Guerra, revolução e o futuro da esperança
Primeira Parte
A história ensina-nos que as grandes transformações sociais sempre ocorreram no seguimento de dois tipos de convulsões sociais traumáticas: guerra e revolução. Embora a sequência entre guerra e revolução seja diversa, as duas convulsões sociais tendem a ocorrer no mesmo processo histórico de grande transformação social, sobretudo desde o início do século XX. No final do processo histórico será visível que nem a guerra nem a revolução por si só teriam podido explicar a transformação ocorrida. Tanto a guerra como a revolução são produtos humanos e, como tal, sujeitos ao risco e à incerteza, à possibilidade e ambiguidade tanto do êxito como do fracasso, à mistura de paixão e de razão, de animalidade e de espiritualidade, de desejo de ser e de não ser, de experiências de desespero e de esperança. Tanto na guerra como na revolução o sentido da história corre de par com o absurdo da história e, no subterrâneo dos seus êxitos, circulam sempre os seus fracassos.
A guerra e a revolução tão complexas, assumem tantas formas que quem as quer promover raramente alcança o que previu, e quem as quer impedir raramente é capaz de o fazer eficazmente ou sem se auto-destruir. O trauma social que provocam decorre da violência abrupta que envolvem, a qual tanto pode ser destrutiva de vidas como de instituições e, muitas vezes, de ambas. A diferença entre a guerra e a revolução é sobretudo visível nos seus antídotos. O antídoto da guerra na época contemporânea é a paz, enquanto o antídoto da revolução é a contra-revolução. Os antídotos revelam o carácter das forças sociais envolvidas tanto na guerra como na revolução. Quem quer a paz são as classes sociais que mais sofrem com a guerra. Quem morre nas guerras são os soldados e os cidadãos inocentes, não os políticos que as decidem nem os generais que as comandam. Tanto os soldados que optam pela guerra ou são obrigados a fazê-la como os cidadãos inocentes mais vulneráveis ao risco de morte pertencem às classes sociais menos privilegiadas, historicamente, membros das classes trabalhadoras, tal como camponeses e operários. Pelo contrário, quem quer a guerra são as classes sociais que menos riscos correm com a destruição que ela pode causar e mais benefícios podem colher do que se segue à destruição. Quem promove a contra-revolução são as classes sociais minoritárias, mas poderosas que mais beneficiam do statu quo que a revolução quer destruir. Pelo contrário, quem promove a revolução são os grupos e as classes sociais exploradas, oprimidas, discriminadas que, apesar de maioritárias, não encontram outro meio que não a revolução para pôr fim à injustiça de que são vítimas.
Tanto a guerra como a revolução são formas extremas de luta de classes, constituem uma luta aberta entre a vida e a morte. Mas enquanto a guerra implica a morte das maiorias para defender a vida das minorias, a revolução implica a morte de minorias para defender a vida das maiorias. As forças sociais e políticas que promovem a guerra são as mesmas que promovem a contra-revolução. Pelo contrário, as forças sociais e políticas que promovem a revolução promovem também a paz, ainda que isso possa implicar a guerra contra as minorias (a chamada guerra revolucionária que marca muitas das trajetórias políticas de libertação do Sul global).
O caracter traumático da guerra e da revolução é tanto mais problemático quanto é certo que raramente a guerra ou a revolução decorrem como previsto ou atingem os resultados pretendidos, por mais profundas que sejam as transformações sociais que tornam possível. A aparente necessidade que conduz os povos para a guerra ou para revolução acaba por resultar na mais caótica contingência. É por isso que as forças sociais que promovem qualquer delas salientam a necessidade e ocultam a contingência e justificam-nas como último recurso em relação a outros recursos que poderiam garantir a transformação social sem guerra nem revolução.
