O momento histórico das epistemologias do Sul
Só reencontraremos a esperança se ousarmos romper com o conhecimento dominante e reconhecermos o valor dos saberes silenciados pelo colonialismo
Esta é a segunda vez neste ano que me dirijo a vocês para falar das epistemologias do Sul, o que demonstra seu interesse por essa perspectiva epistêmica. Um interesse agora expressivamente evidenciado com a criação de um doutorado sobre esse tema.
Meu objetivo nesta conferência é analisar de que forma as epistemologias do Sul podem contribuir para seu tema central: L’Afrique face aux défis contemporains. Que essa contribuição é fundamental já foi decidido por vocês ao criarem um programa de doutorado sobre epistemologias do Sul. Trata-se apenas de identificar de que maneira essa contribuição pode ser maximizada.
Este tema ganha cada vez mais relevância. Prova disso é o fato de estar sendo discutido em várias regiões do mundo além da África. Por exemplo, no México, o novo programa governamental sobre educação, intitulado “A Nova Escola Mexicana”, tem como segundo eixo as epistemologias do Sul. No mês passado, estive discutindo, em universidades e nas secretarias de Educação do México, temas que são relevantes para o que pretendo apresentar nesta conferência.
A primeira pergunta que pode ser feita é: por que agora, na África como na América Latina e na própria Ásia (meu livro sobre epistemologias do Sul acaba de ser publicado na Coreia do Sul), recorre-se às epistemologias do Sul como parte de um projeto que vai muito além de um simples projeto educacional? Para os países que estiveram sob o colonialismo europeu, trata-se de revisitar a questão do projeto de país, tal como foi colocado após a independência, e que agora ressurge com novos instrumentos e após a experiência acumulada em sessenta ou setenta anos de independência política (ou um século, no caso da América Latina).
A resposta mais simples a essa pergunta baseia-se em duas ideias. A primeira é a constatação dolorosa de que os processos de independência foram muito parciais. Quando muito, houve independência política, mas não independência econômica, financeira, militar, cultural ou epistêmica. As consequências negativas da independência incompleta tornaram-se mais visíveis e graves com o passar dos anos. A independência não levou a relações internacionais de interdependência entre iguais, como desejavam seus fundadores. Ao contrário, gerou relações internacionais de dependência, com a continuidade de tratados desiguais, pilhagem de recursos naturais e submissão financeira e militar. Essa dependência reproduziu-se não apenas em relação às antigas potências coloniais, mas também a outros países considerados mais desenvolvidos.
Essa questão foi identificada desde o início, com diferentes nuances, por alguns dos fundadores dos novos países, de Kwame Nkrumah a Léopold Senghor, de Amílcar Cabral a Julius Nyerere, de Patrice Lumumba a Jomo Kenyatta, de Ahmed Ben Bella a Habib Bourguiba, de Samora Machel a Sam Nujoma. Mas as condições políticas dos anos seguintes não permitiram respostas eficazes. Pelo contrário, a dependência de tipo colonial agravou-se a partir de 1980 com o advento do neoliberalismo como versão dominante do capitalismo global.
Por sua vez, os países do Sul Global começaram a ter mais consciência dessa dependência imperialista e mais poder para reagir, com a emergência de novo dinamismo econômico e político de países que foram colonizados e/ou humilhados pelo colonialismo e imperialismo ocidentais – como é o caso da China, após as guerras do ópio em 1840. Só para citar um exemplo, surge com vigor inédito uma acumulação capitalista não ocidental protagonizada por países que foram colônias europeias ou humilhados, dominados ou invadidos por potências ocidentais ao longo dos séculos. Refiro-me aos BRICS, especialmente aos BRICS+, que além dos países da sigla (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), hoje reúnem onze grandes economias emergentes e estão prestes a agregar muitos outros países. Atualmente, representam 49,5% da população mundial, cerca de 40% do PIB global e 26% do comércio internacional. Já ultrapassaram o grupo dos países mais desenvolvidos, o G7, que representa 30% do PIB mundial e 10% da população mundial.
Por outro lado, nunca foi tão evidente o declínio do imperialismo ocidental, que tenta retardar esse declínio, aparentemente irreversível, fomentando guerras para demonstrar poder onde sua supremacia ainda não foi contestada. Torna-se cúmplice da brutal ocupação colonial da Palestina e do genocídio do povo de Gaza, além de impor a alguns países do Sul Global a aceitação de imigrantes deportados dos EUA – uma medida que remete aos piores tempos das remoções forçadas de populações no período do colonialismo histórico.
