A PEC da Segurança Pública e a Necropolítica Brasileira: entre o controle da vida e da morte
A PEC 18/2025: Ferramenta de Controle ou Novo Risco de Centralização em um Contexto de Violência Policial Estrutural?
O debate sobre segurança pública voltou ao centro da cena nacional após a megaoperação no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em 28 de outubro de 2025, que resultou em pelo menos 121 mortes — um dos maiores massacres policiais da história brasileira. Diante da comoção e da repercussão internacional, o governo federal, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, reforçou a defesa e a urgência da Proposta de Emenda Constitucional nº 18/2025, originalmente apresentada em abril de 2025, agora reposicionada como um instrumento de integração e fortalecimento das forças policiais, com ênfase na coordenação nacional e na racionalização do uso da força.
O discurso oficial que acompanha a proposta é marcado por termos como “eficiência”, “coordenação” e “controle externo”. De fato, o texto da PEC incorpora avanços institucionais relevantes: a constitucionalização do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), a criação de fundos de financiamento não contingenciáveis, a substituição da Polícia Rodoviária Federal pela Polícia Viária Federal (PVF) com novos protocolos de atuação, e a previsão de uma arquitetura de controle externo mais robusta, composta por conselhos com participação social, corregedorias autônomas e ouvidorias fortalecidas.
A leitura crítica que aqui se propõe distingue três planos fundamentais: o texto da PEC em si e seus potenciais avanços normativos; o risco de uma implementação distorcida em razão do histórico de descumprimento institucional; e o contexto político desigual entre diretrizes federais e práticas estaduais, notadamente no Rio de Janeiro. Trata-se, portanto, de analisar a PEC não apenas em seu conteúdo jurídico, mas como reflexo das tensões federativas e da disputa entre uma concepção democrática de segurança e uma lógica necropolítica persistente.
A PEC 18/2025 surgiu sob forte pressão popular e midiática por respostas à escalada da violência, mas não propõe a federalização das polícias estaduais. Seu texto explicita a preservação da autonomia dos estados e a subordinação das polícias aos governadores, limitando-se a coordenar ações por meio do SUSP e a criar a PVF como força federal responsável pela fiscalização em vias de transporte. Apesar disso, governadores conservadores — entre eles Cláudio Castro (RJ) — reagiram acusando o governo de tentativa de “federalização indevida”. A crítica, contudo, não se sustenta à luz da redação da proposta, que reafirma o pacto federativo ao condicionar qualquer intervenção federal a requisitos constitucionais rigorosos e à deliberação de conselhos nacionais com representação paritária entre União, estados, municípios e sociedade civil.
A substituição da PRF pela PVF deve ser compreendida como reestruturação corretiva, não como ampliação de poder repressivo. A antiga PRF atuava de forma ostensiva, com histórico de abusos notórios — como o caso Genivaldo, em 2022. Já a PVF nasce com mandato constitucional restrito, protocolos unificados e vinculação obrigatória a corregedorias externas, representando um avanço em termos de controle e transparência, embora insuficiente para superar o déficit crônico de formação e preparo técnico.
A PEC também institui uma arquitetura inédita de controle externo: corregedorias autônomas com indicação parlamentar, ouvidorias com mandato fixo e independência orçamentária, conselhos nacionais com metade de seus assentos destinados à sociedade civil, e a obrigatoriedade de câmeras corporais com armazenamento em nuvem federal. Todavia, a experiência brasileira demonstra que a existência de normas, por si só, não garante a efetividade prática. A recente operação no Complexo do Alemão, sob comando estadual, é exemplo emblemático: câmeras desligadas, imagens desaparecidas, corpos removidos sem perícia. O problema não reside na falta de mecanismos de controle, mas no risco de sabotagem institucional em estados cujos governos naturalizam a letalidade e a impunidade.
Elevar esses mecanismos à esfera constitucional é, sem dúvida, um passo importante para dificultar o descumprimento, mas a eficácia da PEC dependerá da vontade política federal e da pressão social permanente. A experiência recente mostra que o vácuo de fiscalização federal e o silêncio cúmplice do Legislativo são condições que permitem a reprodução do estado de exceção nos territórios periféricos.
O Brasil registrou, em 2024, 6.243 mortes por intervenção policial, das quais 82% tiveram vítimas negras. A violência é racializada, territorializada e concentrada nos estados que adotam políticas de confronto. Aqui se manifesta o conceito de necropolítica formulado por Achille Mbembe — o poder de decidir quem deve viver e quem deve morrer. No contexto brasileiro, essa lógica se materializa em favelas e periferias, onde o Estado administra a morte como instrumento de governo. Entretanto, não se trata de uma política nacional unificada, mas de práticas estaduais autônomas, em especial sob gestões alinhadas ao bolsonarismo.