Na época moderna e contemporânea a distribuição social do destino da vida e da morte tem sido decidida em função de dois principais modos de dominação: capitalismo e colonialismo. São dois modos diferentes, mas geminados de tal modo que um não existe sem o outro. Em termos marxistas, isto significa que a chamada acumulação primária ou primitiva é uma componente permanente do capitalismo. Trata-se de uma acumulação sempre violenta que envolve a destruição e a morte causadas por poderes que assentam a sua superioridade na degradação ontológica das suas vítimas, tratadas como sub-humanas. Historicamente tais vítimas foram servos; escravos; raças ou castas consideradas inferiores; e mulheres. A diferença ontológica legitima o exercício arbitrário do poder superior. No colonialismo reside a inerradicável dimensão de identitarismo que existe em toda a luta de classes.
A época moderna e contemporânea foi uma época fértil de guerras e de revoluções. Mas, talvez por isso mesmo, foi também a época em que mais energias políticas e institucionais foram investidas para evitar tanto a guerra como a revolução. Os instrumentos principais foram a reforma social, a democracia, o fim do colonialismo histórico e o direito internacional, todos eles assentes em pressupostos epistémicos e políticos que dominavam no Norte global. Tratou-se de instrumentos desenhados para diminuir a polarização entre minorias poderosas e maiorias impotentes e entre o Norte global e o Sul global, sem pôr em causa a continuidade do capitalismo-colonialismo.
A reforma social visou atenuar a desigualdade económica e social entre classes sociais por via da criação de classes intermédias (as classes médias) que nada teriam a ganhar com a guerra ou com a revolução.
A democracia visou diminuir as diferenças de poder político e cultural de modo a tornar verosímil a possibilidade de convivência pacífica, transformando inimigos a eliminar em adversários políticos a vencer por via da argumentação ideológica (opinião pública) e da participação política (nomeadamente, eleições).
O fim do colonialismo histórico visou pôr fim à ocupação territorial de um dado país por uma potência estrangeira. Não teve por objectivo terminar o colonialismo que, como referi, é inerente à dominação capitalista, mas apenas a sua versão considerada mais violenta que vigorara ao longo dos últimos cinco séculos, com particular intensidade a partir da Conferência de Berlim de 1884-85. O colonialismo é toda a relação social que assenta na degradação ontológica de uma das partes, seja ela um ser humano, um grupo social, ou um país. Esta degradação implica que uma parte da humanidade seja considerada sub-humana e como tal tratada. A criação de sub-humanidade visa legitimar todo o tipo de poder arbitrário e violento, seja ele a hiperdesvalorização do trabalho, os contratos e tratados desiguais, as discriminações, o epistemicídio ou o extermínio.
Por fim, o direito internacional visou criar a convivência pacífica entre países rivais por meio de normas, tratados, convenções tornados vigentes pelo interesse mútuo em respeitá-los (o multilateralismo). Sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, tornou-se imperativo que para o direito internacional vigorar minimamente e evitar a guerra era necessário um respeito, pelo menos aparente, pelos direitos humanos, o que, por sua vez, implicava que internamente dominasse a convivência democrática e diminuísse o apelo da revolução e que, nas relações internacionais, vigorasse uma ordem respeitadora da soberania nacional de todos os países, incluindo os que se iriam libertando do colonialismo. As ditaduras, tal como o colonialismo histórico, deixaram (temporariamente?) de ter legitimidade política.
Sempre que estes recursos falharam os povos começaram a caminhada sonâmbula para a guerra e para a revolução. Uma caminhada sonâmbula porque a propaganda dominada por quem tem poder para destruir a paz e promover a contra-revolução sempre consegue impor a ideologia de que quer evitar a guerra e mostrar a desnecessidade, senão mesmo o carácter obsoleto, da revolução. Isso não tem impedido que no subterrâneo da caminhada para a guerra se siga o trilho da revolução.
O diagnóstico - Há sinais cada vez mais evidentes que o nosso tempo marca a aceleração da caminhada para a guerra e a revolução. Assistimos ao colapso de qualquer dos quatro instrumentos que desde o final da Segunda Guerra Mundial garantiram a impossibilidade ou a desnecessidade da guerra e da revolução como únicos recursos de transformação social. E como era de esperar, o poder dominante fala cada vez mais de guerra supostamente para garantir a paz com a arrogância própria de quem sabe que pode destruir as vozes que denunciem o embuste. E oculta cada vez mais eficazmente a caminhada subterrânea da revolução, desacreditando como obsoletas ou subversivas as forças que teimam em falar de dominação capitalista-colonialista e transformando a crescente polarização social numa questão de segurança nacional e de fortalecimento da repressão policial.
