“Caras de Porcelana”: Estéticas K-pop, Infância Sensualizada e Afrofuturismo em Conflito com o Olhar Ocidental
Na era dos algoritmos e da dominação da imagem, os rostos deixaram de ser apenas rostos, face agradáveis ou marcantes e naturais
Na era dos algoritmos e da dominação da imagem, os rostos deixaram de ser apenas rostos, face agradáveis ou marcantes e naturais. Tornaram-se mapas afetivos, mercadorias semióticas e alvos de controle biométrico. Se, os sistemas de visão computacional capturam, rotulam e normalizam os corpos com base em bancos de dados enviesados e coloniais, é inevitável perguntar: quem tem o direito de ser rosto visível no mundo digital globalizado?
Eu ainda estou tentando entender os motivos após assistir a nova face de Anitta. Sim, se ela mudou, é para lá que o dinheiro está correndo e vamos entender!?
Nos últimos anos, a estética dos rostos arredondados, com traços suaves, bochechas volumosas e olhos de brilho expandido, ganhou protagonismo entre jovens brasileiros influenciados pelo K-pop, pelas plataformas chinesas (como TikTok e Shein), mas também pelas narrativas estéticas do afrofuturismo. Trata-se de uma rebelião estética silenciosa contra o rosto anguloso, masculino, caucasiano e adulto que dominou os padrões hollywoodianos por décadas.
O rosto K-pop — entre a boneca e o androide, entre a juventude eterna e a expressão controlada — desliza entre gêneros e desestabiliza o imaginário cis-heteronormativo. Ele incorpora um ideal de “cute sensuality”: infantil na forma, erótico na performatividade, o que nos obriga a pensar o quanto as marcas que adotam essa estética surfam perigosamente na borda entre a suavidade e a sexualização da infância.
Na publicidade, rostos “baby face” aparecem cada vez mais em campanhas de beleza, moda e até produtos sensuais. Essa infantilização erotizada, que esconde sob a bochecha rosada a ambiguidade do desejo, é um fenômeno que exige análise crítica — principalmente quando é reforçado por inteligências artificiais treinadas com bancos de dados como o ImageNet, onde, como denunciado em minha tese de doutorado, há classes inteiras com fotos de bebês, mulheres e pessoas trans e racializadas rotuladas com termos misóginos ou ofensivos.
Neste cenário, o Brasil vive um paradoxo: ao mesmo tempo em que adota padrões estéticos vindos da Coreia do Sul e da China, ele começa a tensioná-los com elementos do afrofuturismo, em que pele negra, tranças sintéticas, cílios longos e traços híbridos ressignificam o que é futuramente belo. Em comunidades de afrofãs de K-pop e criadores visuais negros, surgem rostos que misturam idol coreano com avatar de Wakanda: não mais o corpo orientalizado para agradar ao Ocidente, mas uma colagem vibrante, afrodiaspórica, revolucionária e especulativa.
Enquanto isso, as plataformas e datasets que treinam as inteligências visuais — alimentadas com imagens ocidentais enviesadas — continuam normalizando estereótipos, excluindo rostos dissidentes e silenciando complexidades. A lógica da IA tende a premiar o rosto padrão, “bem iluminado”, sem ruído. Rostos com vitiligo, com deficiências visíveis, com métricas de olhos tortos ou estrábicos fora das simetrias, como o meu, ou com adornos afro ou com maquiagem de gênero fluido são rejeitados ou mal classificados por sistemas que “vencem batalhas tecnológicas, mas perdem as guerras sociais”, como sintetiza a pesquisadora etíope Abeba Birhane.
É nesse embate que a juventude brasileira se encontra: entre algoritmos que querem adestrar rostos e afetos, e corpos que desejam escapar da captura e criar novas formas de existir na imagem.
Mais do que um gosto passageiro, a febre do rosto arredondado revela um movimento geopolítico-estético. Ele flerta com a infância, desafia o machismo, mistura Ásia e África, e olha para um futuro que ainda precisa ser imaginado — mas que começa a ser desenhado nas bochechas rosadas, nas peles brilhantes, nos olhos que não cabem nos bancos de dados, quer dizer, datasets (leia com ironia).
PS: O rosto do futuro talvez não seja o mais simétrico, nem o mais previsível. Talvez ele seja aquele que o algoritmo ainda nem sabe nomear, como são as nossas intimidades.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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