A PEC, nesse sentido, não nacionaliza o modelo fluminense de confronto. Pelo contrário: ao unificar protocolos via SUSP e condicionar operações conjuntas à observância de padrões constitucionais, ela pode impor freios à letalidade estadual, desde que haja fiscalização efetiva do Supremo Tribunal Federal. A operação de outubro de 2025, planejada pelo governo Cláudio Castro, ilustra a perversidade dessa lógica. O resultado — 121 mortos, 113 presos, o alvo principal foragido — revela a disfuncionalidade de um modelo baseado na eliminação física de suspeitos. O uso de táticas como o “Muro do Bope” e armamento pesado em áreas densamente povoadas violou frontalmente a ADPF 635, e as declarações do governador, que comemorou a chacina como “vitória”, simbolizam a naturalização da barbárie.
A responsabilidade federal nesse episódio é secundária, restrita a apoio logístico, mas a PEC pode ser um antídoto parcial a tais práticas, ao exigir planejamento conjunto via SUSP e submeter operações interestaduais a conselhos com participação social. Ao institucionalizar a corresponsabilidade e a transparência, reduz-se a discricionariedade de governadores autoritários e amplia-se o controle público sobre a segurança.
No campo carcerário, o Brasil abriga atualmente cerca de 940 mil pessoas presas — 68% delas negras — e enfrenta déficit de mais de 200 mil vagas. O encarceramento em massa é uma das faces mais visíveis da necropolítica, mas tampouco é monopólio federal. A superlotação e as violações sistemáticas de direitos humanos se concentram nos estados onde prevalece a lógica punitivista e o abandono de políticas sociais. A PEC tenta enfrentar esse cenário ao criar o Fundo Nacional de Segurança Pública e reformular o Funpen, garantindo recursos constitucionais não contingenciáveis e destinando parcela obrigatória a políticas preventivas de educação, emprego e cultura. Pela primeira vez, o financiamento da prevenção primária é elevado ao mesmo patamar constitucional da repressão, embora a efetividade dessa medida dependa de legislação complementar que fixe percentuais mínimos para investimentos sociais.
No plano teórico, a leitura de Achille Mbembe sobre a necropolítica dialoga com a concepção de Giorgio Agamben acerca do estado de exceção como paradigma de governo. Ambos descrevem mecanismos pelos quais o poder soberano redefine a fronteira entre a vida protegida e a vida matável. No Brasil, as favelas e os presídios constituem laboratórios dessa lógica: espaços onde o direito é suspenso e o Estado exerce sua soberania através da morte. A PEC 18/2025, no entanto, não institucionaliza a exceção — ao contrário, busca restringi-la. Ao reduzir a discricionariedade administrativa e constitucionalizar mecanismos de controle e transparência, a proposta representa um passo normativo contra a exceção, ainda que a prática política possa corroer suas bases. O risco necropolítico não reside no texto da emenda, mas na persistência de estruturas autoritárias e racistas que sabotam sua aplicação.
A repressão, historicamente, tem fracassado em reduzir a violência. O erro estrutural está na insistência em políticas de confronto e encarceramento sem investimento social. A PEC, ao condicionar o repasse de recursos do Fundo Nacional à adoção de planos integrados com metas de redução da letalidade, inspira-se em experiências bem-sucedidas, como o “Estado Presente” do Espírito Santo e o “Plano Estadual de Pernambuco 2023–2030”, ambos centrados em prevenção e governança compartilhada. Casos internacionais, como o de Medellín, mostram que o urbanismo social pode substituir o confronto armado por inclusão cidadã — e a PEC institucionaliza essa visão, ainda que dependa de regulamentação posterior.
A chacina do Alemão, assim, evidencia não a necessidade de endurecimento federal, mas a falência do modelo estadual de guerra. A proposta de emenda, se corretamente implementada, pode contribuir para romper o ciclo da necropolítica, desde que acompanhada de firme atuação do STF na cobrança do cumprimento da ADPF 635, da ocupação efetiva dos conselhos por representantes da sociedade civil e da destinação de pelo menos 30% dos recursos do Fundo Nacional à prevenção social. Segurança pública democrática exige formação policial voltada a direitos humanos, controle externo real e enfrentamento do racismo estrutural.
O Brasil ainda vive sob os escombros de uma transição democrática inconclusa. A anistia de 1979 preservou as estruturas autoritárias das polícias e manteve a lógica do inimigo interno como eixo de sua formação institucional. O sistema prisional, por sua vez, reproduz hierarquias raciais e territoriais herdadas da escravidão. Nesse contexto, a PEC 18/2025 não consolida a necropolítica — ela a desafia. Ao criar normas vinculantes acima da discricionariedade estadual, garantir recursos constitucionais para políticas preventivas e institucionalizar controles externos, a proposta oferece à democracia brasileira um instrumento para reconstruir o pacto civilizatório que a ditadura interrompeu.
O verdadeiro risco não está na letra da emenda, mas na resistência de governos estaduais e na apatia da União. A reconstrução democrática dependerá da capacidade do Estado federal de usar a PEC como alavanca para desarmar a guerra interna, reconhecer a dignidade da vida periférica e transformar as favelas — hoje territórios de exceção — em espaços de cidadania. Quando o corpo negro deixar de ser alvo e o território pobre deixar de ser campo de batalha, o Brasil poderá, enfim, dizer que concluiu sua transição democrática. A PEC é um passo nessa direção. Cabe à democracia torná-la real.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



