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Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português

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A natureza não nos pertence; nós é que pertencemos à natureza

Capitalismo e colonialismo revelam-se incompatíveis com a sobrevivência humana e exigem uma nova relação entre sociedade e natureza

Novas mudas de mangue (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

A Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025, também chamada de COP30, será a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas e vai ocorrer em Belém, Pará, entre os dias 10 e 21 de novembro de 2025. Várias organizações não governamentais e movimentos sociais solicitaram-me uma carta-manifesto para ser divulgada durante a Conferência. Eis o meu contributo. Durante a COP também será lançado o meu novo livro sobre os direitos da Natureza, publicado no Brasil. Junto, a capa de autoria do pintor português Mário Vitória.

O que estará em causa na COP30, como esteve nas anteriores e estará nas futuras, é a falta de vontade política para enfrentar esta verdade simples de formular, mas muito difícil de pôr em prática: a natureza não nos pertence; nós é que pertencemos à natureza. A dificuldade também é simples de identificar, mas muito difícil de enfrentar: o capitalismo e o colonialismo, que dominam a economia e a sociedade mundial desde o século XVI, tornaram-se incompatíveis com a sobrevivência da vida humana e da vida em geral no planeta Terra. A incompatibilidade também é simples de formular: para a modernidade eurocêntrica, constituída prioritariamente pelo capitalismo e pelo colonialismo, a natureza pertence-nos e, como tal, podemos dispor dela livremente. Dispor dela implica o poder de a destruir.

Para o capitalismo e o colonialismo existe uma separação radical entre a sociedade humana/humanidade e a natureza. A filosofia cartesiana que preside a esta dualidade estabelece uma separação e uma hierarquia absolutas entre o ser humano e a natureza, tal como separa a mente do corpo. Enquanto o ser humano é uma res cogitans, uma substância pensante, a natureza é uma res extensa, uma substância extensa e impenetrável. Como Deus é pensamento humano sobre o infinito, o ser humano está imensamente mais próximo de Deus do que da natureza. O ser humano é verdadeiramente digno da dignidade que Deus lhe concedeu na medida em que se desnaturaliza. Aqui reside a raiz da linha abissal que caracteriza a dominação moderna, a possibilidade de dualismos absolutos e, com isso, a impossibilidade de um pensamento holístico. A natureza é submetida a uma exclusão abissal da sociedade e o mesmo ocorre, logicamente, com todas as entidades consideradas mais próximas da natureza. Historicamente, as mulheres, os indígenas, os negros e, em geral, todas as raças consideradas inferiores foram exemplos dessas entidades. Todos os principais mecanismos de exclusão e discriminação existentes nas sociedades modernas, quer se trate de classe, raça ou género, estão, em última instância, fundados no dualismo radical entre sociedade/humanidade e natureza, entre mente e corpo, entre espiritualidade e materialidade. As formas como a sociedade moderna lida com a inferioridade têm como modelo as formas como lida com a natureza. Se a exclusão abissal significa dominação por apropriação/violência, a natureza – incluindo a terra, os rios e as florestas, bem como as pessoas e as formas de ser e de viver cuja humanidade foi negada precisamente por fazerem parte da natureza – tem sido o alvo preferido desta dominação e, portanto, de apropriação e de violência, desde o século XVII.

A destruição do ambiente e a crise ecológica são a outra face das crises sociais e políticas que estamos a enfrentar e que as políticas convencionais são cada vez menos capazes de resolver. Diferentes correntes de pensamento têm tentado dar conta do duplo vínculo entre a crise ecológica e a crise social. A maioria aponta para a necessidade urgente de uma mudança de paradigma, o que, por si só, indica tanto a gravidade da crise que estamos a atravessar como a magnitude do que está em jogo. Concordam com a ideia de que a mudança de paradigma consiste em substituir o dualismo humanidade/natureza por uma conceção holística centrada numa nova compreensão da natureza e da sociedade e das relações entre elas.

Um paradigma é um tipo específico de metabolismo social, um conjunto de fluxos materiais e energéticos controlados pelo ser humano que ocorrem entre a sociedade e a natureza e que, de forma conjunta e integrada, sustentam a auto-reprodução e a evolução das estruturas biofísicas da sociedade humana. A partir do século XVI – na sequência da expansão colonial europeia e, em particular, após a primeira revolução industrial do mundo ocidental (década de 1830) –, o metabolismo social característico do paradigma capitalista e colonialista gerou um desequilíbrio crescente nos fluxos entre a sociedade e a natureza, produzindo uma rutura metabólica. É hoje aceite que essa rutura, ao criar um desequilíbrio sistémico entre a atividade humana e a natureza, marcou o início de uma nova idade na vida do planeta Terra, o Antropoceno. Este desequilíbrio foi-se agravando de tal forma que nos encontramos atualmente perante uma catástrofe ecológica iminente, uma situação que, quando se tornar irreversível, colocará em grande risco a vida humana na Terra. É imperativo pôr em marcha, o mais rapidamente possível, um processo de transição para um tipo diferente de metabolismo social, baseado num tipo diferente de relação entre a sociedade e a natureza. É disto que trata a necessária transição paradigmática.