Além disso, as antigas potências coloniais e outros países por elas fundados mediante a quase completa eliminação de povos originários (como EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) apresentaram por muito tempo um nível de desenvolvimento que detinha uma aura de excelência, parecendo encarnar o único futuro possível: um futuro de bem-estar para a maioria da população. A essa aura chamou-se “progresso” e “desenvolvimento”. Essa imagem correspondia apenas parcialmente à realidade, mas era muito atrativa para os países recém-independentes. A ideologia dominante dizia que, com a ajuda solidária dos países desenvolvidos, os novos países alcançariam esse mesmo nível de desenvolvimento.
Como toda ideologia, esta também era falsa desde o início, mas sua falsidade tornou-se particularmente amarga nas últimas três décadas, com a prevalência global da versão mais selvagem do capitalismo: o neoliberalismo, que aumentou a desigualdade social e a concentração de riqueza dentro dos países e entre eles.
Por outro lado, a própria dinâmica do desenvolvimento capitalista gerou dois fenômenos que ameaçam toda a humanidade: a ameaça de guerra nuclear e o colapso ecológico. Além disso, surgiram outros fenômenos que desmentem duas promessas feitas após a Segunda Guerra Mundial: a promessa do fim das rivalidades entre imperialismos e o surgimento de uma convivência internacional pacífica, simbolizada pela ONU; e a promessa do avanço da democracia liberal à medida que os países se desenvolvessem.
A realidade cruel dos nossos dias aponta em outra direção. Como mencionei, somos testemunhas impotentes do genocídio em Gaza, da lenta agonia das instituições da ONU e da emergência de guerras entre vizinhos e guerras civis incentivadas por potências estrangeiras – como na Ucrânia, na Ásia Ocidental (conhecida no Ocidente como Oriente Médio), na República Democrática do Congo, no Sudão e entre Índia e Paquistão. Predomina um imperialismo unilateral que ignora todos os tratados e convenções internacionais. Ao mesmo tempo, mesmo nos países considerados mais desenvolvidos, emergem com força crescente movimentos de extrema-direita e novas formas de fascismo que ameaçam destruir a convivência democrática, reduzindo as regras democráticas a uma formalidade irrelevante na governança política.
Por todas essas razões, os países do Sul Global deixaram de acreditar na miragem do desenvolvimento. O que se observa nos países mais desenvolvidos mostra que esse modelo de desenvolvimento deixou de ser sequer desejável. Assim, parece haver melhores condições para recolocar a questão do projeto de país e encontrar novas e melhores soluções.
É nesse contexto complexo que os países que estiveram, por séculos, sob o domínio capitalista e colonialista ocidental têm chegado à conclusão de que há algo profundamente equivocado nas ideias que dominaram o mundo, especialmente nos últimos 70 anos: uma crença sem precedentes na capacidade exclusiva da ciência eurocêntrica de resolver todos os problemas sociais e políticos, transformando-os em questões técnicas. Essa crença atingiu seu auge nos últimos dez anos, com a emergência da inteligência artificial.
A consciência desse erro levou ao entendimento de que, nesse processo, a maioria dos povos do mundo caiu em uma armadilha histórica sem precedentes: a confiança exclusiva na ciência – sempre dominada pelos países mais desenvolvidos – transformou todos os demais países em ignorantes, destituídos de conhecimentos próprios relevantes. As próprias elites desses países foram levadas a desprezar seus conhecimentos endógenos, muitos deles anteriores ao contato com o colonialismo europeu, outros nascidos nas lutas contra o colonialismo e o capitalismo. E aderiram acriticamente à promessa de que a ciência, por si só, resolveria todos os seus problemas. Ao fazer isso, aceitaram a ideia de progresso que os manteria para sempre atrasados; a ideia de desenvolvimento que os manteria para sempre subdesenvolvidos; e a ideia de independência que os manteria para sempre dependentes.
Essa armadilha está, finalmente, sendo denunciada e desmontada. As epistemologias do Sul oferecem uma contribuição importante para esse processo avançar. Começo por algumas considerações gerais, para depois me debruçar sobre temas concretos.
