Eles atravessaram o país com um sonho
A morte de três estudantes da UFPA no caminho para o Congresso da UNE escancara a desigualdade, mobiliza o país e reacende grito por soberania e justiça social
Leandro, Ana Letícia e Welfesom atravessavam o Brasil a caminho do 60º Congresso da UNE, em Goiânia, onde participariam dos debates sobre o futuro do país. Todos eram estudantes da UFPA, todos militantes, todos jovens. Morreram na BR-153, em Goiás, quando um caminhão invadiu a contramão e destruiu o micro-ônibus em que viajavam. Também morreram os dois motoristas. A tragédia atingiu em cheio uma geração que insiste em existir politicamente.
Na cerimônia de abertura do Congresso, realizada nesta quarta-feira, 17 de julho, não houve dispersão nem hesitação. O luto foi tratado com firmeza política. Todos os discursos, sem exceção, giraram em torno de dois eixos: soberania nacional e taxação dos super ricos. Estavam nos bonés, nas faixas, nas palavras de ordem e nos microfones. O ministro Márcio Macêdo foi direto, “É dessa dor que os estudantes do Brasil, no Congresso da UNE, vão gritar. Uma taxação justa. Pela reforma tributária. Pra botar os pobres no orçamento e os super ricos no Imposto de Renda”.
Mas também falou com emoção sobre os jovens que perderam a vida, “Três jovens que saíram do Norte do Brasil, do Pará, que atravessaram esse país com o sonho de vir aqui no Congresso da UNE, defender o nosso país, participar desse momento histórico e escrever um capítulo importante da história do movimento estudantil e do Brasil”.
Eu ouvi esse discurso e voltei para o ano de 2007, quando saí de Fortaleza com um grupo de universitários socados em um ônibus fretado, pago com as cédulas doadas no cruzamento da Avenida da Universidade e 13 de Maio. A viagem começou seus 2.500km ao som de “Carneiro”, de Ednardo e 36 horas pois o refrão virou tortura. Vinte anos depois, ainda dou risada toda vez que escuto “Amanhã, se der o carneiro, eu vou-me embora pro Rio de Janeiro”. Eu estava na segunda graduação, sem dinheiro no bolso, esperando uma bolsa que só caiu oito dias depois. Sobrevivi com pão de queijo, Toddyho e a generosidade dos amigos.
Chegamos ao Rio exaustos, famintos e maravilhados. A Bienal ocupava a Lapa com o tema “Brasil-África: um Rio chamado Atlântico” e nossa delegação ocupava com colchonetes o chão do Cefet-Química, aliviados com a frieza do chão de cimento naquela cidade quente, tão quente. Aquele calor tão diferente das proximidades da Linha do Equador, não dava trégua e trazia de carona o comentário desaforado de quem não entende geografia: "Cearenses com calor???". Para evitar o constrangimento aprendemos a sufocar a reclamação e aguentar quentura ao limite. Lá pro segundo dia de evento quase toda a delegação do Ceará teve uma pilôra e fomos caindo um por um, até ocuparmos a enfermaria da UNE. A enfermeira perguntou de onde a gente era. Silêncio geral. Ninguém aguentava mais piadas sobre o calor do Ceará. Ela insistiu ouvir uma vozinha fraca, quase desfalecida, “ó, o meu pai é do Rio Grande do Sul”.
E a delegação do Pará era sempre a mais esperada. Patrimônio simbólico da UNE, eles chegam depois de tudo, com as histórias mais incríveis e os relatos mais impossíveis da viagem. Não à toa, vinte anos depois, já como jornalista, entrevistei duas jovens lideranças estudantis que estavam organizando o 60º Congresso. As duas falaram, sem combinar, da expectativa pela chegada da delegação do Pará. Porque eles não vêm só representar o Norte, eles vêm representar a resistência.
É isso que dá outra dimensão a essa tragédia. Eles atravessaram o país com um sonho. E agora cabe ao país atravessar essa dor com dignidade. Porque Leandro, Ana Letícia e Welfesom são mais que vítimas, são o próprio retrato da juventude que insiste em se manter politizada. Eles vinham escrever um capítulo importante da história do Brasil. E escreveram.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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