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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia

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A esquerda sem bandeiras, e a chacina apagada

Legalizar as drogas é o primeiro passo. Com isto desarmamos o tráfico. Desarmar as CACs e as polícias, que mais parecem exércitos, é o segundo passo

Corpos foram levados por moradores para a Praça São Lucas, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Operação Contenção. (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Istvan Mészaròs, analisando a crise dos partidos comunistas, socialistas e social democratas, na segunda metade do chamado “Breve Século XX” (Hobsbawn), dizia que a diminuição sistemática da classe operária, com a passagem do capitalismo fordista para o toytotista tinha criado uma doença sistêmica nos partidos de esquerda. A perda de influência da classe operária teria convertido estes países de partidos de representação da luta operária em partidos eleitorais, de representação de disputa eventual do poder, no qual todo o perfil de luta tinha que se converter ao espetáculo eleitoral, forjado de 2 em 2 anos, ou de quatro em quatro anos.

Isto levou não só à perda de representatividade interna da classe operária tradicional (reflexo da perda de representatividade dela no mundo de trabalho), mas a uma mudança de perfil. Os partidos de esquerda, de partidos de luta pela emancipação e das pautas do mundo do trabalho vão se reconstruindo em partidos eleitorais e eleitoreiros, forjados não mais na luta de classes, mas no embate e debate meramente eleitoral, no qual a classe é trocada pela “opinião pública”, este monstro de 7 cabeças, que não é monstro e não tem 7 cabeças, mas aprisiona o coração e as mentes destes partidos na indústria cultural que viraram as eleições.

O taticismo eleitoral vira “estratégia”, o “projeto de nação” vira estratégia eleitoral baseada em pesquisas de opinião, e os personagens candidatos são mais importantes que as representações e as lutas da classe trabalhadora. Os partidos se burocratizam e viram máquinas eleitorais disputadas a tapa. Com a desculpa esfarrapada “leninista” dos quadros profissionais revolucionários, parte da militância vira profissão com carteira assinada e fim em si mesmo. Um imenso exército de dependentes da máquina partidária e eleitoral, empregada nos gabinetes, cargos em comissão e cargos terceirizados e quarteirizados da máquina burocrática vê na vida partidária a própria vida em si mesmo. O partido socialista e ou comunista, que era um meio de luta para um fim, vira um fim em si mesmo e meio de vida.

Porque faço uma introdução tão grande para falar de uma tragédia e de uma chacina? Porque sem esta introdução não se consegue entender certas manifestações da esquerda e certas “opiniões” de “especialistas” sobre o que há apenas 30 anos atrás traria indignação e seria tratado como o que foi: chacina, genocídio, tragédia, terrorismo de Estado, fascismo.

De uma hora para outra e por razões meramente eleitorais, a esquerda, majoritariamente abandonou a bandeira de entender a criminalidade como reflexo do sistema de desigualdades sociais estruturais e de classe e virou moda dizer que “o crime organizado se combate com inteligência”, “que necessitamos de uma polícia cidadã”, que a “saída para combater o crime organizado é federalizar as investigações”.

Sem querer ser mais um “especialista em segurança pública” (que agora pululam por esta plagas, à direita e à esquerda, em maior número que farmácias ou igrejas neopentecostais) eu quero gritar: “o rei está nu”, alto lá, rapaziada, o buraco fedorento é bem mais embaixo.

A verdade, é que antes de consultar as raízes de nosso pensamento – e sou radical, ser radical é tomar o problema pela raiz (Karl Marx) –, nossa esquerda consulta, antes de dizer bom dia, o “Atlas Intel” de pesquisa de opinião pública, para saber se a “verdade” que irá dizer será popular ou não.

Virou lugar comum dizer que “nosso calcanhar de aquiles é a segurança”, assim, “devemos tratar com inteligência a segurança e sem discurso classista de defesa dos direitos humanos”, para “não deixar a pauta da segurança na mão da direita”.

E isto virou um lugar comum, uma verdade absoluta, e quem discordar desta verdade é ridicularizado como encarnação na vida real do personagem Fraga, uma caricatura de quem defende direitos humanos.

Já temos até a ‘versão de esquerda do “bandido bom” é bandido morto, nas declarações estapafúrdias de Quaquá pai e Quaquá filho no Rio de Janeiro, com o mote estarrecedor de “Paz e porrada”, achando que com estas falas oportunistas vamos conseguir disputar com o PL o “respeito e o voto do cidadão de bem”.

Como diria Engels ao escrever o Anti-Dhuring, esta maçã é amarga, mas não há outro remédio ao mordê-la se não comê-la inteira.

Sim, é óbvio que ninguém na esquerda defende um policial que entra atirando e matando na favela e nossa responsabilidade ao estar à frente do Estado é minimamente administrar esta polícia com o mínimo de danos à classe trabalhadora. A má notícia é que prefiro ficar entre os 1% da esquerda que não se encantou com o discurso de que “vamos combater o crime com inteligência”.