Orientações gerais - As epistemologias do Sul constituem um campo vasto e diverso de investigações e saberes que questionam as correntes epistemológicas, teóricas e analíticas que têm dominado o mundo nos últimos quinhentos anos, e que denominamos epistemologias do Norte. A expressão “epistemologias do Sul” é recente, mas sua prática é antiga, pois se refere a saberes endógenos, muitas vezes ancestrais, que orientaram a vida cotidiana dos povos do Sul global.
O questionamento proposto pelas epistemologias do Sul baseia-se nas seguintes orientações gerais:
- Aprender que existe um Sul epistêmico; aprender a partir do Sul e com o Sul. Esse Sul epistêmico tem sido construído por classes e grupos sociais que, ao longo de cinco séculos, resistiram e lutaram contra os principais modos de dominação moderna, como o capitalismo e o colonialismo.
- Os conhecimentos surgidos ou usados nessas lutas sociais foram sistematicamente ignorados ou reprimidos pelas instituições encarregadas de produzir e legitimar o único saber considerado válido e relevante: a ciência moderna, sobretudo as universidades.
- A exclusão epistêmica está na raiz da exclusão social. Não haverá justiça social global sem justiça epistêmica global.
- A compreensão do mundo é muito mais ampla do que a compreensão ocidental do mundo.
- As epistemologias do Sul não são um movimento anticiência. A ciência moderna é válida, mas não é o único conhecimento válido. É necessário incentivar o reconhecimento mútuo entre a ciência e outros saberes vernáculos, construindo com base nisso diálogos e ecologias de saberes, muitas vezes com o auxílio da tradução intercultural, que permitam alcançar os seguintes objetivos:
- Contribuir para o fortalecimento das lutas de resistência contra o capitalismo, o colonialismo e outras formas de dominação a eles subordinadas, como o patriarcado, o sexismo, o etnorracismo, o sistema de castas, o capacitismo (desvalorização ontológica das pessoas com deficiência), o idadismo (desvalorização social dos mais velhos) e a religião política (uso da religião para legitimar e aprofundar a exclusão social).
- Compreender o declínio histórico do conhecimento e da concepção de mundo dominante, que podemos denominar eurocentrismo, civilização ocidental ou modernidade capitalista-colonialista-patriarcal, globalizada a partir do século XV e, no plano geopolítico, mais recentemente chamada de Norte Global.
- Compreender como o objetivo central da globalização do modelo eurocêntrico — o acesso a recursos naturais e o extermínio ou controle violento das populações colonizadas — reprimiu a diversidade interna da própria cultura ocidental e favoreceu aquelas versões mais úteis à conquista colonial e capitalista. Isso ajuda a explicar, por exemplo, por que Descartes foi celebrado e Espinosa, seu contemporâneo, foi considerado um filósofo maldito até o século XIX.
- Compreender o longo período de transição paradigmática ou interregno em que vivemos, a fim de contribuir para a superação do modelo conceitual dominante, construído a partir de uma concepção restrita de racionalidade — a racionalidade instrumental, que separou o que deveria estar unido: natureza, corpo, ética e transcendência.
- Contribuir para transformar o mundo eliminando a “linha abissal” — característica fundamental das epistemologias do Norte — que separa humanidade e natureza, e seres considerados plenamente humanos daqueles considerados sub-humanos. Só assim será possível devolver esperança à humanidade e à natureza.
As epistemologias do Sul aproveitam tudo o que possa ser — de forma criativa, rebelde e contra-hegemônica — mobilizado a partir das epistemologias do Norte para construir ecologias de saberes. Longe de serem o oposto binário das epistemologias do Norte, as epistemologias do Sul validam formas holísticas de pensar, sentir e agir que foram suprimidas pela razão ocidental.
- Contribuir, no plano geopolítico, para que o chamado Sul Global não seja apenas uma referência geográfica ou política, mas se torne um Sul epistêmico, condição necessária para contribuir com um mundo pautado pela dignidade e esperança, tanto para os seres humanos quanto para a natureza.
Orientações específicas - As epistemologias do Sul levantam novos problemas para os quais precisamos de novas soluções — na educação, na vida política, econômica, social e cultural.
As epistemologias do Sul e as disciplinas - As epistemologias do Sul não constituem uma disciplina. Elas são uma perspectiva epistêmica, teórica e analítica que atravessa todas as disciplinas: do Direito à Economia, da Medicina à Comunicação, da Literatura e das Artes à Tecnologia. Essa abordagem implica uma profunda reforma educacional, sobretudo no ensino superior.
