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Elisabeth Lopes

Advogada, especializada em Direito do Trabalho, pedagoga e Doutora em Educação

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A politização da morte

A população pobre, preta e favelada segue duplamente refém das facções e das forças policiais

Rio de Janeiro (RJ) - 28/10/2025 - Dezenas de corpos são trazidos por moradores para a Praça São Lucas, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro, após chacina policial matar ao menos 121 pessoas (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Os institutos de pesquisa Quaest e Datafolha indicaram que grande parte da população do Rio de Janeiro aprovou a megaoperação policial, realizada na terça-feira da semana passada (28/10), mesmo diante do saldo trágico de mais de cem mortes, incluindo pessoas sem envolvimento com o crime.

Essa aprovação refletiu o esgotamento de uma sociedade submetida à barbárie cotidiana imposta por facções criminosas e milícias que controlam amplos territórios. 

A operação, determinada pelo governador Cláudio Castro (PL-RJ), teve nítido caráter político e eleitoreiro. Castro, além de almejar uma vaga para o Senado em 2026, está em julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por abuso de poder econômico e político praticado nas eleições de 2022, podendo ser cassado e ficar inelegível. A ação policial contribuiu para elevar sua popularidade, que estava em baixa por sua má gestão. Em certa medida, o apoio popular após a megaoperação sangrenta lhe concedeu sobrevida política. 

Em ato contínuo, Cláudio Castro, movido por interesses de autopromoção, anunciou publicamente à mídia que determinará a realização de novas operações policiais. Tal postura, contudo, viola o princípio elementar do sigilo operacional que deve orientar ações voltadas ao enfrentamento de organizações criminosas. Operações dessa natureza exigem discrição absoluta, uma vez que a antecipação de informações compromete o fator surpresa, elemento estratégico essencial para impedir reações armadas, fuga de alvos e destruição de provas. Exemplos bem-sucedidos, como a operação Carbono Oculto ou a recente Freedom, realizada na Bahia, ilustram a eficácia de ações silenciosas e tecnicamente planejadas, que alcançaram os núcleos armados e os ativos financeiros do Comando Vermelho sem recorrer à letalidade nem ao espetáculo midiático. Essa popularidade fabricada, entretanto, tende a se esvair à medida que o ministro Alexandre de Moraes apresentar o relatório da ADPF 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, que avalia a legalidade e os limites constitucionais dessas práticas policiais.

Um governo que adota métodos de combate ao crime organizado em flagrante contradição com os princípios do Estado de Direito, a exemplo do que ocorre em El Salvador sob a presidência do ditador Nayib Bukele, instaura um modelo de aparente eficiência repressiva que, no entanto, compromete as bases da democracia. Ainda que o regime salvadorenho tenha obtido resultados imediatos na contenção de atividades criminosas, tais medidas foram acompanhadas pela consolidação de um Estado de Exceção permanente, marcado pela suspensão de garantias constitucionais, prisões arbitrárias e desrespeito sistemático ao devido processo legal. Importar tal modelo significa corroer as estruturas democráticas sob o pretexto da segurança pública. Nesse sentido, a megaoperação ordenada por Cláudio Castro parece ter se inspirado no paradigma do “bukelismo”, ao reproduzir a lógica do autoritarismo travestido de eficiência, em que a força bruta substitui o planejamento e o respeito às normas constitucionais.

Esse paradigma autoritário tem orientado o discurso da extrema-direita brasileira, que busca capitalizar o sentimento de insegurança e o desgaste da população diante da escalada da violência, convertendo esse mal-estar numa narrativa politizada segundo a qual medidas punitivas e espetaculares, ainda que essencialmente letais e incapazes de atingir o núcleo estrutural das organizações criminosas seriam as únicas eficazes. 

Nesse cenário sombrio, os governadores Cláudio Castro (PL-RJ), Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), Jorginho Melo (PL-SC), Ronaldo Caiado (União-GO), Romeu Zema (Novo-MG) ao reivindicarem para a direita a exclusividade no “bom combate” à criminalidade, acabam, por outro lado, por desqualificar a abordagem federal de enfrentamento ao crime, pautada por metodologias mais estratégicas. Essa política prioriza ações integradas voltadas à desarticulação das estruturas financeiras e logísticas das organizações criminosas, buscando esvaziá-las de forma estrutural, e não apenas por meio de confrontos imediatos.

Outra estratégia igualmente perigosa adotada pela direita e pela extrema direita consiste em promover uma narrativa que deliberadamente confunde os conceitos de crime organizado e terrorismo, buscando equiparar facções criminosas, como o Comando Vermelho e o PCC, ao denominado narcoterrorismo. 

Essa proposta é defendida por governadores e parlamentares bolsonaristas, como Flávio Bolsonaro, e tem sido respaldada por iniciativas de evidente inconstitucionalidade, a exemplo do envio, pelo governador Cláudio Castro, de um relatório aos Estados Unidos solicitando a classificação do Comando Vermelho como organização narcoterrorista. Tal iniciativa viola princípios constitucionais fundamentais, uma vez que compete exclusivamente à União, por meio de seus canais diplomáticos, conduzir relações e tratativas internacionais. Trata-se, portanto, de uma manobra política destinada a reforçar a agenda eleitoral de 2026 e a desgastar o Executivo federal.

Há, contudo, uma distinção conceitual e jurídica profunda entre o crime organizado e o narcoterrorismo, tanto em seus objetivos quanto em suas formas de atuação. Enquanto o crime organizado visa primordialmente o lucro e a manutenção de atividades ilícitas de caráter econômico, o narcoterrorismo possui motivação política e ideológica, buscando desestabilizar instituições e impor pautas de poder por meio da violência.

