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      Joaquim de Carvalho

      Colunista do 247, foi subeditor de Veja e repórter do Jornal Nacional, entre outros veículos. Ganhou os prêmios Esso (equipe, 1992), Vladimir Herzog e Jornalismo Social (revista Imprensa). E-mail: [email protected]

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      Bolsonaro revive episódio da facada às vésperas de ser preso, e espalha desinformação

      O ex-presidente usou nas redes o velho roteiro de Juiz de Fora e insinua que a investigação foi abafada. Mas a realidade é diferente, como mostram documentos

      Jair Bolsonaro e Adélio Bispo (Foto: Reprodução | Ricardo Moraes/Reuters)

      Um vídeo, publicado nesta quinta-feira, reaquece uma narrativa já explorada inúmeras vezes pelo ex-presidente: a de que o evento de Juiz de Fora teria sido parte de uma conspiração da esquerda, e que até hoje o caso estaria mal explicado. Ele afirma que:

      Adélio nunca teve o sigilo quebrado; Adélio sabia a rotina de Carlos Bolsonaro em Florianópolis e que este também era alvo. Seguranças da Câmara dos Deputados tentaram simular uma entrada falsa de Adélio no Congresso.

      Adélio não era insano.

      Adélio era filiado ao Psol, “braço do PT”, e, portanto, militante de esquerda quando atacou Bolsonaro.

      Nenhuma dessas afirmações é verdadeira.

      A verdade dos autos

      Adélio teve o sigilo quebrado, sim. Quebra de sigilo telefônico, bancário e de dados foi autorizada pela Justiça e executada pela Polícia Federal. Nada foi encontrado que sugerisse mandantes ou qualquer tipo de conspiração articulada. Laudos médicos confirmam insanidade: Três laudos psiquiátricos distintos indicam que Adélio sofre de transtorno delirante persistente (paranóide). No último, peritos apontam sintomas sugestivos do início de um quadro de esquizofrenia. Foi com base nos dois primeiros laudos que a Justiça o declarou inimputável.

      A entrada "falsa" na Câmara nunca existiu: O que ocorreu foi um procedimento interno, após o atentado, quando dois seguranças da Câmara tentaram verificar no sistema se Adélio já havia estado no local. Para isso, o sistema exigia simular uma entrada, o que foi feito, conforme concluiu a sindicância oficial da Casa.

      Adélio foi filiado ao Psol entre 2007 e 2014, mas não era mais filiado ao partido na época do episódio . E mais: a Polícia encontrou em sua mochila, na pensão onde estava hospedado em Juiz de Fora, um documento de pedido de desfiliação do PSD em Uberaba (MG), datado de 2016.

      Esse pedido mostra que ele acreditava estar vinculado ao PSD, partido de centro-direita, ao qual pertencia, na época, Marcos Montes, então deputado federal e posteriormente secretário-executivo do Ministério da Agricultura no governo Bolsonaro. Um cartão com o celular de Montes também foi achado com Adélio.

      Ou seja: Adélio não era militante da esquerda quando atacou Bolsonaro. Pelo contrário: frequentava espaços ligados ao PSD e acreditava estar vinculado ao partido. A narrativa de que era um “agente da esquerda radical” não se sustenta nos fatos.

      Outro dado ignorado por Bolsonaro no vídeo é o conteúdo do próprio Facebook de Adélio Bispo. Nas publicações feitas antes de 2018, Adélio defendia:

      A redução da maioridade penal — projeto que tinha Jair Bolsonaro, então deputado federal, como um dos autores; Centros de lazer e esportes para jovens geridos por militares — proposta comum na retórica bolsonarista. Ele também fazia críticas ao então presidente do Senado, Renan Calheiros, por se recusar a pautar a votação da redução da maioridade.

      Ou seja: por um bom tempo, Adélio compartilhou pautas alinhadas com a agenda da direita, e até com o próprio Bolsonaro. Os ataques verbais a Bolsonaro só surgem depois de ele ter feito curso de tiro — outro dado ignorado no discurso do ex-presidente.

      A publicação do vídeo ocorre num momento político particularmente delicado para Jair Bolsonaro:

      Ele é processado por tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022, e o procurador-geral da República pediu sua condenação em cinco crimes, com penas que, somadas, chegam a 43 anos de prisão.