O saber científico eurocêntrico deve ser colocado em diálogo com os saberes vernáculos, sem idealizações românticas de nenhum dos lados. O objetivo é construir ecologias de saberes que ampliem a compreensão da realidade e ajudem a elaborar projetos de transformação social centrados no bem-estar das comunidades.
Por idealismo romântico entende-se aqui a conversão de um sistema de conhecimento em um sistema de crença. O conhecimento é sempre objeto de crítica, enquanto a crença exige aceitação ou rejeição acrítica.
Crítica dupla - Ao contrário do idealismo romântico, as epistemologias do Sul propõem uma crítica dupla: tanto à ciência eurocêntrica quanto aos saberes endógenos. Toda epistemologia é política, e as epistemologias do Sul têm como meta fortalecer a luta anticapitalista, anticolonialista, anti-imperialista, antissexista e antirracista.
Ambas as críticas têm propósitos distintos:
- A crítica à ciência eurocêntrica questiona a dominação epistêmica e o epistemicídio por ela legitimado, ao eliminar ou desprezar saberes rivais que não se enquadravam em sua racionalidade restrita.
- Já a crítica aos conhecimentos endógenos é uma crítica solidária. Ela procura mostrar em que medida a luta pela sobrevivência epistêmica levou esses saberes à estagnação e à negação da transformação social vivida pelas sociedades ao longo do tempo. Além da estagnação, houve também certo conformismo com a condição de “saber local” — o que os tornou, erroneamente, irrelevantes diante dos critérios hegemônicos.
Isso nos leva a outro ponto central.
Os limites do conhecimento e a ignorância esclarecida - Todo sistema de conhecimento tem limites. Nenhum deles, por si só, é capaz de responder a todas as questões. Cada sistema possui uma positividade e uma negatividade. O julgamento sobre esses aspectos depende tanto dos critérios de validação interna quanto dos objetivos para os quais se quer utilizar o conhecimento.
Por essa razão, toda epistemologia é política — embora nem toda política seja epistêmica. Ter consciência dos limites do conhecimento é tornar-se um ignorante esclarecido. Todo educador deveria aspirar a essa condição, pois quanto mais sabemos, mais percebemos o quanto ignoramos.
Por exemplo, a ciência só pode responder a perguntas formuladas cientificamente. Não se pode perguntar cientificamente: Qual é o sentido da vida? Nossos ancestrais vivem conosco? O que é a felicidade? Para onde vamos após a morte?
Já os saberes endógenos talvez possam responder a essas questões, mas não respondem a muitas outras. E perguntas como: Os seres humanos são todos iguais? Quais as implicações disso? Como democratizar a sabedoria? Como escolher as tecnologias que nos ajudem a pensar e transformar a sociedade? Como enfrentar os crescentes conflitos entre gerações?
Quanto mais conscientes forem dos próprios limites, mais úteis serão os diferentes sistemas de conhecimento, e mais abertos estarão ao diálogo e à construção de ecologias de saberes. Essa consciência tem consequências práticas. Por exemplo:
- A medicina alopática de base eurocêntrica pode ser mais eficaz para tratar doenças agudas;
- Já a medicina tradicional pode oferecer melhores soluções para doenças crônicas;
- O Direito estatal pode punir infrações graves;
- Mas o Direito tradicional pode ser mais eficaz na restauração da coesão e reconciliação comunitária, especialmente em situações de conflitos internos.
Da racionalidade à razoabilidade - No sentido mais amplo, racionalidade é a consistência ou adequação entre pensamentos, vontades ou ações. Existem diferentes tipos de racionalidade:
- A racionalidade substantiva se refere à coerência com princípios éticos ou normativos;
- A racionalidade instrumental diz respeito à adequação entre meios e fins, quaisquer que sejam os fins.
A ciência moderna eurocêntrica é dominada por essa racionalidade instrumental. Nela, o importante não é o “porquê”, mas o “como”; o fazer tem mais valor que o ser.
As epistemologias do Sul propõem um conceito mais amplo de racionalidade, que chamamos de razoabilidade — uma noção dominante na filosofia política até o século XVII e que sempre guiou os saberes endógenos dos povos.
Razoabilidade combina razão e valores, sentimentos e vontades. Ela se guia pela prudência diante das consequências das ações. Ser razoável é ser pragmático, mas não resignado frente à injustiça ou ao erro.