A reforma social - A reforma social assentava na ideia da transformação social progressiva, gradual, pacífica e respeitadora do quadro legal, ainda que lutando pela transformação deste dentro dos limites constitucionais. Foi assim que surgiram os direitos económico-sociais das classes trabalhadoras, o que lhes permitiu, pela primeira vez na história, planear a sua vida e a da sua família e comprar os produtos que elas próprias produziam.
É evidente que o brilho da ideia reformista desapareceu. A desigualdade social aumenta dentro de cada país ao mesmo tempo que desaparece a ideia das causas sociais e suas políticas; a extravagante riqueza de uma minoria cada vez mais restrita é ostentada sem pudor; impera a indiferença perante a austeridade e a quebra de rendimentos impostos às maiorias; há pobres merecedores de filantropia, mas não há classes e grupos sociais empobrecidos pela violação ou erosão dos seus direitos sociais; a culpa individual, tal como o êxito pessoal, tem mais poder explicativo que a responsabilidade social e política pelo infortúnio de muitos e as condições sociais e políticas oferecidas para o êxito de outros; o investimento no bem-estar dos cidadãos, das famílias e das comunidades é um custo social cada vez mais insuportável e os impostos para o garantir são considerados um mal social que deve ser minimizado; o mundo sempre foi injusto e o nosso mundo é o menos injusto de todos os anteriores; os partidos políticos, que nasceram por oposição à revolução em nome da superioridade civilizacional do reformismo, renderam-se aos argumentos dos antigos adversários à sua direita (nos piores casos, venderam-se ao dinheiro dos adversários); a religião reconfortante que garante a salvação no outro mundo prevalece sobre a religião inquietante da prioridade dada aos pobres e oprimidos e à sua libertação neste mundo. Este é o retrato cruel do contra-reformismo em que vivemos.
A democracia - Na sua vocação originária a democracia é a soberania popular através do governo das maiorias para benefício das maiorias. Ao longo da história assumiu formas muito diferentes, mas até à consolidação do capitalismo-colonialismo como forma de dominação foi sempre um regime político ostracizado por ser considerado perigoso: maiorias consideradas ignorantes seriam incapazes de governar de forma esclarecida. Com a consolidação do capitalismo-colonialismo, a democracia assumiu uma forma dominante a que chamamos democracia liberal: sufrágio tendencialmente universal ainda que inicialmente muito restrito; pluralidade de partidos que aceitem as regras de jogo democrático; liberdade de expressão; eleições livres. Aceitar as regras do jogo democrático significou o respeito por dois princípios fundamentais. Primeiro, abandonar a revolução em favor do reformismo. Segundo, não pôr em causa os fundamentos da dominação capitalista-colonialista. Para isso, o jogo democrático restringiu-se a uma dimensão apenas da vida social, que se designou como política. Todas as outras dimensões ficaram fora desse jogo e apenas sujeitas às consequências dele: os espaços-tempo da produção, da família e da vida comunitária foram considerados como não pertencendo ao mundo político. Por isso mesmo, tenho defendido que a democracia liberal se pôde constituir politicamente como uma ilha democrática num arquipélago de despotismos.
Por outro lado, assumindo que havia uma contradição de base entre a acumulação capitalista-colonialista e a soberania popular, a democracia liberal resolveu regulá-la (não resolvê-la) através da separação entre dois universos de valores: o universo dos valores que têm preço e que, por isso, se podem comprar e vender (os valores económicos, mercadorias ou outros produtos tratados como tal, por exemplo, a terra e a força de trabalho) e o universo dos valores que não têm preço e que, por isso, não se podem comprar nem vender (convicções políticas e ideológicas). Para garantir a separação dos dois universos de valores, julgavam-se essenciais duas condições: o financiamento público ou altamente regulado dos partidos políticos; o impedimento de investir noutras áreas económicas a quem investisse no jornalismo, considerado o instrumento privilegiado da construção da opinião pública.
