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Reynaldo José Aragon Gonçalves

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global. Editor do site codigoaberto.net

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Lula, ONU e o resgate do iluminismo

Discurso histórico de Lula resgata valores universais de justiça, paz e soberania, enquanto Trump encarna o fascismo tardio, o ódio e a ameaça global

Donald Trump e Lula (Foto: Reuters | Ricardo Stuckert/PR)

Na abertura da Assembleia Geral da ONU em 2025, dois líderes expuseram projetos antagônicos de civilização: Lula, ao reivindicar o iluminismo para o século XXI, apontou caminhos de multilateralismo, direitos e soberania informacional; Trump, em contrapartida, atacou a ONU, ameaçou o mundo e reiterou a lógica do medo e da guerra. A disputa pela governança global ficou cristalina — entre a reconstrução civilizatória e o abismo fascista.

A cena inaugural

Na manhã de 23 de setembro de 2025, a tribuna da Assembleia Geral da ONU tornou-se o palco mais simbólico do nosso tempo. Não era apenas mais uma sessão anual: era a encenação viva de uma clivagem civilizatória. De um lado, Lula ergueu sua voz em defesa da razão pública, da paz duradoura e da justiça universal; de outro, Donald Trump desferiu ataques contra a própria instituição que simboliza a esperança de cooperação entre as nações. A distância entre os dois não era meramente retórica, mas ontológica: enquanto Lula se apresentava como continuador de um projeto iluminista de emancipação, Trump surgia como profeta do obscurantismo tardio, cultivando o medo, a xenofobia e a ruptura.

A cena revelou-se pedagógica: em um único espaço, dois projetos de mundo se confrontaram sem máscaras. A ONU, concebida como baliza do pós-guerra, estava em julgamento. Lula buscou revitalizá-la como instrumento de uma multipolaridade justa, fundada em direitos, ciência e solidariedade. Trump, ao contrário, transformou o púlpito em barricada do ressentimento, atacando migrantes, negando a crise climática, ridicularizando instituições e ameaçando países. Era como se a própria modernidade política estivesse em disputa: entre o legado iluminista e a regressão fascista, entre a promessa de governança global e a tentação da barbárie.

O resgate iluminista de Lula

No coração do discurso de Lula emergiu um gesto raríssimo no tempo presente: a tentativa de resgatar os valores iluministas em meio a um cenário global marcado pela erosão do direito e pelo triunfo da força. Mas não se tratava de um iluminismo abstrato ou retórico, e sim de um iluminismo encarnado na materialidade da vida — o direito de comer, estudar, trabalhar e viver sem medo. Ao lembrar que o Brasil voltara a sair do Mapa da Fome, Lula não ofereceu apenas um dado estatístico: apresentou uma prova histórica de que a democracia substantiva é inseparável da justiça social.

Esse movimento reposiciona o Brasil como arquiteto de uma nova ordem possível. Ao propor a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, já com mais de cem países, Lula mostrou que não basta denunciar o caos: é preciso construir alternativas concretas. Ele não se limitou ao ritual diplomático, mas expôs uma visão estratégica de mundo em que o combate à desigualdade não é caridade, mas fundamento da paz. Essa é a pedagogia iluminista em sua forma mais radical: a política não pode ser apenas gestão do presente, mas criação de futuro.

Ao falar de multilateralismo e da necessidade de reforma da ONU, Lula foi além do apelo genérico. Conectou sua própria trajetória — a do operário que enfrentou ditaduras e sobreviveu às tentativas de destruição política — à necessidade de coalizões globais mais democráticas. É nesse ponto que o seu soft power alcança densidade histórica: não se trata de carisma pessoal, mas da capacidade de articular blocos diversos (BRICS, G20, União Africana, CELAC, ASEAN) em torno de uma visão comum. Esse é o verdadeiro resgate iluminista: a universalidade não como abstração eurocêntrica, mas como projeto encarnado na experiência concreta dos povos do Sul Global.

Trump e o fascismo tardio

Se Lula apareceu na tribuna como herdeiro do iluminismo, Trump encarnou a face mais degradada do fascismo tardio. Seu discurso foi um desfile de ressentimento, mentiras e ameaças — não contra inimigos imaginários apenas, mas contra a própria arquitetura civilizatória erguida após a Segunda Guerra Mundial. Ao atacar a ONU e acusá-la de “financiar invasões” migratórias, Trump não apenas deslegitima a instituição: ele a transforma em inimiga, deslocando o centro de gravidade do debate mundial para a lógica do medo e da perseguição.

