Como o Brasil pode reagir à guerra comercial dos Estados Unidos?
O Brasil pode ser gravemente impactado por tarifas de até 50% dos EUA se não romper com o modelo liberal submisso ao imperialismo
Em 22 de abril, no artigo “Cenários para o Brasil com a guerra comercial entre EUA e China” (GGN), apresentamos um cenário provável de acirramento da guerra comercial de Trump contra o Brasil. Desde então, o Planalto Central apostou em deixar a situação em banho-maria, esperando, em berço esplêndido, que a questão se equacionasse naturalmente a favor do Brasil. Muitos apontaram que Trump não teria razões para atacar o Brasil, pela balança comercial superavitária dos EUA, pelo controle econômico por meio de seus monopólios, a tradição liberal e as relações históricas, por o Brasil já aceitar passivamente sua posição subalterna no mundo, por vivermos todos no Ocidente, por termos valores similares etc. A expectativa era que o Brasil passaria incólume à guerra tarifária ao reafirmar as condições favoráveis de troca por parte dos EUA. Tudo isso operado pela fina flor do Itamaraty e a elite tecnocrática. Alguns mais otimistas até diziam que o Brasil sairia ganhando na guerra comercial se conseguisse viver em neutralidade e harmonia com Estados Unidos e China.
Agora, o Brasil se vê diante da possibilidade de tarifas de 50% sobre todos os seus produtos exportados aos EUA a partir de 1º de agosto. Consternado, o presidente da CNI, Ricardo Alban, reflete que "não existe qualquer fato econômico que justifique uma medida desse tamanho, elevando as tarifas sobre o Brasil do piso ao teto. Os impactos dessas tarifas podem ser graves para a nossa indústria, que é muito interligada ao sistema produtivo americano". Imaginando que escapariam da guerra comercial pela afinidade cultural com Miami, setores da burguesia creem tanto no sistema norte-americano que facilmente se enganam, apesar de todos os fatos. Afinal, que os Estados Unidos, às custas da espoliação do trabalho e da apropriação de tributos de outros países, queiram remir seus déficits, “quebras”, perdas e prejuízos tidos na aventura do roubo e do lucro não deveria ser motivo de surpresa.
Porém, o governo democrático-liberal está confuso, estimulado e insuflado pelos sonhos do seu capitalismo social cosmopolita. O governo baseou sua estratégia na reeleição de Biden, não construindo uma estratégia própria para lidar com Trump. Membros do governo enfatizam o caráter “irracional” de Trump, sem conseguir entender suas motivações. Iludido na busca de ser um sócio minoritário da ordem capitalista, adaptando-se a ela, o governo não preparou um plano de contingência em abril, maio e junho, na expectativa de que a nobre diplomacia do Itamaraty resolveria a questão. Não construiu novos instrumentos financeiros para prevenção de crise. Não tem controle da política econômica. O Banco Central é sitiado de qualquer pressão popular. O arcabouço fiscal virou uma amarra para políticas anticíclicas. Os bancos públicos estão nas mãos do centrão. Não existem instrumentos econômicos e legais para atuar efetivamente, de forma assimétrica e específica. Não há grande estratégia que unifique o governo.
Os EUA não querem ter novos concorrentes e usam todos os expedientes para impedir a ascensão dos países que estão em patamares considerados inferiores. Trump busca a manutenção do status quo por meio de propaganda, sabotagem e coação econômica. Essas ações incluem a privatização do Estado, pressões sobre o Banco Central, infiltração econômica e ideológica, sucateamento das Forças Armadas, imobilização do território nacional e promoção de agendas diversionistas. Seu interesse é que o Brasil seja um exportador de matérias-primas, mas sem o poder para controlar as matérias-primas estratégicas, como minério de ferro, petróleo e minerais, muito menos organizar um Estado capaz de realizar as potencialidades do país. E a progressiva desestruturação do Estado impossibilita que o Brasil garanta sua soberania e autonomia, sendo um alvo mais fácil do que China, Rússia e Irã.
