Da 25 de Março ao Buraco da Gia: Everybody hates Trump
Dos centros das capitais ao interior, camelôs nordestinos digitalizam a economia com Pix e redes sociais, desafiando bancos, big techs e Trump
No coração dos centros comerciais do Nordeste, um fenômeno silencioso vem transformando o cotidiano de milhões de brasileiros. Nas feiras de Campina Grande, nas ruelas de Maracanaú, nas galerias da José Avelino e nos becos do Alecrim, o que se vê não é apenas comércio popular, mas a construção de uma infraestrutura digital autônoma, improvisada e eficaz. A proliferação de QR codes colados em bancas de confecção, a explosão de perfis de Instagram vendendo no atacado, o uso intensivo de Pix para driblar o sistema bancário tradicional e a ausência deliberada de maquininhas com taxas absurdas desenham um mapa real da soberania econômica no Brasil contemporâneo.
Criado por servidores do Banco Central com tecnologia pública e gestão estatal, o Pix nasceu como uma resposta brasileira à exclusão bancária, desafiando a lógica do lucro privado ao colocar a eficiência digital a serviço do interesse coletivo.
Esse movimento, nascido à margem das políticas públicas e fora dos radares da elite financeira, acabou chamando a atenção de quem comanda o comércio global. Quando Donald Trump ameaça retaliar o Brasil com tarifas de 50% e o governo dos Estados Unidos abre uma investigação contra o Pix e a legislação brasileira de proteção de dados, não está reagindo a uma estatística macroeconômica. Está mirando diretamente na autonomia construída por camelôs, sacoleiras e feirantes nordestinos, que reconfiguraram suas práticas com celulares baratos, aplicativos gratuitos e muita inventividade.
Em Campina Grande, os dados comprovam essa virada. Entre janeiro e maio de 2025, foram criados 3 867 novos empregos formais, com um saldo positivo de 567 postos apenas em janeiro. No mesmo período, foram abertas 387 novas empresas, 52 delas já nascidas digitais, com atuação majoritária em redes sociais e plataformas online. Segundo a CDL local, 92% dos estabelecimentos relataram aumento nas transações via Pix. O valor médio por operação na Paraíba chegou a R$ 160,83, o segundo maior do Nordeste. Esses dados ilustram um ecossistema econômico que alia tradição mercantil com inovação tecnológica, impulsionando a inclusão produtiva no coração do interior nordestino.
Nesse cenário, o Banco do Nordeste também atua como pilar complementar, oferecendo crédito direcionado a microempreendedores e integrando operações financeiras com o uso do Pix em toda a região. Em 2024, o banco registrou mais de 190 milhões de transações via Pix, movimentando R$ 87 bilhões no Nordeste. No mesmo horizonte de inovação popular, começa a ganhar força a proposta do Pix Social, projeto que articula moedas sociais locais com a tecnologia do Pix para criar sistemas de pagamento comunitários lastreados em real. Voltado para prefeituras, movimentos e redes de apoio mútuo, o modelo amplia a capacidade de circulação monetária nos territórios e pode reforçar arranjos econômicos solidários já existentes no interior nordestino.
Em Fortaleza, a modernização do comércio informal é visível nas ruas e documentada nas universidades. A Feira José Avelino, no centro da cidade, reúne aproximadamente 8 000 vendedores, com até 20 000 visitantes por dia nos períodos de alta estação. Mas a engrenagem popular não se limita à feira formalizada. Nos arredores, o Buraco da Gia segue pulsando como central de abastecimento do comércio informal da cidade, especialmente nas madrugadas de segunda e quinta-feira. Ali, onde a arquitetura é improvisada e o concreto convive com lonas, carrinhos e caixas de papelão, o Pix virou ferramenta essencial. No vaivém de sacoleiras, atravessadores e ambulantes, o QR Code é a senha de entrada num ecossistema que funciona à margem do sistema bancário, mas em plena sintonia com o tempo real da economia digital.