Esse não é o fascismo clássico dos anos 1930, com seus símbolos militares e rituais massivos; é o fascismo da era da guerra híbrida, adaptado à lógica algorítmica e midiática do século XXI. Trump não governa pelo convencimento, mas pela corrosão da confiança — tudo é dúvida, conspiração, ameaça. Quando nega a crise climática e chama as políticas ambientais de “fraude”, ele não se opõe apenas à ciência: aposta na desinformação como método, no negacionismo como arma. Quando ridiculariza aliados e despreza migrantes, cultiva o ódio como cimento político.

O que emerge é um projeto de regressão histórica: um mundo de fronteiras muradas, de guerras tarifárias, de xenofobia erigida como política de Estado. A lógica é a do bode expiatório permanente — sempre haverá um culpado a ser sacrificado para manter a chama do ressentimento acesa. É isso que faz de Trump não apenas um personagem caricato, mas uma ameaça estrutural: ele representa a normalização da violência, a banalização da mentira e a desintegração da governança global. Se Lula fala de futuro, Trump só oferece ruína.

Governança global em disputa

Na tribuna da ONU, a disputa não foi apenas entre duas personalidades, mas entre dois projetos de governança mundial. Lula apresentou uma visão em que o multilateralismo é condição de sobrevivência: reforma do Conselho de Segurança, criação de um conselho climático com autoridade real, fortalecimento do G20, do BRICS, da União Africana e da CELAC como polos ativos da multipolaridade. Seu discurso devolveu à ONU a função original de ser árbitro da paz e promotora de justiça global. Foi um chamado à cooperação, mas também uma advertência: sem instituições fortes e representativas, o sistema internacional desliza para a lei do mais forte.

Trump, ao contrário, utilizou o púlpito para fragilizar a legitimidade da ONU, transformando a instituição em alvo de escárnio. Ao ameaçar países que não se alinham à sua visão unilateral, operou como sabotador da governança global. Esse gesto não é um erro retórico, mas estratégia: corroer as regras para consolidar o domínio pela força econômica e militar. É a negação prática do multilateralismo e a tentativa de substituir a política internacional pela chantagem.

O contraste é estrutural: Lula aposta em uma multipolaridade cooperativa, capaz de articular Estados, blocos regionais e sociedades civis em torno de agendas comuns — da fome à regulação digital. Trump reforça o hegemonismo punitivo, no qual sanções, tarifas e ameaças substituem o direito e a diplomacia. Aqui se desenha a clivagem decisiva do século XXI: ou o mundo avança para uma governança plural, com legitimidade compartilhada, ou se rende à lógica predatória de uma potência que não aceita dividir poder.

Palestina, Gaza e a morte do iluminismo

Em Gaza, a modernidade perdeu o espelho. Quando Lula nomeia o que ali se vive — genocídio — ele não faz um gesto meramente retórico; convoca a gramática do Direito Internacional Humanitário e expõe o colapso de um princípio civilizatório elementar: nenhuma razão de Estado legitima a punição coletiva. Ao reconhecer os atentados do Hamas como indefensáveis e, ao mesmo tempo, apontar a desproporção e a ilegalidade do massacre, Lula recoloca a política no único terreno onde ela pode se sustentar sem trair a humanidade: o da proteção dos inocentes, do primado da lei e do horizonte de dois Estados. Trata-se de uma posição rara, porque não cede à chantagem moral do maniqueísmo que exige escolher entre o terrorismo e o extermínio — recusa ambos.

A palavra “genocídio” devolve gravidade a um mundo que se habituou à eufemização. Ela racha a armadura do cinismo que naturaliza a fome como arma de guerra, os deslocamentos forçados como rotina e a destruição de hospitais e escolas como “efeitos colaterais”. Ao denunciar o veto que impede a vontade majoritária da humanidade de se traduzir em resolução, Lula ilumina o mecanismo do descrédito: quando poucos podem bloquear a lei, o direito é degradado a ornamento. A ONU, construída para impedir barbaridades, vê-se sequestrada por quem a utiliza para justificá-las — e é exatamente aí que o discurso de Lula exige uma reforma que não é protocolo, é sobrevivência da ideia mesma de civilização.