Para desenvolver formas mais amplas de racionalidade e uma razoabilidade eticamente comprometida, é fundamental construir uma ecologia de saberes — tema que tratarei a seguir.
Como educar os educadores - A educação pautada pelas epistemologias do Sul exige uma profunda reforma do sistema educacional. Isso implica uma nova forma de letramento dos educadores e o desenvolvimento de uma pedagogia renovada.
Enquanto o conhecimento científico sempre teve forte presença na educação formal, os demais saberes endógenos estiveram ausentes da escola, embora presentes nas comunidades e na vida cotidiana. Essa ausência gera duas consequências:
- A escola deve abrir espaço para que os sábios dos conhecimentos endógenos sejam escutados presencialmente por estudantes, que poderão dialogar com eles.
- A educação formal deve ocorrer, em parte, na sala de aula e, em parte, nas comunidades — tanto para alunos quanto para professores.
Essas duas condições devem ser aplicadas de forma apropriada em todos os níveis da educação, da educação infantil ao ensino superior.
As epistemologias do Sul e a metodologia - Não há razão para limitar o conceito de ciência ao modelo ocidental. Civilizações como a chinesa e a indiana reivindicaram, nos últimos dois séculos, possuir ciências próprias, com rigor científico e resultados tecnológicos comparáveis aos da ciência ocidental. No caso da Índia, tem-se valorizado uma ciência que combina elementos ocidentais com criatividade própria, adaptando a pesquisa científica às necessidades da sociedade indiana.
A construção de ecologias de saberes pode acolher tanto novos conceitos de ciência quanto diálogos transformadores entre a ciência eurocêntrica e os saberes endógenos. O essencial é que, sejam ou não chamados de ciência, esses conhecimentos superem a “linha abissal” — ou seja, partam do princípio de que a humanidade é uma totalidade, e que não existe sub-humanidade. Além disso, consideram a humanidade como parte integrante da totalidade da vida, que inclui também a natureza.
As epistemologias do Sul promovem, acima de tudo, um conhecimento ou uma ciência pós-abissal.
A construção dessa ciência ou ecologia de saberes não pode ser feita por meio das mesmas metodologias que fundaram a ciência abissal eurocêntrica. Estas são tão extrativistas quanto o próprio capitalismo e colonialismo que legitimaram. Baseiam-se em:
- Separação total entre sujeito e objeto;
- Noção de neutralidade ética como condição da objetividade;
- Proibição do envolvimento pessoal do pesquisador além do necessário;
- Supremacia das metodologias quantitativas sobre as qualitativas.
As metodologias propostas pelas epistemologias do Sul são metodologias colaborativas. Elas se fundamentam na relação sujeito–sujeito e visam construir conhecimento que fortaleça as subjetividades de todos os envolvidos. Nessa perspectiva, objetividade não significa neutralidade social ou política.
Não existe um “ponto zero” de onde o cientista observa tudo sem se posicionar. A objetividade, nas epistemologias do Sul, busca criar sujeitos mais conscientes e capacitados para superar a condição de objeto à qual foram historicamente relegados por sociedades injustas e discriminatórias.
Por isso, a construção da objetividade caminha junto com a construção da subjetividade — tanto do(a) pesquisador(a) quanto da realidade humana (ou não humana) investigada.
A objetividade está no uso de metodologias que revelem a complexidade, a diversidade e a dinâmica da realidade investigada. A pesquisa colaborativa é o esforço conjunto entre pesquisador e pesquisado para evitar visões simplistas, superficiais ou dogmáticas.
No meu livro O fim do império cognitivo, dedico três capítulos às questões metodológicas, que são as mais frequentemente levantadas por jovens pesquisadores interessados na perspectiva das epistemologias do Sul.
O conhecimento pós-abissal é sempre um co-conhecimento: um “conhecer com”, e não um “conhecer sobre”. Ele possui uma autonomia relativa e exige constante autorreflexividade, para atender a dois critérios de confiança:
- A autonomia dos métodos usados;
- A utilidade da pesquisa para fortalecer lutas sociais contra a dominação.
Em outras palavras, confiança na metodologia e confiança no impacto social do conhecimento.
As orientações metodológicas não são receitas automáticas, porque os contextos de produção de conhecimento são extremamente diversos. O “conhecer com” pode acontecer:
- Em arquivos, bibliotecas ou espaços habitados por grupos subalternizados;
- Estando presente nas ações ou estudando-as muitos anos depois;
- Abrindo o passado para entender o presente;
- Por meio de diálogos — reais ou imaginários, com seres humanos ou não humanos;
- Com linguagens escritas, orais ou sensoriais;
- Demandando investimento emocional ou físico.