Ao longo dos últimos cerca de cento e cinquenta anos, a democracia liberal funcionou para um grupo pequeno de países (os países centrais do sistema mundial, que hoje chamamos Norte global), porque, como explicava a teoria, eram necessárias certas condições sócio-económicas para tornar a democracia liberal viável, nomeadamente a urbanização e a reforma agrária para eliminar o rentismo fundiário, e a emergência de classes médias que impedissem, pela sua posição sócio-económica, a polarização social entre maiorias exploradas e oprimidas e minorias exploradoras e opressoras. Só assim a democracia liberal poderia “regular” os excessos “naturais” da acumulação capitalista-colonialista. Tal regulação obrigava a uma intervenção do Estado na economia e a tributação progressiva. Os dois objectivos principais eram obter alguma redistribuição social a favor das classes trabalhadoras e evitar o regresso do rentismo parasitário que dominara na época feudal no contexto europeu.
Tudo mudou a partir da década de 1980, sem que as maiorias tivessem dado conta, porque tal foi impedido pelo controle da comunicação social por parte da classe dominante que nessa época se ia consolidando. Foi assim que o neoliberalismo se tornou rapidamente na versão dominante do capitalismo-colonialismo. Respondendo a uma crise estrutural da acumulação capitalista (iniciada com a primeira crise do petróleo em 1973), o objectivo central do neoliberalismo foi o de inverter o movimento da redistribuição social que até então vigorara, pelo menos em teoria. Tratava-se agora de permitir a transferência massiva de rendimentos dos mais pobres para os mais ricos, ou seja, das classes trabalhadoras e classes médias para a classe capitalista, sobretudo para a sua fracção mais predadora – o capital financeiro.
Isto significava uma incompatibilidade total com a democracia. Para que tal incompatibilidade fosse disfarçada sem a necessidade de golpes de Estado e de ditaduras – que, entretanto, tinham perdido o apelo popular dada memória dos horrores que tinham causado – foi necessário subverter os princípios e as condições da democracia liberal. A separação entre o universo dos valores políticos sem preço e o universo dos valores económicos com preço foi sendo eliminada através de mudanças nas leis eleitorais que passaram a permitir o financiamento potencialmente sem limites dos partidos políticos. Rapidamente, a política passou a ser um universo onde tudo se compra e tudo se vende. A corrupção tornou-se uma parte estruturante do sistema político e a luta contra a corrupção, uma parte integrante desse sistema. Com isto, a democracia deixou de ter pretensões de regular os “excessos” do capitalismo e passou a ser regulada por eles. Da mesma forma, a democracia deixou de exigir condições sócio-económicas para ser viável e passou a ser a condição para todas as sociedades independentemente das suas características sócio-económicas. E assim foi globalmente imposta como condicionalidade por parte das instituições financeiras multilaterais, nomeadamente pelo Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e, posteriormente, a Organização Mundial do Comércio.
À luz dos critérios estruturais que sustentaram a democracia liberal, vivemos hoje um período pós-democrático. Vivemos em sociedades cada vez mais autocráticas, em que os países que têm mais poder económico-financeiro têm o privilégio mediático de se auto-designar como democráticos e designar os países rivais, ou ainda por explorar, como autocráticos. Todo o tipo de anti-democratas (fascistas, populistas, caudilhistas, fanáticos religiosos) pode hoje ser eleito democraticamente. Por estas razões, o segundo instrumento ou recurso para impedir o extremismo da guerra e da revolução está colapsar, se é que não colapsou já.
