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      Sara York

      Sara Wagner York ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior é bacharel em Jornalismo, licenciada em Letras Inglês, Pedagogia e Letras vernáculas. Especialista em educação, gênero e sexualidade, primeiro trabalho acadêmico sobre as cotas trans realizado no mestrado e doutoranda em Educação (UERJ) com bolsa CAPES, além de pai, avó. Reconhecida como a primeira trans a ancorar no jornalismo brasileiro pela TVBrasil247.

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      Cotas Trans são Constitucionais: a FURG, o Judiciário e a Luta por Justiça Social no Brasil

      A revogação das cotas trans pela Justiça Federal: um precedente perigoso

      Na contramão dos avanços democráticos e dos direitos humanos, uma decisão recente da Justiça Federal provocou indignação e alerta em diversos setores da sociedade civil e acadêmica. O juiz Gessiel Pinheiros de Paiva, da Justiça Federal do Rio Grande do Sul, determinou a anulação do edital que previa cotas para pessoas trans na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). A sentença não apenas revoga a política de ação afirmativa, mas também determina o cancelamento das matrículas dos 30 estudantes trans que ingressaram por esse meio – um ato com efeitos devastadores na vida concreta de pessoas historicamente marginalizadas.O argumento judicial: uma contabilidade perversa da violênciaA justificativa utilizada pelo magistrado baseia-se em uma leitura rasa e estatística da violência. Segundo ele, os dados que apontam o Brasil como o país que mais mata pessoas trans no mundo seriam insuficientes para fundamentar uma política de inclusão. Ele comparou os 781 assassinatos de pessoas trans entre 2017 e 2021 (dados da Rede Trans) ao número geral de homicídios no país (616 mil), afirmando que a proporção de mortes trans seria “inferior à média nacional”.A decisão ignora que a lógica das ações afirmativas não se funda em maiorias estatísticas, mas na gravidade estrutural da exclusão. Violência contra pessoas trans não é apenas letal — ela é institucional, cotidiana, e começa no momento em que essas pessoas são expulsas de casa, das escolas, dos sistemas de saúde e trabalho, restando-lhes uma cidadania precária, muitas vezes restrita à sobrevivência.Autonomia universitária, igualdade e reparação: o tripé constitucionalA Constituição de 1988 é explícita ao consagrar os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da não discriminação. Além disso, garante às universidades autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial (art. 207). Ou seja, as instituições públicas de ensino têm o direito e o dever de implementar políticas que respondam às desigualdades sociais, inclusive por meio de cotas.Pessoas trans e travestis são uma das populações mais excluídas do país. A evasão escolar nessa comunidade é altíssima, e a expectativa de vida gira em torno dos 35 anos — uma tragédia anunciada que o Estado não pode mais ignorar. Nesse cenário, as cotas não são privilégio; são um instrumento legítimo de reparação histórica e garantia de acesso ao direito fundamental à educação.A jurisprudência que o juiz ignorouO Supremo Tribunal Federal já consolidou o entendimento de que ações afirmativas são constitucionais e essenciais para o enfrentamento das desigualdades estruturais. A decisão da ADPF 186, que validou as cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB), estabeleceu que a igualdade material exige medidas proativas do Estado. Da mesma forma, no julgamento da ADO 26 e MI 4733, o STF reconheceu a LGBTfobia e a transfobia como formas de racismo, impondo ao Estado o dever de implementar políticas públicas de proteção e inclusão.Negar às pessoas trans o acesso facilitado à educação é violar diretamente essas premissas. A decisão judicial que anulou as cotas desconsidera não apenas esse arcabouço jurídico, mas também tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Opinião Consultiva 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que reconhece a identidade de gênero como um direito humano protegido.Medidas urgentes: o que pode e deve ser feitoA reversão da decisão do juiz Gessiel é urgente e possível. Há pelo menos quatro frentes de atuação imediata:1. Mandado de Segurança ou Ação Civil Pública – com base no direito adquirido dos estudantes já matriculados, e nos princípios da segurança jurídica e da vedação ao retrocesso.2. Representação ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – por possível violação de direitos fundamentais e abuso de autoridade.3. Atuação do Ministério Público Federal e Defensorias Públicas – como órgãos de defesa da ordem jurídica e dos direitos das minorias.4. Mobilização social e política – com articulação entre universidades, movimentos sociais, OAB, parlamentares e sociedade civil.É fundamental lembrar que, ao longo da história, o Brasil utilizou cotas para beneficiar elites agrárias, como no caso da chamada “Lei do Boi” (1968–1985), que reservava vagas em escolas técnicas para filhos de fazendeiros. Mais recentemente, legislações estaduais asseguram cotas em concursos e universidades para filhos de policiais militares. Isso demonstra que o debate não é sobre a legitimidade das cotas em si, mas sobre quem tem direito de acessá-las. Por que, então, o desconforto quando se trata de pessoas trans?Avanços civilizatórios não se negociamA decisão judicial que cancela as cotas trans na FURG não é apenas uma interpretação questionável da Constituição — é uma afronta à própria noção de justiça social. É também um exemplo explícito do quanto o sistema judiciário, muitas vezes, opera a serviço da manutenção de privilégios e da exclusão, sob o manto da “neutralidade técnica”.Mais do que nunca, é preciso afirmar com veemência: cotas para pessoas trans são constitucionais, legítimas e indispensáveis. Não é admissível que conquistas históricas, fruto da luta de gerações inteiras, sejam revogadas por interpretações regressivas e insensíveis. A história já nos ensinou: não há democracia sem inclusão. Não há justiça sem reparação. Não há futuro possível sem pessoas trans vivas, educadas e plenamente cidadãs.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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