A ciência moderna eurocêntrica jamais tratou todos os sentidos humanos com equidade. Sempre privilegiou a visão e a audição, treinando-os para o extrativismo cognitivo. Assim, formaram-se uma “visão abissal” e uma “audição abissal”, treinadas para captar apenas o que serve aos interesses dominantes. O que não se quer ou não se pode ver ou ouvir é considerado irrelevante.
A experiência sensorial, assim, tornou-se parcial e superficial — condição essencial para manter invisível a linha abissal que marca a origem da ciência moderna.
As epistemologias do Sul levam a sério a dimensão corpórea do conhecimento e, por isso, valorizam todos os sentidos na investigação. Ver e ouvir em uma lógica pós-abissal é ver e ouvir com profundidade e abertura, com disposição para o inesperado. Pesquisa que não surpreende, apenas repete o existente mecanicamente.
A diversidade de condições, contextos e objetivos específicos é virtualmente infinita. Mas isso não significa anarquia metodológica.
A diversidade de condições, contextos e objetivos específicos é virtualmente infinita. Mas isso não significa anarquia metodológica. O cientista pós-abissal utiliza metodologias assim como um artesão emprega as técnicas e ferramentas que conhece: de maneira criativa, e não mecânica.
Um bom conhecimento das técnicas e o respeito pelos instrumentos são essenciais para evitar a repetição do já feito, permitindo a produção de peças novas, únicas, nas quais se revelem a personalidade e o investimento emocional do artesão ou da artesã.
Para uma nova imaginação do mundo - Os princípios e metodologias propostos pelas epistemologias do Sul criam condições para uma nova imaginação do mundo. A título de exemplo, apresento dois temas: fracasso versus êxito e vida e experiência vividas versus perícia técnica.
Fracasso e êxito - O conhecimento dominante em determinado contexto histórico determina o que uma sociedade entende como êxito ou fracasso. O colonialismo europeu, respaldado pelas epistemologias do Norte, impôs aos povos colonizados a noção de fracasso estrutural. Esse fracasso, imposto por potências estrangeiras e seus conhecimentos, foi tão duradouro que sobreviveu à independência política sob um novo nome: subdesenvolvimento.
Esse fracasso perdura até hoje. O momento histórico atual pode ser definido como o início de uma rebelião consistente e global contra esse fracasso imposto.
Os desafios que enfrentamos podem ser formulados assim: o fracasso estrutural, embora apresentado como transitório, anunciava um êxito futuro — desde que os povos aceitassem as mesmas estruturas que geraram o fracasso. Essas estruturas foram sendo atualizadas sob diferentes nomes: evangelização cristã, valores da civilização ocidental, progresso histórico linear, desenvolvimento e, por fim, “ajuda ao desenvolvimento”.
Ou seja, o fracasso imposto prosperou com base na ideia de que não era imposto — de que os povos colonizados eram os verdadeiros culpados — e que só poderiam superar sua condição seguindo as regras definidas por quem os havia oprimido.
A armadilha desse dispositivo ideológico consistia em desarmar os povos colonizados e, posteriormente, os chamados “subdesenvolvidos”. Duas ideias foram por muito tempo ocultadas:
- Qualquer tentativa de êxito nas condições impostas acabava por reproduzir o fracasso;
- O fracasso dos colonizados era, na verdade, a condição do êxito das potências colonizadoras.
Assim, por exemplo, ao aceitarem a premissa de que eram “subdesenvolvidos”, esses países também aceitavam a falsa promessa de que, com ajuda externa, um dia seriam desenvolvidos. Essa promessa — uma verdadeira cilada — foi repetida por séculos, apesar dos fatos que a desmentiam constantemente.
Tornou-se impossível pensar que só havia países desenvolvidos porque existiam países subdesenvolvidos — e vice-versa.
As epistemologias do Sul contribuem para desmontar essa armadilha, criando condições epistemológicas para demonstrar o caráter imposto e ilegítimo do fracasso histórico. A partir disso, é possível construir concepções alternativas de êxito, novos projetos nacionais e formas de solidariedade internacional que não partam da imposição unilateral do fracasso pelas potências dominantes no sistema-mundo.
A denúncia do fracasso imposto se baseia em dois conceitos fundamentais: a linha abissal e a sociologia das ausências.