Essa tendência se estende a Maracanaú, na região metropolitana de Fortaleza, onde antigos vendedores da José Avelino migraram para espaços como a Feira do Caranguejo, o Mercado Carlos Jereissati e o Centro do Empreendedor. Nesses ambientes, a informalidade permanece, mas a informalidade analógica deu lugar a um comércio cada vez mais digitalizado. Os catálogos de roupas são compartilhados por link, os pagamentos são feitos por Pix, e a entrega é feita via mototáxi conectado por aplicativo. As redes sociais funcionam como vitrine, marketing, SAC e fidelização de cliente ao mesmo tempo. Algumas vendedoras possuem número de seguidores superior à população dos bairros onde atuam, evidenciando o alcance dessas práticas.
Em Abreu e Lima, no entorno do Recife, e no Alecrim, em Natal, o processo é semelhante, embora faltem dados detalhados. A adoção do Pix se tornou padrão nas transações diárias, e muitos comerciantes utilizam redes sociais para captar pedidos e manter contato com a clientela. Mesmo sem mensuração exata dos valores movimentados, é evidente que o comércio popular desses centros se digitalizou pela base, de forma autônoma e acelerada, reorganizando os circuitos de consumo fora do sistema bancário tradicional.
A escalada do Pix, associada à regulamentação brasileira de proteção de dados, coloca o país na contramão do modelo extrativista de dados imposto por plataformas globais. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), sancionada em 2018 e em vigor desde 2020, estabelece regras claras sobre a coleta, o uso, o armazenamento e o compartilhamento de dados pessoais. Em termos simples, a LGPD exige que qualquer empresa ou órgão informe ao cidadão quais dados está coletando, para que vai usá-los e com quem pretende compartilhá-los. Além disso, garante o direito de acesso, correção e até exclusão dessas informações. Isso limita drasticamente a ação de empresas de mediação digital acostumadas a explorar os dados dos usuários como matéria-prima gratuita para lucros bilionários.
A reação estadunidense assume a forma de uma guerra híbrida, como bem analisado no estudo conjunto de Isabela Rocha e Laura Ludovico, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil. O artigo revela que Trump não só mira tarifas mas também o Pix, a LGPD e o Judiciário como parte de uma ofensiva orquestrada em múltiplas frentes. As autoras destacam que entre 2020 e 2024 foram realizadas cerca de 20 bilhões de transações via Pix, movimentando mais de R$ 11 trilhões, o que evidencia a dimensão estratégica do sistema.
Nesse contexto ganha destaque a fintech brasileira Left, que passou a se articular com a UnionPay, maior operadora de cartões da China. O objetivo é integrar Pix, QR Code e cartões em uma plataforma híbrida que permita aos comerciantes locais negociar diretamente com fornecedores asiáticos. Essa aliança rompe com o domínio das bandeiras anglo-americanas e fortalece um ecossistema financeiro multipolar. O Left Bank, fintech criada pelo ex-deputado Marco Maia, surgiu como uma espécie de banco do povo digital, oferecendo Pix gratuito, cartão pré-pago e microcrédito com juros baixos para quem o sistema bancário tradicional sempre ignorou. A LEFT vem testando essa tecnologia em polos como Fortaleza e Campina Grande, focando justamente nos circuitos informais digitalizados.
O Judiciário brasileiro, por sua vez, reforçou a constitucionalidade da LGPD e impediu tentativas de privatização forçada do sistema de pagamentos. O Supremo Tribunal Federal garantiu respaldo à Autoridade Nacional de Proteção de Dados e reconheceu o papel estratégico do Banco Central como gestor do Pix. Não à toa, o STF passou a ser alvo de pressões externas e internas, com ataques discursivos que buscam deslegitimar sua atuação.
A disputa em curso não é apenas sobre tarifas, aplicativos ou normas técnicas. Trata-se de uma luta de modelo civilizatório. De um lado, a tentativa de manter o Brasil preso à lógica da intermediação global via bancos, big techs e plataformas de vigilância. Do outro, a emergência de um modelo descentralizado, popular, conectado e soberano, que floresce nas feiras de Maracanaú, nos camelódromos de Fortaleza, nos galpões de Campina Grande, nas ruas do Alecrim e nas praças de Abreu e Lima. São nesses territórios que o futuro da economia brasileira está sendo disputado. E o mundo, finalmente, começa a perceber.
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