A Terra está farta de nós
A Terra exige reparação. Belém não é palco de conferência, é o tribunal onde a humanidade é acusada de devastação premeditada
Em Belém, o planeta não veio para conversar — veio para cobrar. Entre marés cansadas e florestas mutiladas, a Terra rompeu o silêncio. A 30ª Conferência das Partes, a COP30, começou como se fosse mais um encontro, mas o que ecoa em Belém é um julgamento: o réu somos nós.
Era fim de tarde. O ar trazia o cheiro do rio e a lembrança do que fomos. Dentro da casa, o tempo parecia preso entre o antes e o nunca mais. Duas cadeiras, uma jarra d’água e a voz antiga — não maternal, mas ferida — da Terra.
— Não vim pedir nada — disse ela. — Vim avisar.
A humanidade, inquieta, desviou o olhar.— Eu sei que exagerei, que destruí mais do que pude reparar…— “Exagerar” é palavra leve demais — interrompeu a Terra. — Vocês me rasgaram em nome do progresso, drenaram meu sangue em nome do lucro. Chamaram de riqueza o que sempre foi ruína.
Ela respirou fundo, e o ar pareceu arder.
— As águas já estão em marcha — disse. — O mar está subindo não por vingança, mas por exaustão. Vocês ocuparam os mangues, zombaram dos alertas. Agora as marés apenas voltam ao lugar de onde nunca deveriam ter sido expulsas.— Há vítimas, há perdas — balbuciou a humanidade.— Há culpa — corrigiu a Terra. — E não é minha.
Do lado de fora, o sol se dissolvia num cobre amargo.
— O calor que vocês chamam de verão é febre. O planeta delira — continuou. — Queimaram minhas florestas, e o fogo não apagou: mudou de endereço. Ele agora arde dentro de vocês.— As cidades estão insuportáveis — confessou a humanidade. — O ar pesa, o asfalto queima os pés.— Vocês chamaram de civilização o ato de me sufocar com concreto. Construíram templos de cimento e esqueceram o que é sombra.
O vento cessou. A Terra parecia falar mais baixo, mas cada sílaba cortava.
— A seca é minha ferida aberta. Meus rios emagrecem, minhas nascentes agonizam. Vocês bebem como se não houvesse sede depois de vocês.— Eu tento economizar — murmurou a humanidade.— Economizar? Vocês privatizaram a água. Transformaram o milagre em produto, o ciclo em comércio. A água não falta: foi roubada.
Lá fora, o céu se armava.
— E quando chove, vocês me chamam de assassina — disse a Terra. — Mas sou só resposta. Vocês pavimentaram tudo, expulsaram as árvores, e esperam que a chuva peça licença.— É que o conforto nos cegou — admitiu a humanidade.— Não confundam conforto com anestesia. O cimento não respira. Vocês ergueram fortalezas contra mim e chamaram isso de proteção.
A noite desceu. O calor continuava.
— Minhas florestas estão ficando mudas — disse a Terra, com voz quase embargada. — Cada espécie que cai é uma sílaba que desaparece da linguagem da vida.— E nós seguimos escrevendo tratados — respondeu a humanidade. — Assinamos metas, promessas, relatórios.— Palavras que não brotam viram cinza — devolveu a Terra. — Não quero promessas, quero árvores.
Ela se inclinou, como se olhasse dentro do tempo.
— Até o relógio se perdeu — disse. — As estações se misturam, os ventos enlouquecem.— Eu sei — respondeu a humanidade. — Não sei mais quando plantar, nem o que esperar.— Vocês adulteraram meu pulso, e agora pedem estabilidade. Mas não existe equilíbrio no corpo de quem foi violado.
O silêncio se instalou. Apenas o som do mercado distante, o rumor das frutas, o grito de um barco no rio.
A humanidade olhou para a jarra d’água sobre a mesa — simples, transparente, cada vez mais rara.
— Ainda dá tempo? — perguntou.A Terra hesitou.— O tempo é o que vocês mais desperdiçaram. Mas se houver arrependimento que se transforme em ação, talvez eu ainda aceite o acordo.
— Qual acordo? — quis saber a humanidade.— O único possível: parar de me tratar como cenário. Sou casa. E casas, quando maltratadas, desabam.A humanidade abaixou a cabeça.— Quero que meus filhos ainda vejam o entardecer depois da chuva — disse. — Não quero museus de lembranças; quero futuro.— Então parem de me chamar de mãe — respondeu a Terra. — Chamem-me de vítima.
O vento entrou pela janela, desta vez áspero, denso, como aviso.
Belém respirou fundo.E, por um instante, pareceu que o mundo inteiro percebeu — tarde demais — que não era conversa o que a Terra queria. Era justiça.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