A transição paradigmática pressupõe a necessidade de uma filosofia que a sustente e de uma forte mobilização social que a ponha em prática. A transição é um processo histórico, isto é, é urgente iniciá-la, mas é impossível prever o seu ritmo e o seu tempo. Temos mais razões para ser otimistas no que respeita à filosofia do que no que respeita à mobilização social.

É que a filosofia está há muito disponível, é o conjunto das filosofias dos povos que foram mais sacrificados pelo capitalismo e pelo colonialismo, os povos que muitas vezes foram exterminados, cujos territórios foram invadidos, cujos recursos ditos naturais foram roubados, um processo histórico que começou no século XVI e que continua no nosso tempo. Refiro-me às filosofias dos povos indígenas ou originários. Felizmente estas filosofias chegaram até nós graças à resistência e às lutas destes povos contra a opressão, a exploração e a aniquilação.

Embora tais filosofias sejam muito diversas, convergem num ponto. O que designamos como natureza é concebido por tais filosofias como Pachamama, ou Terra-Mãe. Se a natureza é mãe, é fonte da vida, é cuidado, merecedora do mesmo respeito que merecem as nossas mães que nos deram a vida. Em suma, a natureza não nos pertence; nós é que pertencemos à natureza. Esta pertença radical contradiz qualquer ideia de dualismo entre o ser humano e a natureza. A entidade divina, independentemente da forma como é concebida, é uma entidade deste mundo e pode manifestar-se num rio, numa montanha ou num determinado território. O divino é a dimensão espiritual do material e ambos pertencem ao mesmo mundo imanente.

Entre muitos outros exemplos desta filosofia, refiro o pensamento do povo originário Nasa, da Colômbia:

Na perspetiva da lei de origem, falar de princípios de vida e garantia de vida significa falar de mandatos ou leis espirituais e naturais que justificam a diferença entre a prática da vida dos Nasa e a das culturas não indígenas. Para os Nasa, tudo o que existe é um ser vivo: minerais, astros, ar, água, plantas etc. Portanto, todos os seres (nasa) têm o direito de procriar, de cuidar de si e da Mãe Terra. A Mãe Terra é um ser vivo, é Uma Kiwe, um membro da comunidade, e por isso tem direitos. Os Nasa vêm da Mãe Terra e fazem parte dela antes de nascerem e depois de morrerem. Na Mãe Terra estão registados todos os conhecimentos, os antepassados, a sabedoria e os sonhos. E, acima de tudo, faz parte da comunidade (Plan de Salvaguarda de la Nación Nasa).

Para o povo Nasa, como, em geral, para os povos indígenas ou originários, o território, longe de ser apenas um espaço físico, abriga uma multiplicidade de entidades ou seres espirituais. A comunidade dos humanos é apenas uma das comunidades de vida que constituem esse território. Longe de ser um objeto, o que designamos por natureza é um sujeito, inclusivamente um sujeito de direitos, os direitos da natureza. Para o capitalismo e o colonialismo, conceber a natureza como um sujeito de direitos constitui uma ameaça de morte. Os direitos da natureza são incompatíveis com o direito do capitalismo e do colonialismo a perpetuar-se. No reconhecimento desta incompatibilidade está o começo da transição paradigmática.

Dispomos da filosofia, mas dispomos da mobilização social que leve por diante a transição paradigmática? A resposta é: por agora, não. Aliás, o período atual parece muito mais hostil à ideia da transição paradigmática do que os períodos anteriores. A máxima hostilidade decorre da ameaça de guerra global que paira sobre o mundo e da crescente polarização entre “nós” e “eles” que alimenta a política do ódio. Uma nova guerra mundial será certamente mais destrutiva do que as anteriores e a destruição não será apenas de vida humana, será também a destruição do que ainda resta de ecossistemas de sustentação da vida em geral. Por sua vez, a polarização social e o tribalismo que crescem no seu bojo, alimentados pelos promotores do ódio, tornam impossível que a humanidade converse entre si e com todos os seres não humanos com os quais partilha o planeta Terra. A luta pela transição paradigmática começa hoje pela luta contra a guerra e contra a polarização social alimentada pelo tribalismo e pela política do ódio.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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