O fim do colonialismo histórico - O fim do colonialismo histórico não foi uma dádiva desinteressada por parte das potências coloniais. Foi o resultado da luta dos povos colonizados que ao longo de séculos lutaram contra os invasores europeus. Acontece que a devastação de vidas inocentes causada pela Segunda Guerra Mundial, incluindo as vidas dos povos colonizados que nada tinham a ver com as rivalidades imperialistas que estiveram na origem da guerra, criou um ambiente internacional mais favorável ao êxito das lutas de libertação. Curiosamente, essa lutas envolveram uma discussão sobre os meios a privilegiar para conquistar a libertação que punha em alternativa a guerra/revolução (luta armada) e a negociação pacífica. Ficaram famosos no universo anti-colonial dos anos de 1950-60 os debates entre os que defendiam a primeira alternativa, em que se distinguia Frantz Fanon, e os que defendiam a segunda alternativa, entre eles Leopold Senghor, Kwame Nkrumah, Julius Nyerere e Eduardo Mondlane. Mas muitos dos que defendiam a segunda alternativa, reconheciam que, se ela fracassasse, haveria que recorrer à primeira. E também se foram preparando para uma combinação entre as duas opções.
Da parte das potências coloniais a repressão da luta anti-colonial foi sempre violenta. Nalguns casos, a violência foi tão forte que a luta de libertação assumiu plenamente a opção da guerra/revolução. Os casos mais significativos foram a guerra de libertação da Argélia contra o colonialismo francês, a guerra de libertação do Quénia contra o colonialismo inglês e a guerra de libertação da Guiné-Bissau, de Angola e de Moçambique, contra o colonialismo português.
Qualquer que tenha sido o meio por que se conquistou a libertação, tornou-se evidente para os novos países que a independência conquistada era muito parcial. Estava muito condicionada pelas relações internacionais que caracterizavam o sistema mundial moderno, nomeadamente no que diz respeito às relações entre países centrais e países periféricos. A independência era um fenómeno político que tinha de conviver com vários tipos de dependência económica, financeira e militar. Esta questão foi identificada desde o início, com nuances distintas, por alguns dos fundadores dos novos países – de Kwame Nkrumah a Leopold Senghor, de Amílcar Cabral a Julius Nyerere, de Patrice Lumumba a Jomo Kenyata, de Ahmed Ben Bella a Habib Bourguiba, de Samora Machel a Sam Nujoma. E as consequências negativas da independência incompleta foram-se tornando mais visíveis e graves à medida que os anos avançaram: relações internacionais de dependência, continuação dos tratados desiguais, pilhagem dos recursos naturais, crescente submissão financeira e militar.
A consciência crítica teórica das limitações da independência política assumiu diferentes formas: o neocolonialismo e a obra de Frantz Fanon na década de 1960, a teoria da dependência na década de 1970, os estudos pós-coloniais na década de 1980, os estudos descoloniais da década de 1990 e as epistemologias do sul da década de 2000. Todas estas perspectivas foram evoluindo nas décadas posteriores até hoje. Comum a todas estas perspectivas é a ideia central de que as independências políticas puseram fim a uma forma específica de colonialismo, o colonialismo histórico, mas o colonialismo continuou sob outras formas e até se intensificou. Aliás, nem sequer o fim do colonialismo histórico foi total, como são disso testemunho particularmente cruel o povo palestiniano e o povo saaraui. E desde o início do milénio temos assistido à intensificação do colonialismo sob múltiplas formas: a pilhagem dos recursos naturais, os tratados desiguais e a imposição de austeridade e de endividamento por parte das instituições financeiras (FMI e Banco Mundial), a criação de reservas agrícolas em territórios soberanos, o tratamento dado aos imigrantes, o racismo, a divisão digital e, mais recentemente, a “naturalização” do colonialismo pela inteligência artificial. Podemos mesmo dizer que os tempos actuais são tempos de recolonização cuja teorização tem sido facilitada pelo crescimento global das forças de extrema-direita. Temos vindo a assistir à justificação e mesmo apologia do colonialismo histórico e à radicalização crescente da crítica das diferentes teorias pós-coloniais com tentativas de silenciamento que vão muito para além da argumentação académica.
O direito internacional - O segundo mandato de Donald Trump como presidente dos EUA, iniciado em 2025, é apenas o sintoma mais grotesco do colapso do direito internacional. Mas esse colapso vinha a ser construído nas últimas décadas. Vejamos alguns dos seus sinais.
