Feminicídio em alta
Enfrentar a violência contra as mulheres, em todas as instâncias da sociedade, é imperativo ético, responsabilidade coletiva e compromisso com a justiça social
A 19ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgada no início do mês, confirma uma realidade brutal, antiga e ainda enfrentada de forma superficial: a violência contra as mulheres segue sendo um dos mais graves problemas estruturais do país. Mulheres continuam sendo agredidas, ameaçadas e assassinadas simplesmente por serem mulheres, uma consequência direta da desigualdade de gênero enraizada na sociedade brasileira.
Em 2024, ao menos 3.700 mulheres foram assassinadas de forma violenta no Brasil. Desses casos, cerca de 1.492, aproximadamente 40%, foram registrados oficialmente como feminicídios. Isso representa uma média de quatro assassinatos por dia, ou um a cada seis horas. E sabemos: esses números podem ser ainda maiores, já que a identificação da motivação de gênero nos homicídios enfrenta obstáculos técnicos, institucionais e políticos em muitos estados brasileiros.
O perfil das vítimas segue um padrão dolorosamente previsível: a maioria são mulheres negras (63,6%), entre 18 e 44 anos (70,5%). A violência ocorre, em sua maioria, dentro de casa (mais de 64%), e os agressores são, em 80% dos casos, companheiros ou ex-companheiros. Em quase metade dos crimes, foi utilizada uma arma branca; em 25%, uma arma de fogo. Esses dados revelam uma face cruel das relações interpessoais, marcadas pelo controle, ciúme e dominação, expressões diretas de uma cultura machista ainda hegemônica.
As barreiras para romper o ciclo da violência são muitas: medo de represálias, ausência de redes de apoio, dependência financeira, especialmente quando há filhos envolvidos. Tudo isso dificulta a denúncia e torna a saída quase impossível para milhares de mulheres.
Do ponto de vista institucional, os dados escancaram as fragilidades do poder público. Mais de 555 mil medidas protetivas foram concedidas em 2024, mas mais de 101 mil foram descumpridas. Pelo menos 121 mulheres foram assassinadas mesmo estando sob medida de proteção. A cada minuto, duas mulheres acionam o 190 para relatar episódios de violência doméstica. Isso não apenas demonstra a dimensão do problema, como também evidencia a ineficácia dos mecanismos de proteção existentes em diversas regiões do país.
Some-se a isso o crescimento da extrema-direita nos últimos anos, cujos discursos machistas e conservadores buscam relativizar, desqualificar ou até negar a existência da violência de gênero. A ascensão dessa agenda reacionária tem sido um dos maiores obstáculos à emancipação das mulheres, promovendo um retrocesso nas políticas públicas de proteção e enfrentamento à violência.
A maioria dos feminicídios é cometida por homens próximos à vítima. Esse dado não é apenas uma estatística: é um alerta estratégico que deve orientar tanto as políticas de Estado, incluindo a educação e a formação de meninos e adolescentes, quanto as ações da sociedade.
Um recorte relevante, presente na página “195” do anuário, refere-se às cidades com mais de 100 mil habitantes que apresentam as taxas mais elevadas de estupros no Brasil. Ao analisar essa tabela, observa-se que, entre os 25 municípios mais violentos nesse tipo de crime, 21 deram vitória ao candidato Jair Bolsonaro, em 2022. Isso revela uma correlação entre sociedades mais alinhadas ao discurso da extrema-direita e a incidência de violência contra a mulher.
A desqualificação de políticas específicas, como a Lei Maria da Penha, e o esvaziamento das estruturas institucionais de enfrentamento, como as delegacias especializadas e a rede de acolhimento, são amplificados pela construção de narrativas que atacam a legitimidade das pautas feministas e dos direitos das mulheres. O resultado é a criação de um ambiente ainda mais hostil à denúncia e à proteção, onde as mulheres, especialmente as mais vulneráveis, são coagidas a permanecer em silêncio.
Outro fator relevante a ser considerado é o impacto de determinados discursos religiosos, que têm sido instrumentalizados pela extrema-direita para reforçar estruturas patriarcais. Em várias comunidades, interpretações teológicas centradas na submissão feminina e na perpetuação do papel tradicional da mulher na família acabam por inibir a autonomia das mulheres e, em muitos casos, desencorajam denúncias de abuso. É fundamental destacar que a crítica aqui não é contra a fé ou a religião em si, mas contra as leituras que algumas instituições fazem de textos sagrados, interpretações que perpetuam relações desiguais de poder e silenciam as vozes das mulheres.
Enquanto a prevenção continuar negligenciada, enquanto a extrema-direita se fortalecer nas esferas políticas e nos discursos religiosos, como vemos na bancada evangélica do Congresso Nacional, enquanto algumas instituições continuarem a apresentar a mulher como inferior, com seus corpos e decisões sendo controlados pelos homens, e enquanto a proteção depender de estruturas frágeis, seguiremos contabilizando novas vítimas.
Vivemos em um país laico e, se realmente praticássemos a separação entre Igreja e Estado, não teríamos representantes religiosos no Congresso. Se a laicidade fosse, de fato, respeitada, a chamada “bancada evangélica” sequer existiria e todas as formas de expressão religiosa seriam igualmente reconhecidas e protegidas. A perpetuação da falácia de que vivemos em um país laico contribui apenas para maquiar a tragédia que enfrentamos. Ouvir de pastores que mulheres devem ser submissas aos seus parceiros e que meninas não devem estudar ou frequentar a universidade é um ataque contra todas as mulheres deste país.
Apesar de avanços legislativos importantes, como a Lei Maria da Penha e a tipificação do feminicídio no Código Penal, sua efetividade depende da vontade política, do investimento estrutural e da capacitação permanente dos profissionais da linha de frente. Delegacias especializadas, redes de acolhimento, atendimento psicológico e jurídico ainda funcionam, em muitos lugares, de forma precária e com recursos insuficientes. Enfrentar a violência contra as mulheres, em todas as instâncias da sociedade, é um imperativo ético, uma responsabilidade coletiva e um compromisso com a justiça social.
Anuário Brasileiro 2025
https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2025/07/anuario-2025.pdf
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: