Paola Jochimsen avatar

Paola Jochimsen

Paola Jochimsen é doutoranda em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestre em Romanistik pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Membro do Coletivo Brasil-Alemanha pela Democracia.

33 artigos

HOME > blog

Bolsonaro: o Dreyfus tropical?

O Bolsonaro que agora se vê diante da Justiça não é o capitão leal injustiçado

Advogado Paulo da Cunha Bento citou caso Dreyfus e "legislação soviética" (Foto: Gustavo Moreno/STF)

Ouvir de um dos advogados do ex-presidente Jair Bolsonaro invocar o Caso Dreyfus para defender seu cliente foi, para mim, uma experiência quase surreal. Há argumentos jurídicos que soam fracos, outros que beiram o absurdo, mas há aqueles que atravessam a fronteira do ridículo (e este, convenhamos, ocupa um lugar especial no pódio dos absurdos). Não é preciso ser especialista em história para perceber o abismo que separa os dois episódios, e talvez seja exatamente por isso que a comparação cause tanto desconforto: não se trata apenas de exagero retórico, mas de uma tentativa de manipular a memória coletiva, sequestrando um dos símbolos mais potentes de injustiça do século XIX para usá-lo em defesa de quem conscientemente tentou corroer as bases da democracia. Ao contrário de Dreyfus, Bolsonaro não é um inocente esmagado por uma máquina estatal movida por preconceito e paranoia. Ele não é a vítima de um sistema injusto; ele é, em grande medida, um dos arquitetos de um sistema de caos calculado. Equiparar as duas histórias, para mim, é mais do que um erro. É quase uma afronta à inteligência.

O Caso Dreyfus, longe de ser apenas um episódio histórico, é também um marco civilizatório. Em 1894, Alfred Dreyfus, judeu e capitão do exército francês, foi acusado falsamente de traição. As provas foram forjadas, o processo foi permeado por antissemitismo e manipulações políticas, e a França mergulhou em uma crise moral que dividiu o país por anos. Foi nesse contexto que Émile Zola, com seu inflamado J’accuse (1898), escancarou as entranhas de uma Justiça contaminada por preconceito e interesses escusos. Zola acusava não apenas os homens, mas todo um sistema que, para proteger seus privilégios e narrativas, sacrificava um inocente. Este caso, sim, representa uma cicatriz na história jurídica do Ocidente.

Colocar Bolsonaro nesse papel exige um contorcionismo lógico insustentável: se Dreyfus foi esmagado pelo poder, Bolsonaro tentou esmagá-lo; se Zola clamava por justiça contra uma mentira, os advogados de Bolsonaro clamam por impunidade diante de fatos amplamente documentados. A indignação que sinto ao ouvir essa analogia não é apenas política, mas quase moral. É como se a história estivesse sendo violentada, como se o peso das palavras e dos símbolos fosse tratado com um cinismo calculado. Não se trata aqui de discutir tecnicalidades jurídicas sobre elegibilidade, mas de perceber o quanto essa narrativa tenta transformar o réu em herói, o responsável em vítima.

O Bolsonaro que agora se vê diante da Justiça não é o capitão leal injustiçado; é o líder que passou anos semeando desinformação, desacreditando instituições, atacando a imprensa e flertando com o autoritarismo. Não é alguém a quem faltaram garantias processuais; é alguém que se beneficiou de uma leniência histórica até o limite do insustentável. Se Zola escrevesse hoje, imagino que seu J’accuse teria um endereço bem diferente. Ele não defenderia Bolsonaro; ele o acusaria. Acusaria a manipulação da fé popular, a sabotagem de políticas públicas, o uso do Estado para fins pessoais, a tentativa de subverter a ordem democrática.

O verdadeiro insulto, portanto, não é a condenação, mas a comparação. Dreyfus representa a luta contra um sistema injusto; Bolsonaro representa, para muitos, o próprio risco de vivermos sob um. Colocá-los na mesma frase é como confundir a vítima com o algoz, a defesa da democracia com a sua corrosão.

Talvez, no fim, o mais irônico seja que os advogados de Bolsonaro busquem no passado um escudo para protegê-lo, quando é justamente o próprio passado que mais o condena. A história absolveu Dreyfus; a realidade incrimina Bolsonaro. O Brasil não precisa de um ‘Dreyfus tropical’. Precisamos, isso sim, de lucidez, memória e coragem para enfrentar nosso próprio percurso. E, se ainda há quem insista em nos vender essa versão fantasiosa, que o irrequieto tribunal do povo, assim como disse Zola, se manifeste: “Nós o acusamos.”

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

Artigos Relacionados

Carregando anúncios...