Trump, por sua vez, tenta dissolver a tragédia na retórica do castigo sem fim: afirmar que reconhecer a Palestina “recompensa o Hamas” equivale a interditar a única via de futuro para um povo inteiro, punindo crianças e mulheres por um crime que não cometeram. É a lógica do bode expiatório aplicada a uma nação: transformar a vítima histórica em ameaça perpétua, para perpetuar a exceção. O fascismo tardio precisa desse expediente; sem um inimigo absoluto, sua política de medo se desfaz. Ao opor-se à solução de dois Estados e a qualquer limite jurídico para o uso da força, Trump cava a vala onde o iluminismo é sepultado — a negação do universal.

Ao insistir que o Estado palestino é condição de existência e não prêmio, Lula restabelece uma obviedade que o tempo tentou apagar: a paz não é dádiva do vencedor, é arquitetura de reconhecimento mútuo. Quando aponta a cumplicidade dos que têm poder para deter o massacre e não o fazem, ele convoca responsabilidade — não só de governos, mas de sociedades que se dizem democráticas. É aqui que o discurso se torna farol: reabre a via do direito num deserto de exceções, reafirma que o universal não é uma herança europeia, mas um projeto humano radical, hoje sustentado sobretudo pelo Sul Global. Se há um lugar onde o iluminismo ainda respira, é na coragem de dizer que nenhuma segurança se constrói sobre escombros de crianças. Queremos um século XXI civilizado? Então que se restitua à Palestina o direito de existir — e ao mundo, o direito de não se acostumar ao horror.

Clima e a economia moral da transição

Se a tragédia palestina expôs o colapso da promessa iluminista, foi no campo climático que Lula reposicionou o horizonte da humanidade. Ao proclamar que a COP30, em Belém, será “a COP da verdade”, o presidente brasileiro não apelou à retórica vazia: traduziu a urgência científica em imperativo político. Em um mundo que registrou 2024 como o ano mais quente da história, a omissão não é mais erro, mas cumplicidade criminosa. Lula lembrou que os países do Norte desfrutam de padrões de vida erguidos sobre dois séculos de emissões, enquanto o Sul enfrenta, simultaneamente, pobreza estrutural e colapso ambiental. A justiça climática, portanto, não é caridade, mas reparação histórica.

Nesse ponto, a fala ganha densidade estratégica. Ao propor um conselho climático dentro da ONU com poder real de monitorar compromissos, Lula desloca a questão do clima do domínio das conferências intermitentes para o coração da governança global. A mensagem é clara: não basta prometer metas — é preciso institucionalizar enforcement multilateral. É a tentativa de refundar o regime climático em bases de responsabilidade compartilhada, mas diferenciada, ancorando a solidariedade ecológica como pilar da ordem internacional.

Trump, em contrapartida, chamou as políticas ambientais de fraude, ridicularizou a ciência e reafirmou sua aposta na expansão predatória. Ao negar a crise, ele não apenas sabota compromissos globais: reitera a lógica extrativista que transforma a Terra em recurso a ser esgotado. O contraste é brutal: enquanto Lula fala em “economia moral da transição”, vinculando minerais críticos a novos pactos de soberania e dignidade, Trump reforça a necropolítica do lucro imediato. No campo climático, a disputa é literal entre vida e morte.

Soberania informacional e guerra híbrida

Poucos líderes têm compreendido com tanta clareza que a democracia do século XXI será decidida no terreno da informação. Lula fez da regulação das plataformas digitais e da inteligência artificial um eixo central de sua fala, vinculando soberania política à soberania informacional. Ao promulgar a lei de proteção de crianças no ambiente digital e propor datacenters sustentáveis no Brasil, sinalizou que o Estado não pode ser refém de conglomerados privados que colonizam mentes e exploram dados como novo minério. Para Lula, regular não é censurar: é garantir que os crimes e abusos já reconhecidos no mundo físico sejam punidos também no mundo virtual.