Com o intuito de institucionalizar essa confusão conceitual, foi apresentado o Projeto de Lei nº 1.283/2025, de autoria do deputado Danilo Forte (União/CE), que propõe a equiparação das facções criminosas a grupos terroristas. Por ora, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) adiou a votação do projeto. Entretanto, os governadores Cláudio Castro, Tarcísio de Freitas, Jorginho Mello, Ronaldo Caiado e Romeu Zema, inconformados com o adiamento, solicitaram uma reunião de urgência com o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, a fim de pressionar pela inclusão da proposta na pauta da próxima semana.

A insistência da extrema direita em fundir essas categorias atende a um propósito eminentemente político: fomentar o medo social e justificar alterações legislativas que ampliem o poder coercitivo do Estado. 

Em contraposição, o governo federal manifestou-se veementemente contrário à equiparação entre crime organizado e narcoterrorismo, apresentando o Projeto de Lei nº 5.582/2025, a ser analisado em regime de urgência, que “propõe alterações na legislação brasileira para endurecer o combate às organizações criminosas e facções criminosas” sem recorrer a distorções conceituais.

Essa retórica de caráter inconstitucional, além de fragilizar a autonomia nacional, reproduz a lógica geopolítica dos Estados Unidos, país que instrumentaliza o discurso do combate ao narcoterrorismo como ferramenta de controle político e econômico sobre a América Latina. A eventual adoção desse modelo no Brasil não apenas comprometeria a soberania nacional, como também exporia o país às estratégias intervencionistas norte-americanas na região.

Nesse contexto, a oposição busca explorar eleitoralmente o tema da segurança pública, acusando governos progressistas de inoperância. O que deliberadamente omite é o boicote sistemático às políticas estruturantes voltadas à segurança e à redução das desigualdades, medidas indispensáveis para o enfrentamento efetivo do problema. Exemplo dessa contradição é a PEC da Segurança Pública nº 18/2025, que propõe a integração entre forças federais, estaduais e municipais, mas permanece há meses paralisada na Câmara devido à resistência da própria oposição, receosa de que sua aprovação fortaleça a imagem de eficiência do Executivo.

Essa resistência política, aliada à retórica punitivista, produz efeitos concretos no território. A recente megaoperação no Rio de Janeiro, além de desproporcional e ineficaz, falhou em atingir as estruturas do Comando Vermelho, que mantém domínio sobre comunidades historicamente marcadas pela desigualdade e pela ausência do Estado. 

Tal cenário resulta da omissão recorrente de governos conservadores, que têm privilegiado o populismo penal em detrimento de políticas sociais duradouras. Como consequência, a população pobre, negra e favelada permanece duplamente refém: das facções criminosas e das forças policiais. A falta de oportunidades e de políticas públicas eficazes favorece o recrutamento por milícias e grupos criminosos que exploram economicamente os moradores por meio da venda de gás, internet, energia e serviços de “proteção”. Nesse ambiente de precariedade, consolida-se uma disputa territorial entre milícias, frequentemente comandadas por ex-policiais ou agentes na ativa e facções como o PCC e o Comando Vermelho, atraídas pelos lucros da dominação local.

É imprescindível, portanto, que o enfrentamento ao crime organizado se dê a partir de uma metodologia de segurança pública compatível com os princípios do Estado de Direito e dos direitos humanos, priorizando a inteligência investigativa, a cooperação federativa e internacional e o enfrentamento das causas estruturais da criminalidade, em lugar da mera repressão violenta que, historicamente, vitima os setores mais vulneráveis da sociedade.

Nesse sentido, a instalação da CPI do Crime Organizado, pelo Senado Federal, em 4 de novembro de 2025, representa um passo institucional relevante. A extrema direita tentou, sem êxito, eleger Hamilton Mourão (Republicanos-RS) para presidir a comissão, em uma tentativa de transformá-la em palanque ideológico. Contudo, o comando ficou com o senador Fabiano Contarato (PT-ES), tendo como relator Alessandro Vieira (MDB-SE), ambos com experiência policial. O relator pretende convocar especialistas, o ministro da Justiça Ricardo Lewandowski e o governador Cláudio Castro, para aprofundar o exame sobre o avanço das facções e milícias e suas conexões políticas e econômicas.

Embora a CPI conte também com senadores da oposição radical, que buscam utilizar o espaço para atacar o governo federal e capitalizar politicamente nas redes sociais, esse movimento pode se voltar contra seus próprios articuladores, caso as investigações avancem sobre as milícias cariocas, notoriamente vinculadas ao bolsonarismo.

Todavia, espera-se que o presidente e o relator da comissão consigam preservar a seriedade dos trabalhos, priorizando a apuração dos mecanismos de atuação do crime organizado, incluindo o financiamento das milícias, os fluxos de lavagem de dinheiro e a infiltração dessas estruturas em esferas institucionais e econômicas.

Em síntese, o combate à criminalidade requer ações coordenadas e integradas entre os diversos órgãos competentes, planejamento técnico e compromisso com o devido processo legal, não a exploração política da morte. A persistência em modelos autoritários e midiáticos de segurança pública não apenas agrava a violência, como também ameaça os alicerces democráticos e o próprio Estado de Direito. Nessa perspectiva, o resultado concreto da recente megaoperação sangrenta no Rio de Janeiro foi pífio: o Comando Vermelho não foi enfraquecido, suas lideranças permanecem ativas e suas finanças intactas, enquanto os mortos já foram substituídos. O que se presenciou foi uma encenação violenta, ao estilo “bukelista”, concebida para produzir manchetes e dividendos eleitorais, não segurança pública.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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