Os golpes de Estado articulados pelos Estados Unidos no Brasil visaram bloquear as iniciativas próprias de planificação e grande estratégia brasileira, quando reformas apontam para maior centralização dos recursos estratégicos sob o controle do Estado. Isso inclui a conspiração para a derrubada de Getúlio em 1945 e seu suicídio em 1954, a articulação do golpe liderado pelos militares de 1964, a posterior ofensiva contra a ditadura nas décadas de 1970 e 1980, assim como o golpe contra Dilma, de 2013 a 2016. A política varguista, janguista, geisista e dilmista levou ao inevitável e involuntário enfrentamento com os Estados Unidos. Qualquer iniciativa industrializante e soberana é considerada “inimiga da democracia”, conforme os critérios do Pentágono e do Departamento de Estado dos EUA. Quando o Estado brasileiro passa a defender um projeto nacionalista, as classes dominantes ligadas aos EUA passam a exigir que o Estado se retire da economia, privatizando e destruindo cadeias produtivas — algumas essenciais para qualquer desenvolvimento nacional. A formação de capital e o soberano desenvolvimento tecnológico-militar são vistos como ataques diretos à sua dominação geopolítica e um obstáculo às empresas norte-americanas. Qualquer iniciativa que vise romper os monopólios, a construção de um sistema de defesa moderno, política externa autônoma etc. faz com que se organizem ações coordenadas do império para desarticular as forças políticas e sociais que levem a cabo processos de transformação com vistas à emancipação nacional, usando meios legais e ilegais.
A aposta de Trump na reindustrialização dos EUA está no fundo da ação contra o Brasil. Se conseguir induzir os capitais industriais presentes no Brasil a se instalar nos EUA, já terá conquistado seu objetivo. Se conseguir bagunçar o cenário político em favor de alguém alinhado à sua visão nas eleições do ano que vem, terá realizado seu programa máximo. Se conseguir fazer tudo isso sem mexer na posição favorável dos monopólios e mecanismos de controle financeiro dos EUA na economia brasileira, será seu trunfo mais elevado.
Portanto, sendo realista, o Brasil só poderá lidar efetivamente com a guerra comercial de Trump abandonando o liberalismo, seja de direita ou de esquerda. O começo é romper com os alinhamentos do neoliberalismo subserviente ao imperialismo. Pouco adianta reafirmar uma soberania vazia, sem instrumentos capazes de garantir que as decisões sejam tomadas em prol das maiorias populares. Soberania não é uma palavra para ser usada apenas quando algum país ameaça a integridade nacional, mas trata da capacidade de exercer controle territorial e das Forças Armadas, domínio de áreas sensíveis como energia e transportes, centralização e legitimidade política, autossuficiência, desenvolvimento, garantia de proteção, autonomia e coesão social.
Ao invés de se preparar para o melhor, o governo deveria começar a se preparar para o pior cenário, baseado na queda das compras do agro pela China, em razão de seu acordo com os Estados Unidos, e na crise na indústria provocada pelas tarifas dos Estados Unidos. Num cenário que pode escalar para sanções maciças e sem precedentes, os EUA podem impor uma lista de produtos objeto de embargo, como tecnologia de ponta (por exemplo, computadores quânticos e semicondutores avançados, componentes eletrônicos e software); bens e tecnologias específicos necessários para a refinação de petróleo; equipamentos, tecnologia e serviços da indústria energética; bens e tecnologias da aviação; bens de navegação marítima e tecnologias de radiocomunicações; TI, componentes eletrônicos e ópticos; e outros bens suscetíveis de reforçar as capacidades industriais do Brasil.
Se a guerra comercial se intensificar, também podem ser emitidas, por meio do Departamento de Comércio dos EUA, sanções para a aquisição, importação e transferência de petróleo bruto transportado por mar e de determinados produtos petrolíferos do Brasil para outros países. Também pode-se proibir que bancos brasileiros efetuem ou recebam pagamentos internacionais utilizando o sistema SWIFT, serviço de mensagens que facilita substancialmente o intercâmbio de informações entre 11 mil entidades, bancos e outras instituições financeiras em todo o mundo. Nesse cenário, os bancos abrangidos não poderão obter moeda estrangeira (uma vez que uma transferência de moedas estrangeiras entre dois bancos é geralmente processada no exterior, envolvendo um banco intermediário estrangeiro), nem transferir ativos para o exterior. Além disso, ativos e reservas do Brasil podem ser detidos nos EUA, tendo seus recursos imobilizados.
