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Ricardo Nêggo Tom

Músico, graduando em jornalismo, locutor, roteirista, produtor e apresentador dos programas "Um Tom de resistência", "30 Minutos" e "22 Horas", na TV 247, e colunista do Brasil 247

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"In Fux we love"

Além dos elogios aos predicados do ministro carioca, a verborragia jurídico-literária sentenciou o julgamento, observa Ricardo Nêggo Tom

Luiz Fux - 02 de setembro de 2025 (Foto: Rosinei Coutinho/STF)

Pense em alguém capaz de fazer uma analogia entre a biografia de um general golpista e um poema escrito por Virgílio no século I antes de Cristo. Esse alguém se chama Andrew Fernandes Farias, advogado de defesa de Paulo Sérgio Nogueira, general do Exército que está sendo julgado por participação na trama golpista do 08/01. Evocando o nascimento de seu cliente na cidade de Iguatu, no Ceará, às margens do rio Jaguaribe, o advogado classificou o militar como “um bravo guerreiro nordestino” que deixou sua cidade natal aos 11 anos de idade para ser aluno do colégio militar em Fortaleza e realizar prodígios até atingir uma alta patente dentro da nossa caserna verde oliva. Por um momento, imaginei estar assistindo ao saudoso ator Lúcio Mauro interpretando o seu Aldemar Vigário na Escolinha do Professor Raimundo, enaltecendo as virtudes do seu mestre desde que era uma criança de cabeça grande em Maranguape.

O doutor Andrew Fernandes deu um show à parte. A cada argumentação que não conseguia se sustentar diante dos autos dos processos, ele inseria uma citação à alguma obra literária e a um autor consagrado. Além de Eneida, onde tentou comparar o general Paulo Sérgio a Eneias — personagem destinado por Virgílio a ser o ancestral de todos os romanos — sugerindo que o seu cliente deveria ser um exemplo para o povo nordestino, ele também recorreu a Juca Pirama, de Gonçalves Dias, à densidade das palavras de Ariano Suassuna e a Alice no País das Maravilhas, romance de Lewis Carroll. Este último, talvez na tentativa de associar o seu cliente à personagem, nos mostrando quão pura e bem-intencionada eram as suas intenções golpistas. No mundo maravilhoso de Alice sonhado pelos golpistas, Bolsonaro seria o lobo mau que iria devorar a menina socialista do Chapeuzinho Vermelho e livrar o país do comunismo. Como diria o inexorável e eminente escritor Charles Perrault: “Meu chapeuzinho jamais será vermelho.”

Data vênia, caríssimo advogado de defesa do general Paulo Sérgio! Mesmo a sua miscelânea jurídico-literária não convencendo no tocante aos autos do processo, devo confessar que, como professor de literatura, o nobre defensor do direito já ganhou a causa. Diferentemente do seu colega, Celso Sanchez Vilardi, um dos advogados de Jair Bolsonaro, que teve a pachorra de dizer em alto e bom som que Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de seu cliente, não é confiável. O homem que era uma espécie de faz-tudo do ex-presidente e que, entre outras coisas, mantém inviolável um segredo sobre o passado da ex-primeira-dama — conforme constatamos numa conversa de WhatsApp entre ele e Fábio Wajngarten, ex-advogado de Bolsonaro — não pode ser tratado como um ser ímprobo, um bilontra desprezível a ser rifado diante de todo o país. Com máxima vênia, doutor Celso, recorro à digníssima e ilustre cantante Beth Carvalho para manifestar a minha indignação com tamanha ingratidão: “Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão.”

Ainda sobre a defesa de Jair Bolsonaro, vale ressaltar que foi a mais fraca entre todas as sustentações. Único dos réus a apresentar dois advogados para a sua defesa, Jair assistiu de casa aos seus defensores apostarem na tentativa de anular a delação de Mauro Cid e convencer a sociedade de que Alexandre de Moraes teria criado uma “inovação jurídica” para colher provas sobre o seu envolvimento na trama golpista. Se não podemos considerar uma estratégia inteligente, devemos reconhecer que talvez fosse a única possível, uma vez que defender o indefensável é uma tarefa fora do alcance dos operadores do direito, mesmo sendo exímios conhecedores do uso do vernáculo como instrumento de convencimento. Me lembrei neste momento do sábio e bruxo Albus Dumbledore, que disse que as "palavras são, na minha nada humilde opinião, nossa inesgotável fonte de magia". Felizmente, no caso de Bolsonaro, será preciso muito mais do que todos os livros de magia de Harry Potter para livrá-lo da cadeia.

