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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia

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À morte de uma nuvem (homenagem a Lô Borges)

A partida de Lô Borges nos lembra que, sem poesia e música, a vida perde o sentido e o Brasil fica mais silencioso

Lô Borges (Foto: Bárbara Dutra/Divulgação)

A gente morre aos poucos. A imortalidade deve ser uma maldição, não uma bênção. Descobri isso de forma mais dura quando perdi minha filha Ana Carolina. Eu nem sabia que uma parte do coração podia ser amputada em vida — e sem anestesia.

E por que cito Carol ao falar de Lô Borges? Porque Girassol da cor do seu cabelo, uma música que eu sempre disse a ela ser sua personificação, foi a que mais escutei nos 21 dias em que esteve em coma, antes de partir:

“Vento solar e estrelas do mar A terra azul da cor de seu vestido Vento solar e estrelas do mar Você ainda quer morar comigo? Se eu cantar não chore não, é só poesia Eu só preciso ter você, por mais um dia Ainda gosto de dançar, bom dia Como vai você?”

É estranho que a perda de músicos que amo — como Aldir Blanc, Nana Caymmi (sim, apesar das posições dela no fim da vida, eu amava demasiadamente a cantora Nana) — e Lô Borges me faça sentir que também estou morrendo aos poucos.

Morrer é perder as referências; é quando nossos entes queridos vão partindo e vamos perdendo a conexão com o mundo. E Lô Borges e o Clube da Esquina ressignificaram o mundo para mim.

A vida não faz sentido sem poesia. Fico estupefato quando alguém diz que não gosta de poesia ou que poesia é chata. Passo a desconfiar da pessoa e, em 150% das vezes, o chato é o sujeito — ou a sujeita — que não gosta de poesia.

Sem poesia, sem música, a vida não faria nenhum sentido. Cortázar, escritor existencialista que amo, usava a música como uma das formas de ressignificar o mundo desencantado, sem divindade.

A música transcende o espaço e o tempo, e o Clube da Esquina foi uma dessas travessias em que o melhor da cultura popular brasileira excedeu — e muito — toda a transcendência que uma música pode ter. Estava tudo ali, misturado: o jazz, os Beatles, o rock progressivo, Debussy e Chopin, os tambores de Minas, a influência das montanhas e do povo mineiro, o pão de queijo, o café quente, o conversê mineiro, o trem, a teologia da libertação, o movimento estudantil — e, nele, todos os “ismos”: marxismo, comunismo, socialismo —, o cinema novo, o cinema francês e europeu. Tudo junto e misturado, mas com o barulho de carro de boi e o cheiro da cozinha da avó — bem brasileira.

O Clube da Esquina era feito de pretos, brancos, cabelos grandes, jovens pobres e malvestidos, indo onde o povo queria ouvi-los, antenados com seu tempo e com as dores e as lutas de toda a América Latina.

Lô Borges era uma nuvem cigana. E como a gente reage à morte de uma nuvem? Mas era daquelas nuvens estivais, que chovem abundantes e generosas, encharcando a alma — da qual brota o cheiro da terra molhada, irrigando as raízes e ficando na memória da pele.

Alguém retratou melhor a memória da juventude de luta das décadas de 1960 e 1970 do que ele, nesta letra que, em pouquíssimos versos, penetra na alma e nos paralelepípedos encharcados pelo sangue de quem lutou?

“Porque se chamavam homens Também se chamavam sonhos E sonhos não envelhecem
Em meio a tantos gases lacrimogêneos Ficam calmos, calmos Calmos, calmos, calmos".

O Clube da Esquina, aliás, não envelheceu. Assim como a Bossa Nova, é uma música que recebe os influxos de todos os cantos do mundo e os retoca, antropofagicamente, com o som das montanhas de Minas.

Sem Lô Borges, ficamos mais pobres. Cada um de nós morre um pouco — cada um que o amou e amou sua música.

Parte no trem azul, em paz, Lô. E saiba que levou um pedaço do nosso coração.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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