Do campo às cidades, o legado de Kongjian Yu
A visão de Kongjian Yu mostra que o futuro das cidades depende da reconciliação entre urbanismo e natureza
China. Desde que descobri a sociedade ecológica chinesa, comecei a pesquisar as mudanças que a China estava implementando nas cidades e no campo. Foi quando descobri as cidades-esponja e Kongjian Yu, o arquiteto chinês que inventou o conceito, que fez mais de 100 projetos pelo mundo, sempre em busca do bem-estar humano e dos direitos da natureza, com a implementação de projetos sistêmicos que não fossem apenas parques, mas nichos ecológicos que pudessem evitar enchentes e fomentar a biodiversidade nas cidades.
Ele dizia que manter os rios em tubulações era como o antigo pé das mulheres chinesas antes da revolução: contido, preso. Mas deixar os rios fluírem nas cidades, adaptar as cidades a eles, é deixar o xi fluir. Trata-se de uma concepção anticolonialista das cidades, pois a forma como trabalhamos com a água nos centros urbanos é essencialmente europeia, apesar de os climas de nossos países do Sul Global serem bem diferentes.
Kongjian Yu era alguém que abertamente falava para sairmos da caixinha e pensarmos em sistemas próprios, baseados na integração com a natureza, como nossos povos originários já fazem há séculos, para romper com a lógica europeia da construção urbana. Na palestra na Conferência de Arquitetura e Urbanismo (CAU), ele disse que ainda precisamos inovar de forma colaborativa e que é preciso ir além da lógica atual da arquitetura e do urbanismo.
Ele era filho de pequenos agricultores, cresceu em uma vila na qual as plantações de arroz eram sempre inundadas pela água e, certa vez, quase foi levado pela correnteza. Mas a plantação diminuía a velocidade da água, e foi nesse sistema totalmente integrado à natureza, com a plantação em harmonia com o rio, que se inspirou para criar o conceito e o sistema das cidades-esponja. Kongjian é um exemplo de como uma revolução socialista pode transformar várias estruturas da sociedade e até do mundo.
Ele ganhou vários prêmios internacionais, como o IFLA Sir Geoffrey Jellicoe Award (2020), o Cooper Hewitt National Design Award (2023) e o RAIC International Prize (2025), todas grandes premiações na área. Mesmo discordando do sistema europeu, ele ainda conseguia dialogar e criar com seus representantes.
Era professor da Universidade de Pequim e, ao mesmo tempo, dirigia seu próprio estúdio de paisagismo/urbanismo (Turenscape). Para ele, o paisagismo estava unido ao urbanismo: não era decoração, mas parte essencial para o funcionamento das cidades. Vários dos mestrados que dirigia na universidade eram sobre o funcionamento de parques que havia criado, a relação com as espécies locais, o que funcionava e o que não funcionava.
Ele unia arte e ciência e, em vez de pensar seus projetos como algo imutável, sempre previa mudanças possíveis e melhorias. Não queria que fosse uma ideia fixa, mas algo que estivesse em constante construção.
Em uma de suas palestras para Harvard, onde fez seu mestrado e criou o sistema de cidades-esponja, contou que passou 20 anos nos corredores do poder na China, enviando a todos os gestores livretos que criava para explicar o sistema e por que seria importante torná-lo uma política pública.
Em 2013, com a carta de Xi Jinping sobre a China se tornar uma sociedade ecológica, finalmente conseguiu seu objetivo: ele é o único urbanista/paisagista que inspirou uma política pública. Com a persistência chinesa, tendo passado anos trabalhando na academia e fora dela, com mais de 20 livros publicados e mais de 300 artigos científicos, ele mostrou que é necessário sonhar — mas um sonho real, coletivo, como também sonham nossos povos originários.
São sonhos cuja beleza está na integração do ser humano com a natureza, sobre como os direitos da natureza também são nossos, e como nossa vida melhora quando pensamos em termos decoloniais e olhamos para o nosso próprio chão.
Assisti à palestra dele em Brasília, na Conferência Internacional de Arquitetura e Urbanismo, faz mais ou menos um mês. Ele permaneceu viajando pelo Brasil, se maravilhando com nosso meio ambiente e nossos povos, com um olhar decolonial e de construção coletiva.
Ele tirou foto com cada um dos estudantes que quis. Uma fila gigante que ele pacientemente esperou cerca de meia hora até poder sair, mesmo após a palestra já ter atrasado. Não se irritou em momento algum: deu a palestra com um sorriso no rosto e depois atendeu cada pessoa com calma, inclusive após dar uma entrevista para a própria CAU, bem depois do meio-dia.
Conversei com ele nesse momento, apresentei um projeto que estamos construindo na periferia do Distrito Federal, e ele me deu seu cartão, dizendo para entrar em contato, pois tinha todo interesse em construir com universidades brasileiras e, especialmente, com as periferias.
Ao final da palestra, em vez de mostrar mais um projeto aplicado em outros locais, ele falou sobre o Brasil, sobre como podemos ser o maior jardim do mundo e como somos o último refúgio do planeta em termos ecológicos.
Ele também trouxe perspectivas de povos do México, como os chinampas, que eram campos de cultivo coletivos sobre a água — prática asteca anterior aos colonialistas espanhóis —, que não apenas destruíram a prática, mas também o próprio lago em que era realizada, e que não existe mais.
O fato de ele compreender os chinampas, tema presente na tese de doutorado da professora Liza Andrade (UnB), mostra que realmente estudou a América Latina antes de vir para cá.
Kongjian Yu morreu no Mato Grosso do Sul, em busca de criar conosco e de realmente conhecer nosso país. Ele não ficou apenas na superfície do que é o Brasil, como a maioria dos colonialistas faz: aprofundou-se em nossa realidade e mostrou uma abertura surpreendente para quem nós somos.
Foi ele quem me inspirou a estudar arquitetura, pois sua prática de vida mostra que é possível que a arquitetura e o urbanismo de fato transformem, que a ecologia não está distante das cidades, mas precisa ser integrada a elas.
Minha vida inteira trabalhei de forma colaborativa, seja a partir das palavras ou dos projetos, e, para mim, esse é o sentido da vida: trabalhar junto para fazer, mesmo que seja o mínimo, para proteger nossos povos e florestas.
Kongjian Yu ainda inspirará muitas gerações a pensarem de outra forma: a arquitetura vai muito além de um projeto autoral e pode ser um projeto coletivo de mundo e de um novo bem-viver, baseado em práticas ancestrais.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.