Se isso acontecer e o governo for pego de surpresa, sem delinear um plano para a conquista da soberania nacional, a tendência é que o Brasil seja derrotado numa guerra comercial até o ano que vem. Definir uma estratégia é não se deixar levar pelo improviso. A chave é eliminar a dependência do sistema financeiro internacional, operado pelos EUA, e investir em setores-chave como a indústria de defesa e a agricultura, buscando fortalecer a autossuficiência e reduzir a dependência de importações.
Lula tem uma oportunidade histórica para conquistar maior soberania para o Brasil. Forçar o Estado a conquistar sua soberania é a chave da conjuntura pós-globalização neoliberal. A soberania depende de uma ação voltada para a resolução prática dos problemas de organização política do país. Trata-se de uma oportunidade para a realização de um programa emergencial visando ao estabelecimento do poder soberano nacional, assegurando sua autoridade e desmantelando as conexões com o capital monopolista estrangeiro imperialista.
Se Trump intensificar a guerra comercial, o Brasil não resistirá aos EUA apenas com medidas de reciprocidade tarifária. Para lidar com a ofensiva imperial, serão necessárias mudanças significativas no aparelho de Estado, trazendo à tona os antagonismos de classe que se formam no interior do Estado brasileiro pela ação do imperialismo. A questão é se o Brasil vai continuar ou não alimentando o PIB do sistema financeiro internacional e nacional, numa aliança exportadora-financeira + comércio especulativo + latifúndio como reserva de capital + burocracia jurídico-política do Estado.
O Brasil deve aprender a sobreviver sem os Estados Unidos. No plano político, o poder do imperialismo norte-americano e de forças transnacionais se reflete de diferentes formas, mas hoje se concentra em diversas instituições, destacando-se o Banco Central, a Polícia Federal, o Ministério Público, ONGs, corporações midiáticas, setores do Congresso Nacional, o Poder Judiciário, o Itamaraty e as Forças Armadas. Para superar o imperialismo e o privatismo, é necessário um Estado forte e centralizado. Objetiva-se instituir um Estado integrado, coeso e unificado, uma organização política firmada por meio do primado do Poder Executivo.
A soberania brasileira não será alcançada com medidas isoladas, mas com um projeto nacional de longo prazo. No plano econômico, o Brasil tem várias áreas onde os Estados Unidos exercem influência significativa, seja por meio de investimentos diretos, participação em empresas, tecnologia ou comércio. No setor de tecnologia e informática, empresas como Microsoft, Google, Apple, Amazon, IBM, Intel, Cisco, Oracle, Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp) controlam softwares, serviços em nuvem, redes sociais e hardware, drenando bilhões da economia brasileira todos os anos.
Na área do agronegócio, empresas como Cargill, ADM (Archer Daniels Midland), Bunge e Monsanto (Bayer) controlam parte do comércio de grãos (soja, milho), sementes transgênicas e fertilizantes. Na área farmacêutica, empresas como Pfizer, Johnson & Johnson, Merck e Abbott dominam o mercado de medicamentos, vacinas e equipamentos médicos. No setor financeiro e bancário, empresas como Citigroup, JPMorgan Chase, Bank of America, Vanguard e BlackRock têm investimentos e fundos ligados a grandes empresas brasileiras — incluindo Petrobras e Vale. No setor de petróleo, Chevron, ExxonMobil e Halliburton têm participação na exploração de petróleo (incluindo parcerias com a Petrobras) e tecnologia de energia.
No setor automotivo, Ford e General Motors têm participação no mercado brasileiro. No setor de Defesa, Boeing, Lockheed Martin e Northrop Grumman realizam vendas de aviões militares, sistemas de defesa e parcerias com o Brasil. No setor de bens de consumo e varejo, Coca-Cola, Pepsi, P&G (Procter & Gamble), McDonald’s, Burger King, entre outras, lideram marcas de alimentos, bebidas e produtos de higiene. Na área da indústria cultural, Netflix, Disney, Warner Bros. e Universal dominam streaming, cinema e produção cultural.