      Pode ser condenado em breve, o que abriria caminho para prisão em regime fechado.

      Diante disso, a retomada do episódio da facada pode servir como estratégia de distração — e também de mobilização emocional.

      Ao voltar a se apresentar como vítima de uma conspiração, Bolsonaro tenta reencenar a atmosfera de 2018, quando emergiu como o "outsider" perseguido pelo sistema.

      A facada é o símbolo máximo da construção do "mito" bolsonarista e, com isso, Bolsonaro transforma o evento de Juiz de Fora em combustível político. Ele cria a sensação de que ainda está sendo atacado, perseguido, cercado — o que ressoa bem com seus seguidores mais fiéis.

      O ex-deputado federal Julian Lemos, um dos coordenadores da campanha de Bolsonaro em 2018, disse que se surpreendeu com a reação do então candidato a presidente ao chegar ao hospital, logo depois da facada.

      Pelo que se recorda Lemos, Bolsonaro afirmou que, com o atentado, havia vencido as eleições. “Não precisa fazer mais nada. Ganhamos”, afirmou, de acordo com o então coordenador. “Só faltou ele (Bolsonaro) soltar um foguetão.

      Então aliada de Bolsonaro, a ex-deputada Joice Hasselmann garante ter ouvido de Bolsonaro alguns dias antes do evento em Juiz de Fora que, se ele levasse uma facada, venceria as eleições.

      Estranho, mas poderia ensejar uma investigação na linha que foi ignorada: a da hipótese de auto atentado.”Não tínhamos condições de abrir essa linha de investigação sem um fato muito relevante”, disse um dos investigadores.

      Na postagem desta quinta-feira, Bolsonaro reclama que Carlos Bolsonaro não tenha sido chamado para depor, justamente ele que estava em Florianópolis no dia em que Adélio fazia o curso de tiro. O .38 era frequentado por ele.

      Nesse ponto, não há razão para discordar de Bolsonaro. Seria mesmo interessante chamar Carlos Bolsonaro para depor, mas antes seria prudente requisitar e analisar vídeos do clube de tiro (se é que foram preservados), para saber se houve interação entre o vereador do Rio de Janeiro e Adélio.

      No documentário que realizei, “Bolsonaro e Adélio - Uma fakeada no coração do Brasil”, há uma imagem em que Adélio tentou se aproximar de Carlos Bolsonaro em Juiz de Fora. Estava de casaco preto, apesar do calor, e um jornal na mão, que supostamente escondia a faca. Carlos se tranca no carro.

      Carlos não queria contato com ele? Por quê? Em entrevista à jornalista Leda Nagle, ele falou sobre esse vídeo. Disse que ficou com medo de Adélio. Ora, se não conhecia Adélio e desconfiou dele, o que deveria fazer? Julian Lemos responde.

      Empresário na área de segurança, Lemos disse que o procedimento correto teria sido avisar um dos responsáveis pela escolta do pai, para que monitorassem Adélio ou até o revistassem. Em vez disso, Carlos Bolsonaro ficou no carro, operando um drone, que gravava imagens exibidas no mesmo dia da facada.

      No vídeo, aparece também a imagem de uma camiseta igual à que Bolsonaro usava na caminhada, com um efeito digital: há um corte na palavra “Meu partido é o Brasil”. Ou seja, a tragédia foi imediatamente usada como ação de marketing político.

      E um fato posterior causou muita estranheza: Carlos Bolsonaro pressionou Bebianno para que nomeasse na Abin os seguranças de Juiz de Fora, que haviam falhado ao permitir que Bolsonaro fosse alvejado por Adélio. Ou não teriam falhado?

      Para Bolsonaro, reeditar a facada pode engajar, emocionar e mobilizar, mas também expõe contradições. A versão de Bolsonaro para os acontecimentos já não se sustenta nos autos — entra em confronto direto com documentos públicos, laudos médicos, investigações e até registros de redes sociais.

      E a verdade, mais cedo ou mais tarde, pode ter efeito letal — pelo menos para narrativas mal costuradas.

      Veja a postagem de Bolsonaro:




      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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