Isto virou um lugar comum e é uma mentira. Mentira que estamos contando para nós mesmos, porque é uma tentação eleitoral que vamos vender para o “cidadão de bem”, de classe média e branco nas eleições. Que sim, vamos administrar melhor a polícia para combater o crime.

O problema real é que estamos criando um monstro cada vez maior que pode nos engolir. O nazi-fascismo não teria triunfado na Alemanha se a República de Weimar não tivesse, ela mesmo, criado os batalhões de defesa com os ex combatentes na primeira guerra, que foram usados, inclusive, contra as rebeliões comunistas em Munique e Berlim, e que assassinaram Rosa Luxemburgo e Liebknecht, e que depois foram os mesmos homens que serviram nas SSs e nas Sas nazistas.

O Brasil não tem polícia de menos, tem polícia de mais, e cada vez mais armada e sem controle efetivo do Estado e com uma ideologia cada vez mais mortal e protofascista. Somando isto aos CACs (que infelizmente não foram desmontados no Governo Lula), temos um imenso exército paramilitar com um débil controle estatal e que pode ser usado sempre pela reação a seu favor e não a nosso favor. Hoje o Brasil tem uma percentual de policiais por pessoas maior que dos Estados Unidos e uma força policial que mata o triplo do que matam as forças policiais dos 15 países do G20 somados.

Vou repetir, as forças policiais brasileiras matam o triplo do que matam os agentes de segurança (e aí soma-se inclusive exércitos em missões de patrulhamento somados). Isto dá a dimensão do problema de que estamos falando.

Estamos falando em genocídio continuado e guerra contra a população civil, que não vai ser resolver “apenas com inteligência”.

Voltando a Mészaròs (é nós socialistas desaprendemos a dar nome aos bois, em falar de capitalismo, em falar de exploração, em falar de desigualdade), um sistema em crise crônica, que não consegue mais se reproduzir senão ampliando a exclusão e a desigualdade vai gerar mais violência de classe e contra a classe trabalhadora. A criminalidade é sintoma disto, não é um epifenômeno que nasce da boa ou má administração da polícia.

A polícia e a segurança não são fenômenos em si, que podem ser vistos foram da dinâmica da crise do capitalismo, e posso até parecer um marciano esquisitão falando isto, porque simplesmente desaprendemos a olhar para os problemas reais e estruturais do capitalismo e achamos que vamos podar galhos e as árvores deixarão de crescer.

Não, a questão da violência não será resolvida somente com “inteligência”, mais investimento na polícia – o endividado estado do Rio de Janeiro gasta mais com segurança do que com saúde e educação –, mais polícias nas ruas, câmeras corporais e uma “polícia cidadã”.

É uma ilusão que satisfaz a classe média branca (inclusive de esquerda) e fica longe de debater os problemas estruturais e reais que decidimos então, em nome das disputas eleitorais, nunca mais debater e varrer definitivamente para debaixo do tapete.

Brizola poderia ter lá seus problemas, não sou fã de movimentos personalistas, mas estava mais avançado que a atual esquerda propondo investimento pesado na educação e no social em lugar de na segurança, do que a nossa esquerda moderna, que por questão eleitoral coloca a segurança no centro do debate, para disputar com direita “bandido bom é bandido morto” a pauta da segurança. Assim, em lugar do mote cada criança e adolescente dos 2 aos 18 anos na escola integral o dia todo – mote brizolista progressistas, preferimos enfrentar a questão da violência “com mais polícia inteligente”, afinal, o cidadão de bem sofre pesadelos com o domínio territorial do tráfico.

Assim, passamos bem longe da discussão dos problemas reais e estruturais que dão ao tráfico uma fábrica permanente de mão de obra barata para repor os 120, 150, 200 ou mil pessoas que a polícia genocida do Serial Killer Cláudio Castro resolver matar para tentar ganhar a eleição como senador.

O primeiro deles a pauta da legalização das drogas. A partir deste sujeito permanente da pesquisa Atlas Intel, o branco de classe média idiotizado que votará no candidato da proposta de mais segurança, não disputamos corações e mentes. Há um ser permanente antropomorfizado e imutável, o “eleitor médio conservador”, que devemos cativar, como uma espécie de partido self service, que fará sempre a vontade deste Homer Simpson, se for necessário até fazendo um boquete neste eleitor médio para ganhar seu voto, que não suporta nenhum tipo de debate.

Então, uma verdade pós factum, o epifenômeno da opinião conservadora média, criada pelos aparelhos ideológicos de Estado (rádio, TV, cadeias de comunicação conservadoras, igrejas neopentecostais) vira um ser permanente antropomorfizado que tem que ser satisfeito em sua vontade. Para isto a esquerda tem que abrir mão das suas pautas e bandeiras e correr atrás do seu próprio rabo como um vira-latas caramelo, disputando com a ultra-direita um discurso que seduza este cidadão.