A transformação da NATO em pacto militar de agressão global - O primeiro sinal foi “vendido” internacionalmente como o triunfo final do direito internacional. O colapso da então União Soviética em 1991 indicava que finalmente seria possível consolidar uma ordem internacional assente em regras que garantiam a convivência pacífica entre os povos e o respeito global pelos direitos humanos. Foi um mega-embuste. O principal instrumento da garantia da paz por via da dissuasão entre os blocos rivais eram os dois pactos militares: o pacto de Varsóvia, do lado soviético, e a NATO (OTAN) do lado ocidental. Enquanto o pacto de Varsóvia foi rapidamente dissolvido pela razão evidente de ter deixado de ser necessário, a NATO não só se manteve como se expandiu e mudou de carácter. Deixou de ser um instrumento de paz e de defesa para ser um instrumento de guerra e agressor ao serviço dos interesses do imperialismo norte-americano e europeu, actuando em todo o mundo ao serviço desses interesses, da antiga Jugoslávia à Líbia, do Iraque ao Afeganistão.
Repressão de autonomias regionais
O segundo sinal foi a resistência do Bloco Ocidental contra o Movimento dos Não-Alinhados, o grupo dos países que se foram libertando do colonialismo europeu, nascido em 1961 no seguimento da Conferência de Bandung de 1955. Era um grupo de países que, em nome da soberania nacional, procurava um caminho próprio para o seu desenvolvimento, recusando-se a ter de optar entre o socialismo soviético e o capitalismo ocidental. Na mesma linha, os mesmos e outros países procuraram estabelecer uma Nova Ordem Económica Internacional que viria a ser adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Maio de 1974. As ideias centrais, eram “comércio em vez de ajuda”, igualdade soberana e direito à auto-determinação. O Bloco Ocidental, ou seja, os países centrais do sistema mundial, liderado pelos EUA, rejeitou todas estas propostas e, no seguimento da crise global da dívida da década de 1980, impôs a todo o mundo o chamado Consenso de Washington que consagraria o domínio da versão neoliberal do capitalismo-colonialismo.
Marginalização das Nações Unidas - O terceiro sinal, relacionado com o anterior, foi a marginalização crescente das instituições das Nações Unidas em favor das organizações multilaterais controladas pelas grandes potências ocidentais, (FMI, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio), e das ONGs e Fundações financiadas pelos super-ricos norte-americanos tais como a Fundação Ford, a Fundação Bill e Melinda Gates e a Fundação George Soros. A voz da maioria dos países do sistema mundial foi perdendo peso no sistema da ONU que, em contrapartida, foi sendo cada vez mais subserviente aos interesses geopolíticos dos EUA e das multinacionais ocidentais.
Guerras globais e regime changes"
O quarto sinal da degradação do direito internacional foi substituição do activismo internacional em favor da paz e da justiça social pela dominação internacional dos conceitos cada vez mais expansivos de segurança nacional dos EUA através de dois mecanismos que semearam a guerra, a injustiça social e instabilidade política no mundo inteiro: a “guerra global” e a “mudança de regime”. No seguimento da guerra global contra o comunismo, iniciada sobretudo depois da Revolução Cubana, na década de 1960, foram surgindo, em sequência, “a guerra global contra as drogas”, “a guerra global contra o terrorismo” e, por fim, “a guerra global contra a corrupção”. Cada uma destas guerras foi desenhada para legitimar a interferência dos EUA na política interna dos diferentes países considerados hostis aos seus interesses económicos e geopolíticos.