Os EUA têm forte presença em setores estratégicos da economia brasileira, especialmente em tecnologia, agronegócio, farmacêuticos e finanças. Essa influência se dá por meio de multinacionais, investimentos e acordos comerciais. Mesmo áreas estratégicas em que o Estado tem alguma influência, como mineração (Vale), aviação (Embraer) e energia (Petrobras), contam com participação estrangeira crescente.
Para assegurar a soberania nacional do Brasil diante da influência e pressão dos EUA, é necessário adotar medidas estratégicas em diversas áreas, combinando políticas públicas, desenvolvimento tecnológico, fortalecimento industrial e diplomacia inteligente. Além de construir um Estado nacional soberano e autônomo, o Brasil pode ter maior controle sobre recursos naturais e o agronegócio, com processamento local de commodities e minerais, regulação de empresas estrangeiras com limitação de aquisições de terras por multinacionais e cobrança de royalties por sementes transgênicas.
Quebrar o monopólio de tratores com protecionismo à produção nacional. Outra frente é conquistar a soberania digital, com uma “nuvem nacional”, para reduzir a dependência da AWS (Amazon), Google Cloud e Microsoft Azure; regulamentar o armazenamento de dados sensíveis (saúde, finanças, governo) dentro do Brasil; e desenvolver tecnologias e plataformas locais. Modernizar as Forças Armadas, investindo na indústria bélica nacional para reduzir a dependência de equipamentos dos EUA, aderir ao sistema Beidou de georreferenciamento, ter uma agência de cibersegurança para prevenir espionagem e ataques digitais.
Reformar o sistema financeiro e monetário, regulamentando o fluxo de capitais fictícios para paraísos fiscais, incluindo Delaware, nos EUA. Diversificar mercados exportadores, com foco na Ásia e no Oriente Médio. Ao invés de apostar numa desdolarização abstrata, participar do CIPS e criar um PIX internacional, para favorecer acordos comerciais em moedas locais e digitais. Colocar o BNDES e bancos públicos no financiamento da substituição de importações em setores estratégicos, como insumos farmacêuticos, defesa, fertilizantes e componentes eletrônicos. E regulamentar o controle de capitais, por exemplo, com a cobrança de tarifa para que empresas americanas instaladas no Brasil queiram remeter dividendos aos Estados Unidos.
Para lidar com uma guerra comercial com os Estados Unidos, o Brasil também pode desenvolver sua indústria de terras raras e impor restrições, como no caso do níquel, nióbio e lítio, que são quase exclusividade brasileira e importantes na fabricação de diversos itens de ponta. Carne, café e suco de laranja podem ser incentivados à maior venda no mercado interno, além da diversificação de mercados externos. Suco de laranja, por exemplo, pode ser comprado pela CONAB e distribuído para escolas e instituições em todo o país. Também poderiam ser fortalecidas campanhas para valorizar produtos brasileiros e reduzir a mentalidade de que "importado é melhor".
Para romper o círculo vicioso neoliberal, o projeto de desenvolvimento nacional teria que colocar sob rédea curta os capitais financeiros, democratizar a propriedade capitalista, dar prioridade à industrialização autônoma e continuar executando políticas de transferência de renda, articuladas à educação, à qualificação profissional e à saúde. É preciso solucionar a incapacidade do governo federal de exercer controle sobre o orçamento público. Ou seja, seria necessário dar ao Estado um poder autônomo que chocaria não só os interesses da burguesia transnacional neoliberal, mas também os interesses daqueles setores burgueses liberais que temem enfrentar o poder do capital dos países capitalistas avançados.
Trump conta com o fato de que o Brasil não é capaz de reagir à altura, cedendo aos seus objetivos estratégicos. Setores do governo parecem querer pagar para ver, na expectativa de que o “bom senso” predomine. Se Lula utilizar o momento para conquistar a soberania nacional, poderá mostrar que a história do Brasil não precisa ser marcada pela subserviência à potência imperialista dominante. A verificar.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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