Hediondo é o crime de roubar a nação com emendas e chamar isso de política
Ao invés de atacar causas da criminalidade, preferem encenar medidas performáticas, enquanto o palco encharcado desaba sobre quem não pode pagar defesa adequada
Brasília mantém uma oficina de pintores de emergência. A cada crime que irrompe nas telas, corre-se ao almoxarifado legislativo, tiram-se baldes de tinta e repinta-se a fachada da casa: “hediondo”. É como se, diante de uma tempestade, repintássemos paredes mofadas, enquanto o telhado segue furado e as goteiras alagam os cômodos. O barulho da tinta secando dá ilusão de ordem, mas a água continua a cair.
Em vez de recitar rosários infindos, fiquemos no essencial. Destacamos, por exemplo, quatro tipos que costumam puxar a fila: homicídio qualificado (inclui feminicídio e o praticado contra menor de 14 anos), latrocínio, extorsão mediante sequestro (nas formas qualificadas) e estupro — todos expressamente arrolados no art. 1º da Lei 8.072. A lista legal não se resume a eles, mas evita-se o tédio de catecismos intermináveis.
Quantos, afinal, já são “hediondos” hoje? O rol taxativo do art. 1º, com seus incisos (I, I-A, II a VIII e VII-B), soma dez hipóteses; o parágrafo único acrescenta mais duas: genocídio e posse/porte ilegal de arma de fogo de uso proibido. Resultado: 12 hipóteses no total. A inclusão do armamento decorre da alteração legal mais recente no ponto — primeiro por lei de 2017 e, depois, pela redação dada pelo Pacote Anticrime, que restringiu a hediondez à arma de uso proibido.
Como filho de advogado e pai de dois advogados, convivi desde cedo com reflexões sobre justiça. Na juventude, cursei quatro anos de Direito no Rio de Janeiro, no início dos anos 1980. Lembro-me bem de como esse tema da aplicação das leis me mobilizava: como combater a criminalidade sem, no afã de puni-la, cometer novos crimes contra o próprio tecido social? Essa inquietação ainda me acompanha como testemunho íntimo e sincero de alguém que viu de dentro as engrenagens da formação jurídica e de fora as contradições da vida política.
“E as penas?” O leitor comum não precisa virar penalista: basta saber que o teto das reprimendas dos crimes do “andar de cima” toca sistematicamente os 30 anos. Latrocínio tem faixa de 20 a 30 anos; a extorsão mediante sequestro qualificada vai a 24 a 30; homicídio qualificado finca-se entre 12 e 30; estupro com morte, 12 a 30. O detalhe técnico mora nos artigos, mas a música é a mesma: gravidade máxima no papel, com limite legal de execução hoje unificado em 40 anos quando se somam penas.
Na execução, porém, começa o país real.
A progressão de regime depende do tempo cumprido e do mérito prisional. Por muito tempo, falou-se no “1/6” para crimes comuns; o Pacote Anticrime redesenhou as frações, endurecendo a régua: para hediondos sem morte, 40%; reincidente específico, 60%; e, nos casos com resultado morte, a jurisprudência fixou teses próprias, afinando a leitura dos percentuais e do livramento condicional.
A “mania de hediondizar” não freia a fábrica de projetos. Em 2025, só na Câmara, tramitam ao menos seis proposições que incluem novas hipóteses no rol (subtração de criança para colocação em lar substituto; maus-tratos a animais em cenário específico; fraude em alimentos e bebidas com risco agravado; violência contra pessoas com deficiência; pacote ampliando vários tipos; e outras redações com o mesmo fim).
No Senado, ao menos três iniciativas recentes caminham, neste momento, na mesma direção (crimes em escolas; “domínio de cidades”; lavagem de dinheiro no rol). É um piso — não um teto — do que está vivo na pauta.
E diante da grande repercussão das mortes por metanol em bebidas alcoólicas e destiladas ocorridas nesta semana em São Paulo e em Pernambuco, é fácil prever o próximo passo: logo teremos parlamentares propondo que a falsificação dessas bebidas seja alçada à categoria de crime hediondo.
A comoção empurra, os microfones captam, e o mesmo ritual legislativo se repete: mais uma camada de tinta sobre paredes já encharcadas, enquanto as goteiras seguem abertas no telhado da prevenção e da fiscalização.
E surge a pergunta que parece proibida: por que os senhores parlamentares não tornam hediondos os crimes de corrupção contra o dinheiro público?
Especialmente a malversação das emendas parlamentares, que sequestram um montante extraordinário de recursos da União e poderiam estar fortalecendo políticas sociais em saúde, educação e segurança. Se o critério é impacto social, poucos crimes devastam tanto quanto esse. Mas aqui não se toca: melhor endurecer contra o ladrão de galinha que contra o ladrão de cofres.
Funciona? A experiência ensina que “mostrar serviço” com etiquetas não substitui o trabalho silencioso que dá resultado: investigação que descobre autores, prova que sustenta denúncia, julgamento em tempo razoável, execução com fiscalização.
Enquanto isso, o sistema de execução penal distribui justiça de forma assimétrica: quem tem recursos contrata bancas especializadas para acumular remição por estudo e trabalho, calibrar pedidos, desatar nós burocráticos; quem depende exclusivamente da defensoria enfrenta filas, laudos tardios e falta de vaga no semiaberto.
Ainda guardo esperança de que propostas estruturais tenham andamento real. A recente Proposta de Emenda Constitucional da Segurança Pública, apresentada pelo ministro Ricardo Lewandowski, poderia, se tramitada com agilidade, inaugurar uma resposta menos performática e mais consequente. Seria a chance de, com essa PEC 18/2025, trocar não apenas a cor da parede, mas finalmente reparar o telhado que insiste em deixar a chuva cair sobre todos nós.
Juristas de referência têm insistido no ponto: endurecer o rótulo pouco altera a curva do crime se não houver certeza da resposta penal. A doutrina crítica sintetiza: o Brasil adotou um sistema legal fechado de hediondez — não cabe criatividade judicial —, mas isso nunca dispensou o Estado de prover polícia técnica, perícia, defensorias, Ministério Público e juízos com meios para fazer a roda girar.
Sem isso, a hediondização vira cortina de fumaça: mais tinta na fachada, o mesmo telhado vazando. Eis o paradoxo que atravessa justiça, leis, ordem pública e proteção da sociedade: a política criminal performática rende manchete; a política criminal eficaz rende resultado.
O país precisa menos de pintores apressados e mais de telhados novos que não deixem, ano após ano, a água encharcar a vida de todos nós.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.