Por sua vez, a política da “mudança de regime” implica uma violação ainda mais acentuada da soberania dos países. Trata-se da manipulação da política interna com o objectivo de substituir governos, muitas vezes democraticamente eleitos, considerados hostis aos interesses do capitalismo-colonialismo ocidentais por governos subservientes a esses interesses. Recorre-se a mecanismos de contra-insurgência cada vez mais sofisticados, alguns estatais outros privados (ONGs, Fundações), com a participação crescente da vigilância dos cidadãos e das organizações políticas “hostis”, do silenciamento de vozes críticas, e do uso das redes sociais, para provocar a instabilidade política e conduzir aos resultados desejados com verniz democrático (eleições manipuladas, nomeadamente por fakenews e o discurso do ódio), os chamados golpes brandos. São disso exemplo, nos tempos mais recentes, as “revoluções coloridas” nas sociedades pós-soviéticas, a primavera árabe, e os golpes brandos nas Honduras (2009), no Paraguai (2012), na Ucrânia (2014), no Brasil (2016) ou as intervenções militares no Iraque (2003), na Líbia (2011), etc. Tanto as “global wars” como os “regime changes” têm sido factores de instabilidade política, de descrédito da ideia de democracia como exercício de soberania nacional-popular, quando não resultaram em guerras civis ou regionais e na instalação de regimes autocráticos de diferentes tipos. A tudo isto a ONU, o garante máxima da ordem internacional segundo normas, foi assistindo impotente. Sempre que tentou resistir através do seus secretários-gerais mais notáveis, teve de assistir à humilhação destes, sobretudo de Boutros Boutros-Ghali e Kofy Annan. Por fim, com António Guterres, rendeu-se aos interesses geopolíticos dos EUA e promoveu a infiltração das grandes agendas de médio prazo por parte dos lobistas das grandes empresas multinacionais, nomeadamente no caso da defesa da biodiversidade e do estancamento do colapso ecológico.
A transição da UE de aliado para vassalo - O quinto sinal da degradação da ordem internacional, e talvez o de mais graves consequências, é o colapso da Europa ante o imperialismo declinante dos EUA. Durante setenta anos a Europa lembrou-se que tinha a responsabilidade histórica do colonialismo e que fora o continente mais violento do século XX, infligindo aos seus cidadãos e aos povos colonizados mais de setenta e oito milhões de mortos em duas guerras.
Essa memória foi fundamental para lembrar que era uma Europa dividida mas convicta das virtudes da coexistência e orgulhosa de no seu bloco capitalista-colonialista ter construído uma aliança fortemente ancorada nos três instrumentos que permitiam a paz e impediam a contra-revolução: o reformismo social, a democracia liberal e o direito internacional. Mas desde o início germinava um mega-embuste. O embuste consistiu em que os países que construíram a aliança que se viria a chamar União Europeia eram países democráticos e como tal credíveis para construir uma aliança internacional diferente de todas as anteriores. Uma aliança, não só respeitadora e potenciadora das democracias nacionais, mas ela própria democrática na sua constituição e no desempenho das suas instituições. A realidade foi tragicamente distinta. Continuou a haver países democráticos europeus, mas nunca houve democracia europeia. Foi por isso que a versão mais selvagem do capitalismo-colonialismo, o neoliberalismo ao serviço dos interesses geopolíticos dos EUA, se infiltrou na Europa através das instituições europeias, sobretudo da Comissão Europeia. O deficit democrático da União Europeia facilitou a penetração das forças que visavam destruir o reformismo social, a democracia e o direito internacional que tinham caracterizado a Europa democrática do pós-guerra. Não surpreende a facilidade desarmante com que os EUA envolveram a Europa em tempos recentes numa guerra contra a Rússia cuja continuidade só interessava aos EUA, orquestraram a ruptura dos laços económicos com a Rússia que, com o fornecimento de energia barata, garantia em parte a prosperidade da Europa, e lançaram a Europa numa vertigem bélica e armamentista supostamente para se defender de uma ameaça russa que os cidadãos europeus não vislumbram. A vassalagem da União Europeia conduzida pela quinta coluna do imperialismo norte-americano em que se converteu a Comissão Europeia está hoje escandalosamente exposta em quatro embustes, desdobramentos do mega-embuste originário.
Primeiro embuste: construiu-se a confusão entre os interesses da NATO, cujo comando militar é monopólio dos EUA e por isso responde aos interesses geoestratégicos dos EUA, com os interesses geoestratégicos da Europa que, se alguma vez existiram, foram agora reduzidos a cinza.
Segundo embuste: os Estados Europeus comprometem-se a gastar 5% dos orçamentos nacionais em armas maioritariamente compradas aos EUA, que só podem ser usadas quando o seu uso for do interesse dos EUA. Não se trata apenas de o seu uso estar previsto no âmbito da NATO; trata-se de as armas mais letais terem códigos fechados que são propriedade dos EUA e que, por isso, só podem ser usadas quando os EUA autorizarem.
