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      Paola Jochimsen

      Paola Jochimsen é doutoranda em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestre em Romanistik pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Membro do Coletivo Brasil-Alemanha pela Democracia.

      29 artigos

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      Lula governa um Brasil maquiavélico (e não, isso não é necessariamente algo ruim)

      Governantes precisam, em certos momentos, de um inimigo externo para unificar os ânimos internos

      Esplanada dos Ministérios, com o Congresso Nacional ao fundo, em Brasília - 07/04/2010 (Foto: REUTERS/Ricardo Moraes)

      O terceiro mandato do presidente Lula é, antes de tudo, um exercício de sobrevivência e cálculo político. Ele governa como um líder que já foi amado, já foi impedido de ser candidato e agora precisa ser respeitado. A história o trouxe de volta ao poder com força simbólica, mas com limitações práticas. Nesse cenário, a leitura de O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, torna-se mais do que um exercício acadêmico. É uma chave para entender como Lula busca manter vivo um projeto progressista num país fragmentado, onde forças da extrema direita ainda rejeitam as regras do jogo democrático.

      Lula voltou à presidência em 2022 com uma vitória apertada, cercado por um Congresso hostil e por um movimento bolsonarista que, embora derrotado nas urnas, mantém raízes sociais profundas e presença institucional estratégica. A tentativa de golpe de 8 de janeiro não foi um episódio isolado. Foi talvez o sintoma mais visível de um campo político em guerra. Para governar, Lula precisou mais do que votos. Precisou reconstruir um Estado arrasado, fazer alianças bem questionáveis e recompor sua autoridade.

      Nesse esforço, agiu exatamente como Maquiavel recomendaria a um governante sob ameaça constante. Formou uma frente ampla que dividiu o poder com antigos adversários e administrou tensões com frieza. O Centrão que domina o Congresso há décadas tornou-se parceiro necessário. Cargos foram negociados, emendas liberadas, ministérios redistribuídos. Nomes como Davi Alcolumbre e Hugo Motta, representantes clássicos da política de interesses, passaram a ter peso central nas decisões do governo.

      Essa dependência não significa submissão, mas sim um reconhecimento de que a governabilidade, no Brasil de hoje, não se constrói (pelo menos de momento) com coerência ideológica. Constrói-se com sobrevivência estratégica. Lula já entendeu que, para a esquerda permanecer no poder, é preciso tolerar contradições e administrar o cinismo alheio.

      Um governante entre inimigos internos e externos - O bolsonarismo segue como um fantasma à espreita. Mesmo com Jair Bolsonaro inelegível, sua “retórica” continua viva em redes sociais, igrejas, quartéis e gabinetes legislativos. O bolsonarismo que cresceu sobre os escombros da imagem pública do PT desgastada pela Lava Jato e pela ausência de Lula na eleição de 2018, é hoje uma estrutura de poder subterrânea, pronta para ressurgir. Lula governa com essa ameaça latente e sabe que qualquer erro será explorado com brutalidade.

      O momento quase perfeito apareceu. Donald Trump anunciou tarifas contra produtos brasileiros e fez do país a bola da vez do seu protecionismo. Imediatamente, figuras da extrema-direita, entre elas o herdeiro do “messias”, Eduardo Bolsonaro, tentaram transformar o episódio em munição política, culpando Lula pelo atrito e sugerindo que Trump estava “certo” ao retaliar. Lula reagiu de forma direta e enfática, reafirmando que o Brasil é um país soberano e que não aceitaria ser tratado como periférico. O governo lançou uma campanha pública no mesmo tom, de defesa firme dos interesses nacionais. O episódio gerou uma rara convergência política na qual vozes de diferentes matizes ideológicas passaram a falar a mesma língua:  a da soberania brasileira.

      Esse momento de unidade (ainda que temporário) revela algo que Maquiavel compreendia bem. Governantes precisam, em certos momentos, de um inimigo externo para unificar os ânimos internos. O Brasil, dividido há quase uma década, pareceu por um instante lembrar que também tem fronteiras, indústria, soberania e unidade. Lula posicionou-se como o defensor do país diante de uma superpotência hostil. Com isso, reforçou ainda mais sua imagem de grande estadista.

      A sombra de 2026 - Mas o horizonte segue tenso. Lula sabe que a eleição de 2026 será decisiva. Não esconde sua intenção de concorrer novamente. Vai encarar o desafio com uma convicção: sem sua presença, o campo progressista corre o risco de se desintegrar. A escolha é clara. Ou ele constrói uma transição segura dentro de seu campo político, ou assume mais uma batalha direta contra a extrema direita.

      Para isso, precisa manter a economia em crescimento, entregar resultados sociais e conter sabotagens internas. A dependência do Congresso e do Centrão continuará. O preço da estabilidade é alto. Implica abrir mão de agendas históricas, flexibilizar princípios e conviver com ministros que não representam o projeto original. É o custo de governar sob as regras reais da política.

      Lula, hoje, governa menos como líder de massas e mais como gestor de equilíbrios instáveis. Não busca a glória épica, mas a permanência possível. Não age para conquistar o novo, mas para preservar o que restou e evitar que o retrocesso complete sua marcha. Mas para além de Lula, a esquerda como um todo precisa se mover.

      A eleição de 2026 não pode ser apenas sobre manter Lula no Planalto, ela tem que ser também sobre descentralizar o poder do Centrão. Isso significa mobilizar a sociedade para eleger parlamentares comprometidos com o projeto progressista, e não apenas com interesses momentâneos. Sem essa renovação, qualquer governo seguirá refém de alianças frágeis. Como Maquiavel escreveu, governar é uma arte que exige cálculo e sangue frio. E poucos, no Brasil, dominam essa arte tão bem quanto o presidente Lula.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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