das mediações democráticas, promovido por um ecossistema complexo que combina frações do sistema de justiça, conglomerados midiáticos, think tanks estrangeiros, plataformas digitais e atores políticos comprometidos com a desestruturação do Estado como projeto público.
Esse processo teve seu momento inaugural no lawfare contra o Partido dos Trabalhadores, mas não se esgotou ali. O que se construiu, ao longo dos anos, foi um regime de instabilidade permanente, no qual a normalidade institucional é substituída por uma coreografia de crises moduladas por ciclos de desinformação, chantagens legislativas e sabotagens cognitivas. O Estado brasileiro, ao perder o controle sobre seus meios de comunicação pública, sobre seus fluxos de dados estratégicos e sobre sua regulação algorítmica, tornou-se refém de estruturas externas que determinam o que pode ou não ser dito, pensado, proposto.
Nesse contexto, o Brasil não é apenas alvo — é também vetor de contaminação regional. As técnicas experimentadas aqui — da desmoralização seletiva via redes até a erosão da credibilidade institucional por sobrecarga semântica — são rapidamente exportadas, adaptadas e replicadas em países vizinhos. As eleições se tornam palcos de guerra assimétrica. A governabilidade se transforma em um campo de sobrevivência técnica. E a própria ideia de Estado como espaço público é corroída pela lógica de plataforma, que transforma toda esfera pública em um campo de monetização e conflito performativo.
A pergunta que se impõe, portanto, não é se o Brasil está sendo derrotado, mas se ainda é capaz de operar como trincheira — não só defensiva, mas construtiva — de uma outra política da informação. O tamanho do país, sua capacidade científica, sua diversidade sociocultural e seu capital simbólico acumulado ao longo de lutas históricas indicam que há matéria bruta para reconstruir caminhos soberanos. Mas esses caminhos exigem ruptura: com o mito da neutralidade tecnológica, com a dependência informacional, com a aceitação passiva de que os códigos que nos governam são inalcançáveis.
Caminhos possíveis — soberania informacional como horizonte estratégico do Sul Global - A América Latina encontra-se, mais uma vez, no centro da história — não como palco passivo de eventos externos, mas como território simbólico e geopolítico de uma disputa fundamental: a da soberania informacional. O que está em jogo não é apenas o controle sobre dados, plataformas ou redes. É a possibilidade mesma de que os povos da região possam continuar a produzir sentidos, memória, decisão política e futuro comum, sem que essa capacidade seja permanentemente mediada por algoritmos opacos ou subordinada aos interesses do Norte Global.
Soberania informacional não é um conceito técnico. É uma forma radical de autodeterminação. Significa que nenhum outro poder — corporativo, estrangeiro ou digital — pode se interpor entre um povo e sua capacidade de organizar o mundo simbólico em que vive. Significa garantir que as infraestruturas da linguagem, do saber, da comunicação e da decisão coletiva não sejam capturadas por dispositivos técnicos cujo funcionamento escapa ao controle democrático. É o nome contemporâneo da liberdade.
Diante disso, a América Latina não pode aceitar o lugar subalterno que lhe foi reservado no tabuleiro da era algorítmica: o de mercado de dados, zona de testes, massa de manobra digital. Ao contrário, ela precisa se afirmar como espaço estratégico de resistência informacional do Sul Global, onde se forjem alternativas à lógica extrativista das Big Techs e ao sequestro da linguagem promovido pela tecnocracia neoliberal.
Essa afirmação exige rupturas e invenções. Exige reconhecer que não há soberania política sem soberania informacional, e que todas as lutas emancipatórias do presente passam, de algum modo, pela disputa sobre quem define o que pode ser dito, lembrado, esquecido ou validado como verdade. Exige reconstruir capacidades públicas de produção e regulação informacional, com investimentos robustos em ciência, tecnologia e educação crítica. E exige, sobretudo, reencantar a política como campo coletivo de construção de realidade, resgatando-a da lógica privatista e performativa que domina o ambiente digital.
A história das lutas latino-americanas oferece mais do que analogias: oferece ferramentas. O continente que inventou formas populares de democracia, que desafiou ditaduras com organização de base, que construiu redes transnacionais de solidariedade, tem agora a tarefa de pensar e praticar uma soberania informacional enraizada nas epistemologias do Sul — colaborativa, crítica, pluriversal. Essa tarefa é urgente porque o tempo da dominação se acelera: algoritmos não esperam, e as subjetividades, uma vez moduladas em escala, tornam-se mais difíceis de recuperar do que territórios ocupados.
Mais do que uma agenda de políticas públicas, a soberania informacional deve ser compreendida como um projeto histórico latino-americano, capaz de articular a memória das lutas com os desafios das redes, da inteligência artificial e da cultura digital. Uma nova gramática da soberania está em gestação — e seu léxico não virá das potências do Norte, mas das margens que ainda resistem a ser capturadas.
Considerações finais — a urgência do tempo histórico - Há momentos na história em que a dominação não se anuncia com estrondo, mas com silêncio. Não por ausência de violência, mas porque a violência se sofisticou ao ponto de parecer parte da ordem natural das coisas. É nesse tipo de tempo que nos encontramos: um tempo em que a captura se faz pelo consentimento condicionado, em que o inimigo não usa uniforme, mas se traveste de plataforma, serviço, utilidade. E é precisamente por isso que a urgência não é apenas política — é ontológica. O que está em jogo não é só o que fazemos com a informação, mas o que a informação faz conosco.
A América Latina, historicamente moldada por ciclos de dependência, resiliência e insurgência, está diante de uma encruzilhada inescapável. Ou continuará operando como laboratório do colapso controlado, absorvendo tecnologias e discursos desenhados para sua fragmentação, ou se tornará trincheira de um outro tempo, onde a soberania informacional não seja uma política de contenção, mas um projeto emancipatório.
O risco maior não é o da derrota — é o da aceitação. É o da naturalização do estado de exceção sem tanques, da suspensão da democracia sem ruptura formal, da servidão sem tirano visível. Por isso, mais do que nunca, é preciso nomear o que nos atravessa, tornar visível o que se oculta sob o verniz da inovação, e organizar, de forma coordenada, a resistência que se impõe no campo mais estratégico da contemporaneidade: o da informação.
Este artigo não propõe respostas prontas. Ele propõe escuta, ruptura, elaboração e enfrentamento. Ele propõe, acima de tudo, que a América Latina recupere o direito de imaginar — e que o faça a partir de si, de suas lutas, de seus povos e de sua dignidade, sem pedir permissão àqueles que pretendem administrar nosso colapso como um subproduto da governança algorítmica global.
Porque se ainda há algo por inventar no mundo, essa invenção virá das margens, virá dos que resistem sem acesso, dos que criam sem infraestrutura, dos que ousam, mesmo sitiados, pensar a liberdade como horizonte não capturável.
O tempo é agora. E a soberania informacional é a chave — não do futuro, mas da sobrevivência.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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