E não há solução para este falso problema, já que o epifenômeno é retirado das suas ligações com o mundo real e o retrato pós factum e colocado como um ente categórico eterno que não pode ser modificado em sua essência. Assim, uma esquerda desarmada internamente dentro de suas estruturas partidárias pela não participação estrutural da antiga classe operária conforma-se a ser uma estrutura eleitoral que apresentará um “discurso mais inteligente e sedutor” para ganhar eleições.

O problema deste círculo vicioso é que a esquerda vai cada vez e mais indo para a direita, e restringindo seu campo de ação a um cardápio insosso de soluções mais palatáveis e criativas para problemas que não serão solucionados, apenas serão administrados e gerenciados de maneira mais competente por nós.

Assim, tornamo-nos gerentes permanentes das crises estruturais do sistema, e não propomos nenhuma pauta ou solução real para problemas que são ao fim e ao cabo gerados pela própria crise do capitalismo.

Para começo de conversa, pautar sem medo que a guerra contra as drogas é uma guerra fracassada e que não será vencida pela “inteligência”. A guerra contra as drogas ao fim e ao cabo é a guerra contra as populações mais pobres, para o lumpensinato agregado nas favelas e periferias, mão de obra barata para o tráfico e bucha de canhão nesta genocídio.

A única forma de acabar com a guerra às drogas é legalizá-las, uma verdade muito simples, mas que temos medo de empunhar como bandeira por razões eleitorais, num país muito cristão e conservador, no qual até parte da esquerda estigmatiza quem defende a legalização das drogas como usuário “maconheiro”.

A guerra às drogas retroalimenta uma indústria de traficantes, trabalhadores informais do tráfico de todos os tipos (do olheiro ao soldado), empresas de lavagem do tráfico, banqueiros, e toda a rede conectada a eles: advogadas, polícia e corrupção policial, tráfico de armas. É uma rede trilionária que só tem a perder com a legalização de todas as drogas.

Eu não uso nenhum tipo de droga, mas tenho mais que 3 neurônios na cabeça. Sei que a legalização das drogas não aumenta seu consumo, ninguém que não consuma cannabis ou cocaína hoje passará a consumi-la se ela for legal (isto não ocorreu em nenhum país que legalizou o consumo no mundo). A única coisa que acabará será o domínio territorial do tráfico, que não terá como sustentar seu próprio exército e, com isto e junto a isto, todas as atividades ilegais, incluindo a imensa corrupção policial e o tráfico de armas e todas as atividades ilícitas ligadas a ela.

Apenas o medo eleitoral nos induz a não fazer este debate com a seriedade e radicalidade que ele merece e alimentar a ilusão que uma polícia gigantesca e armada até os dentes contra um tráfico armado até os dentes poderá ser “inteligente e cidadã”.

Hélio Luz, no documentário, Notícias de uma guerra particular, deu um depoimento bastante interessante. Ele disse que a polícia fluminense funciona muito bem. A polícia é órgão de repressão de classe (e isto Luz aprendeu com Marx), ela não está aí para solucionar crimes, está aí para evitar que o morro desça.

Morticínios de negros e favelados não resolvem absolutamente nada, só dá o prazer sádico à classe médio de uma vingança recalcada sobre a suposta ameça permanente de perda dos seus bens, do celular ao carro.

Genocídio é genocídio. Tem que se dizer com todas as letras que é simplesmente impossível que as mais de 70 pessoas desarmadas e encurraladas na mata não morreram num combate entre o bem e o mal. Foram executadas numa política de genocídio estatal que mata mai de 50 mil jovens negros favelados por anos, o que dá meio milhão de mortes por ano, um Vietnã, num país com guerra não conflagrada e que não atinge nem de raspão os problemas reais estruturais do país.

Legalizar as drogas é o primeiro passo. Com isto desarmamos o tráfico. Desarmar as CACs e as polícias, que mais parecem exércitos, é o segundo passo.

Mas isto não pode ser feito sem um investimento maciço que parta do pressuposto que tínhamos antes de acreditar na ideia tosca que o pobre “só quer ser feliz na favela onde eu nasci”.

A esquerda já foi mais radical e mais ousada. Cantava ao contrário:

“Feio não é bonito, o morro existe, mas pede para acabar”.

E não estou falando de expulsão de moradores de comunidades, estou sinalizando para políticas públicas que acabem com as favelas porque não haverá mais favelados, porque a classe foi emancipada da condição de escravidão moderna pela miséria.

Não adianta matar pretos e pobres consignados como alvos por serem traficantes – lembrando que os traficantes de verdade, são brancos, falam inglês e moram na Vieira Souto ou nos condomínios ricos da Barra da Tijuca –, temos que tirar a população preta da favela, a nova senzala, e enquanto não conseguimos um nível real de igualdade no país mais desigual do mundo, ao menos fazer um debate verdadeiro sobre a guerra às drogas, sem medo da pesquisa Atlas Intel.

Ou então é só enxugar gelo pensando nas próximas eleições. 

 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.