Terceiro embuste: o dinheiro investido no armamento há-de ser retirado do orçamento das políticas sociais que contribuíram para o bem-estar relativo de uma percentagem significativa da população de cada país e para a criação das classes médias que impediram a polarização social de que se alimentam, com fins opostos, a guerra e a revolução.
Quarto embuste: o recente “acordo” sobre as tarifas entre “aliados” (taxas impostas a produtos importados da Europa pelos EUA) marca a consolidação da vassalagem da Europa. O acordo-chantagem não só impede qualquer autonomia energética à Europa como submete a sua economia financeira aos grandes fundos de investimento e, portanto, ao capital financeiro norte-americano. Este acordo-chantagem só é possível porque não há democracia europeia, embora haja países europeus democráticos. Disfarçada de Comissária Europeia, quem assinou este acordo-chantagem foi a embaixadora informal dos EUA na União Europeia, uma negociadora de armas (e talvez de vacinas?) que foi posta nesse lugar para cumprir esta missão. Não é novidade. Já Durão Barroso fora um embaixador informal do EUA na Comissão Europeia (quem não se lembra da sua acérrima defesa da guerra do Iraque?), hoje, sem surpresa, Presidente não-executivo do gigante financeiro norte-americano, Goldman Sachs International. Serviços preciosos pagam-se bem.
A desordem internacional imposta por Donald Trump - O último sinal da degradação do direito internacional é a conversão dos EUA num Estado pária à luz dos critérios que este país tinha inventado para designar, como Estados párias, os Estados violadores sistemáticos da ordem internacional e dos direitos humanos. O segundo mandato de Donald Trump veio revelar ao mundo o embuste que as primeiras vítimas da geopolítica dos EUA há muito conheciam: os EUA são um país nascido do genocídio das populações originárias; um país violento que em 249 anos da sua existência esteve em guerra contra países estrangeiros durante 222 anos; um país que não reconhece aliados nem negociações entre iguais, apenas interesses próprios e vassalos para os servir, impondo-lhes condições por via de chantagem; uma democracia muito condicionada que só num curto período permitiu que a democracia regulasse os “excessos” do capitalismo-colonialismo, o período do New Deal. Não surpreende que hoje o único aliado dos EUA seja outro Estado pária, Israel, uma aliança que tem por objectivo controlar o Médio Oriente e os seus recursos naturais e bloquear o acesso da China à Europa ocidental, depois de o ter bloqueado por via da Rússia e da Bielorrússia. Trata-se de uma aliança radical que recorre ao meio mais violento da tradição da Europa colonialista e nazi-fascista: a degradação ontológica de um povo inteiro à condição de sub-humanidade para “legitimar” o seu genocídio, neste caso, o povo palestino. Em conjunto, são os dois países mais perigosos do mundo, as maiores ameaças à paz e os mais acérrimos promotores da contra-revolução.
Finalmente, a guerra das tarifas (taxas impostas pelos EUA aos produtos importados de diferentes países segundo uma lógica aparentemente mais política que económica) significa o paroxismo do unilateralismo chantagista ao impor tarifas diferenciadas a cada país. Não tem qualquer lógica económica e nesse sentido é algo novo na ordem liberal e neoliberal dos últimos duzentos anos. Mas, por outro lado, a sua lógica política não constitui nada de novo na história dos imperialismos: dividir para reinar.
Conclusão - Vivemos nas ruínas do reformismo social, da democracia, do fim do colonialismo histórico, e do direito internacional. A história mostra que as ideias mortas têm uma inercia própria que lhes permite sobreviver como fantasmas durante um tempo. Enquanto isso, aumenta a polarização social, a conversão de adversários em inimigos, e crescem as apologias da guerra e da contra-revolução, sob a forma do crescimento global da extrema-direita e da política do ódio. No subterrâneo deste movimento corre o regresso da ideia de revolução. O que significa a esperança quando a humanidade caminha sonâmbula para a guerra e a revolução sem saber qual a sequência entre elas ou qual o futuro depois delas? Este é o tema da segunda parte deste ensaio.
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