As epistemologias dominantes nos últimos séculos traçaram uma linha radical entre dois tipos de seres humanos: os plenamente humanos e os sub-humanos. Os primeiros compunham a “sociabilidade metropolitana”; os segundos, a “sociabilidade colonial”. A linha era tão radical que os princípios e valores aplicáveis aos primeiros foram considerados universais — inclusive na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, aprovada no mesmo ano em que se intensificava a expulsão dos palestinos de suas terras para a criação do Estado de Israel. Reparava-se, assim, um crime europeu cometendo outro, contra o povo palestino.
Essa linha abissal estruturou a modernidade: não era possível haver humanidade sem sub-humanidade. Embora não tenha sido invenção exclusiva do colonialismo europeu, foi com ele que essa linha alcançou seu ápice destrutivo.
A sociologia das ausências é um conjunto de procedimentos por meio dos quais as epistemologias do Sul denunciam a destruição das experiências históricas e dos saberes endógenos — o epistemicídio — legitimado pela linha abissal.
Essa denúncia aparece com clareza na epígrafe do livro de Ousmane Oumar Kane (Au-delà de Tombouctou, CODESRIA, 2017), uma citação de Kwame Nkrumah:
“Se a Universidade de Sankoré não tivesse sido destruída, se o professor Ahmad Baba, autor de 40 obras de história, não tivesse visto sua obra e sua universidade destruídas, se a Universidade de Sankoré, tal como era em 1591, tivesse sobrevivido aos estragos das invasões estrangeiras, a história acadêmica e cultural da África teria sido diferente do que é hoje.”
A sociologia das emergências e a ecologia de saberes - As epistemologias do Sul não se limitam à crítica. Elas buscam promover um conhecimento propositivo, transformador — em suma, um pensamento alternativo de alternativas.
Seus principais procedimentos são a sociologia das emergências e a ecologia de saberes, que muitas vezes requerem tradução intercultural.
A sociologia das emergências é um processo de descoberta — ou escavação — de conhecimentos, experiências e práticas sociais que existiam antes das invasões coloniais ou que foram criadas posteriormente como estratégias de resistência. O que emerge é emergente, não por ser novo, mas por ter sido reprimido ou suprimido durante muito tempo, por vezes séculos. Sua emergência consiste em sua revalorização ou transvalorização.
A sociologia das emergências pode assumir diferentes formas. Em minha experiência, destaco três:
1. Ruínas-sementes
São conhecimentos e experiências que sobreviveram nas piores condições de repressão e marginalização, mesmo após as independências políticas. O objetivo não é retornar a eles de forma nostálgica ou idealizada, mas sim enxergá-los como sementes de futuro — olhar para trás para caminhar com mais firmeza adiante.
Exemplos:
- Concepções sobre a relação entre seres humanos e natureza: talvez estejam nelas os caminhos para combater a pilhagem de recursos naturais, a escassez de água potável e o colapso ecológico.
- Modos tradicionais de governo comunitário: podem reforçar processos democráticos urbanos de base eurocêntrica, conectando-os a formas de participação mais enraizadas.
2. Apropriações contra-hegemônicas
Referem-se ao uso crítico e seletivo de conhecimentos e experiências que não são endógenos. Podem ser incorporados, desde que fortaleçam as lutas por soberania e pelo bem-estar dos povos.
Amílcar Cabral já alertava que os conhecimentos trazidos pelos colonizadores não deveriam ser rejeitados em bloco: o que fosse útil aos projetos de independência e soberania deveria ser aproveitado; o que não fosse, deveria ser recusado.
3. Zonas libertadas
São experiências inovadoras de convivência social e de tecnologia espalhadas pelos territórios — muitas vezes ignoradas por serem consideradas locais e, portanto, irrelevantes segundo os critérios universais do Ocidente.
Essas experiências devem ser estudadas e valorizadas como embriões de projetos mais amplos de sociedade, sempre respeitando a diversidade interna dos territórios onde surgem.
A ecologia de saberes - A diversidade de conhecimentos e experiências gerada pela sociologia das emergências exige um cuidado metodológico para evitar tanto o caos cognitivo quanto o relativismo.
A ecologia de saberes é esse cuidado. Ela consiste em colocar diferentes sistemas de conhecimento em diálogo.