A defesa de Bolsonaro ainda tentou nos convencer de que não há provas de sua participação na tentativa de golpe, sustentando que não havia minuta, rascunho, esboço, débuxo ou esboço que comprove que o seu Jair estava envolvido na bizarra epopeia bolsonarista que sonhava reescrever a história da democracia no país, em defesa da liberdade do povo brasileiro. Fiquei esperando o advogado Paulo Thomaz evocar Dom Quixote de La Mancha e dizer que "A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que os homens receberam dos céus", mas ele não era tão culto quanto o seu colega Andrew. Aliás, o nome completo do referido advogado me remeteu a um Comendador de uma província no período colonial. Paulo Amador Thomaz Almeida da Cunha Bueno, presidente da província de Rio das Pedras, designado como defensor pela família que domina aquele território. Viajei tal qual os ilustríssimos advogados na ingrata missão de defender réus tão culpados.

Destaco ainda a atuação do senhor Matheus Milanez, advogado do general Heleno, que, ao contrário da ansiedade no dia do depoimento de seu cliente — quando ele perguntou a que horas seria o recreio porque estava com fome — parece ter tomado um café reforçado para sustentá-lo de pé durante o julgamento. É possível que apenas o café tenha sido a sustentação convincente na defesa do velho Heleno, porque se depender da advocacia roteirista do doutor Milanez, em breve nosso avozinho fofo estará trocando suas fraldas geriátricas na Papuda. O jovem jurista havia prometido apresentar 107 slides como prova da inocência do general, um número cabalístico em homenagem à homônima quantidade de imóveis adquiridos pela família do grande amigo do seu cliente (51 destes comprados com dinheiro vivo). Matheus iniciou a sua fala proclamando “a imperiosa absolvição do general Heleno”, o que me fez pensar que era mais uma referência a alguma obra literária, dada a erudição dos causídicos que ali se apresentavam.

Doutor Milanez chamou a todos de “idiotas”, ao tentar nos persuadir a crer que seu cliente foi um chefe do GSI moderado, apolítico e apartidário. Disse até que ele queria que Bolsonaro tomasse a vacina, e que se afastou do ex-presidente quando o mesmo se aproximou do Centrão, algo que a pureza ideológica do militar não admitia. Meu maior susto durante sua sustentação foi quando ele anunciou uma citação de Piero Calamandrei, cujo início diz: “Conheci um químico que, quando no seu laboratório destilava venenos, acordava as noites em sobressalto, recordando com pavor que um miligrama daquela substância bastava para matar um homem.” Poderia jurar que ele estava falando de Renato Cariani, conhecido químico bolsonarista e hábil manipulador de substâncias consideradas ilícitas e mortais pelo Ministério Público de São Paulo. Mas ele estava jogando indireta para Moraes, sugerindo que o ministro estaria manipulando um venenoso relatório para condenar os réus à morte (prisão).

Por fim, a cereja do bolo de pote jurídico servido no STF durante os dois primeiros dias de julgamento. A saudação do nobre advogado Cezar Roberto Bitencourt ao ministro Luiz Fux: "Sempre saudoso, sempre presente, sempre amoroso, sempre simpático, sempre atraente, como são os cariocas. Uma honra muito grande, satisfação imensa..." Ejaculei! O grifo “kamasútrico” é meu, mas podem colocar na conta do digníssimo jurisconsulto e da sua concupiscência jurídica diante do eminente executor do Supremo. Após o ab-rogado senador, e hoje advogado de defesa do almirante Garnier, doutor Demóstenes Torres, ter dito que é possível amar Moraes e Bolsonaro ao mesmo tempo, o legisperito defensor de Mauro Cid quis reinventar a frase que ficou famosa em tempos de lavajatismo penal no país. Depois de “In Fux we trust”, as deferências pessoais feitas ao ministro meio júri divergente nos levam a outra conclusão: In Fux we love. In dubio pro reo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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