Essa formulação é sofisticada porque rompe a dicotomia que domina o debate global — liberdade versus controle. O que Lula propõe é deslocar o foco: não se trata de regular a palavra, mas de regular os sistemas que transformam ódio, misoginia e desinformação em mercadoria. Ao defender governança multilateral da IA em linha com o Pacto Digital Global, ele inscreve o Brasil na vanguarda de um debate que toca a própria essência da democracia contemporânea: a luta contra a captura algorítmica da subjetividade.

Trump, por sua vez, recorreu a truques e metáforas cínicas — zombou da ONU, atacou a imprensa, ridicularizou adversários. Seu discurso não apresentou uma política digital estruturada; foi espetáculo de ressentimento e desinformação. Mas é justamente aí que se revela a diferença: enquanto Lula busca construir um arcabouço jurídico e institucional que proteja a sociedade da guerra híbrida total, Trump opera como agente dessa guerra, amplificando paranoia, conspiracionismo e violência simbólica. O contraste não poderia ser mais claro: soberania informacional como política de Estado ou desinformação como método de governo.

O MHD e a análise dialética do momento

Ler os discursos de Lula e Trump apenas como opostos morais é insuficiente. Pelo farol do materialismo histórico-dialético, trata-se de uma síntese provisória das forças em choque no sistema-mundo. Lula representa a emergência de uma contra-hegemonia global, articulada pelo Sul e pelas lutas sociais que nele se enraízam. Trump, ao contrário, encarna a decadência de uma hegemonia imperialista incapaz de se renovar sem recorrer à violência, ao lawfare e à guerra híbrida. A ONU torna-se, assim, mais que um palco: é o campo de batalha onde se manifesta a crise da ordem internacional construída em 1945.

A contradição central revelada está entre a universalidade como horizonte emancipador — fome erradicada, clima regulado, soberania informacional como direito — e a particularidade reacionária, que tenta impor a lei do mais forte, o veto como privilégio e a desigualdade como destino. No discurso de Lula, a universalidade é reapropriada pelos povos historicamente submetidos: o iluminismo descolonizado, reencarnado no Sul Global. No discurso de Trump, o universal é negado para reafirmar a exceção: a guerra infinita, a fronteira armada, o medo como método.

O MHD nos obriga a enxergar que não estamos diante apenas de estilos discursivos diferentes, mas de projetos históricos antagônicos. De um lado, o movimento da história que aponta para um multilateralismo efetivo, para a democratização do sistema internacional e para a construção de novas formas de soberania. De outro, o esforço de manter privilégios coloniais sob novas roupagens — sanções, tarifas, algoritmos e fobias culturais. A luta de classes, hoje, atravessa fronteiras e se manifesta no choque entre um projeto civilizatório inclusivo e a regressão fascista global.

Conclusão: Lula como antagonista global do fascismo

O encontro entre Lula e Trump na tribuna da ONU cristalizou a luta de classes em escala planetária. De um lado, o presidente brasileiro resgatou os princípios universais que nasceram com o iluminismo, mas os reinventou em chave descolonizada: democracia substantiva, soberania informacional, justiça climática, direito internacional como limite ao poder. Do outro, Trump ofereceu a caricatura grotesca de um fascismo tardio, sustentado em medo, xenofobia, negacionismo e chantagem. O contraste foi tão radical que deixou de ser disputa de narrativas para se tornar disputa de destinos.

Lula emergiu como antagonista global do fascismo. Não apenas por sua biografia ou por seu carisma, mas porque seu discurso encarnou o projeto histórico do Sul Global de inscrever-se no centro da governança mundial. O Brasil, ao falar pela boca de seu presidente, assumiu a condição de ponte entre blocos e de voz que denuncia os crimes do presente sem se resignar à impotência. Trump, ao contrário, reduziu os Estados Unidos a bunker isolado, incapaz de propor futuro que não seja a repetição da violência.

O mundo está diante de uma encruzilhada: ou avança para um multilateralismo que dê substância à multipolaridade, ou afunda no abismo da regressão fascista. O discurso de Lula não foi apenas diplomacia: foi a exposição de um projeto civilizatório. Ao apontar o dedo contra o genocídio em Gaza, contra a farsa climática e contra a corrosão da democracia pelas plataformas digitais, ele reabriu a via da esperança. Se a história ainda guarda espaço para o universal, foi porque, em Nova Iorque, um líder global teve coragem de resgatá-lo do túmulo.

Artigo publicado originalmente em <código aberto>

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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