Como todos os sistemas de saber são internamente diversos, a ecologia de saberes seleciona, em cada um, a vertente mais aberta ao diálogo e menos dogmática. O processo começa com a consciência dos limites de cada saber e com a avaliação de sua contribuição para uma compreensão mais ampla do mundo e para a transformação social.
Esse trabalho envolve um exercício crítico sobre os aspectos positivos e negativos de cada sistema de conhecimento — sejam científicos, sejam saberes populares ou ancestrais.
A construção da ecologia de saberes possui dois momentos:
- Um momento crítico, em que se desconstrói a supremacia de qualquer saber único;
- Um momento construtivo, em que se constrói o diálogo e a articulação entre saberes diversos.
Toda adesão acrítica a um sistema único de saberes — seja ele científico, religioso ou tradicional — é incompatível com as epistemologias do Sul. Tal adesão resulta em exclusão, fragmentação e enfraquecimento das lutas coletivas.
A ecologia de saberes é, portanto, mais do que diálogo: é um processo de transformação crítica dos próprios saberes envolvidos, orientado por lutas emancipatórias. É um antídoto contra o sectarismo e o dogmatismo.
Toda ecologia de saberes deve ser guiada pela razoabilidade pragmática mencionada anteriormente. Isso implica discutir finalidades, aspirações e projetos — de comunidade, de sociedade, de país, de mundo.
Artesania das práticas sociais emancipatórias - A fusão entre trabalho epistemológico e trabalho político ocorre segundo a lógica da artesania das práticas sociais emancipatórias.
A metáfora do artesão é fundamental: ele inova quando parece repetir, e repete quando parece inovar. Seu trabalho é revolucionário, mas cuidadoso. Ele evita que a revolução alimente, por reação, uma contrarrevolução ainda mais forte.
Vida e experiência vivida versus perícia técnica - Um dos problemas da ciência e da erudição eurocêntricas em contextos não europeus é a distância entre o que se aprende nas escolas e universidades e a vida vivida fora delas — nas comunidades, nas famílias, nos cotidianos.
Essa distância, embora talvez inevitável em qualquer processo formal de aprendizagem, pode ser agravada por barreiras linguísticas. O plurilinguismo, longe de ser negativo, é uma riqueza — sobretudo na África, onde ele é parte da experiência de vida de muitas populações. No entanto, ele foi convertido em desvantagem por causa da hierarquia social e política entre as línguas.
Outro tema conexo é a relação entre experiência social multissecular e a perícia técnica baseada na ciência eurocêntrica. Muitas dessas experiências acumularam saberes em áreas como manejo da terra e da água.
O desprezo por esse conhecimento tradicional, imposto pela hegemonia técnico-científica, teve consequências desastrosas. Um caso emblemático ocorreu na ilha de Bali, na Indonésia: o sistema tradicional de irrigação do arroz foi substituído à força por um sistema técnico moderno. O resultado foi tão negativo — com queda drástica na produção — que o sistema antigo teve de ser restaurado.
Conclusão - O mundo ocidentalizado caminha para transformar as relações sociais e interpessoais em relações virtuais — uma tendência intensificada exponencialmente com o advento da inteligência artificial. Os seres humanos vivem cada vez mais em um mundo anônimo, ainda que falsamente personalizado. Uma nova forma de solidão emerge, especialmente entre as novas gerações, que confundem autonomia com autoescravização. Nessas condições, as pessoas são reduzidas à sua produtividade.
As epistemologias do Sul valorizam a presença e a copresença, porque apenas elas são capazes de gerar relações de confiança, especialmente quando a ação coletiva envolve riscos. Presença e copresença são antídotos contra a política do ódio, contra o sectarismo e contra a transformação do outro em inimigo — em um alvo a ser eliminado.
Sem presença e copresença, a convivência pacífica e o compartilhamento de valores e interesses tornam-se praticamente impossíveis.
Tenho argumentado que o capitalismo e o imperialismo globais estão produzindo um desequilíbrio brutal entre medo e esperança. A esmagadora maioria da população vive com muito medo e pouca esperança. Enquanto isso, as elites super-ricas vivem com muita esperança e quase nenhum medo, pois acreditam ter derrotado seus inimigos históricos: os povos oprimidos, explorados e empobrecidos.
As epistemologias do Sul são uma contribuição concreta para reequilibrar o medo e a esperança. Para devolver um pouco de esperança às grandes maiorias empobrecidas, é necessário gerar, de novo, algum medo nas minorias enriquecidas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: