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      Paulino Cardoso

      Historiador, analista geopolítico e Editor do Mundo Multipolar

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      A hipocrisia da solução de dois estados

      O problema para os palestinos, e igualmente para toda a Ásia Ocidental, é a própria existência do Estado de Israel

      Bandeira palestina (Foto: REUTERS/Yara Nardi)

      Malek al-Khoury, jornalista libanês e editor do jornal As-Safir, publicou um artigo no The Cradle, analisando a enxurrada de reconhecimento do Estado Palestino, em especial por nações europeias, explorando o seu significado.

      O autor chama atenção que “desde a sua criação em 1948, Israel nunca operou dentro de fronteiras fixas. A expansão sempre foi sua doutrina – não limitada por lei, mas impulsionada pela força e endossada pelo apoio inabalável do Ocidente. Israel se recusou a definir suas fronteiras por quase oito décadas porque sua própria identidade está enraizada em uma ambição colonial que nunca se encerrou de fato.”

      Ao longo dos seus 80 anos, o sionismo, uma ideologia racista típica da cultura imperial europeia do século XIX, Israel não teve fronteiras definidas, na medida em que foi ampliando pela força seu território por meio de anexação de áreas como Jerusalém Oriental, as Colinas de Golán na Síria, ou ocupação da região sul do Líbano e agora Gaza e Cisjordânia. Segundo Al-Malek, “esse projeto expansionista só se fortaleceu com a ascensão da corrente messiânico-nacionalista dentro de Israel, que vê o controle total sobre o “Grande Israel” como um direito histórico que não pode ser comprometido.” 

      Neste sentido, como conciliar a existência de dois Estados na Palestina histórica? Como diz o autor, o movimento de imigração de sionistas, desde a Declaração de Balfour de 1917 (uma carta do governo britânico, redigida por Arthur Balfour, Secretário de Relações Exteriores do Reino Unido à Lorde Rothschild, na qual se compromete o apoio do Reino Unido a um "lar nacional para o povo judeu" na Palestina), não se tratava de “mero colonialismo”, mas de (...) substituição étnica: terras foram tomadas sob proteção imperial e, em seguida, conquistadas militarmente.” Ou seja, o objetivo de Israel nunca foi a coexistência. Sempre foi a supremacia judaica.

      Para o autor, a solução de dois Estados, em especial após a Operação Inundação de Al-Aqsa em 7 de outubro, também significou uma mudança no discurso político do movimento palestino.” Surpreendentemente, facções palestinas – incluindo o Hamas – começaram a expressar explicitamente apoio à "Solução de Dois Estados", após anos insistindo na libertação da Palestina histórica em sua totalidade.” Como se vê nesta declaração, o alto funcionário do Hamas Khalil al-Hayya disse em maio de 2024, citado pelo autor:

      “Estamos prontos para nos envolver positivamente com qualquer iniciativa séria para uma solução de dois Estados, desde que isso implique um verdadeiro Estado palestino nas fronteiras de 1967, com Jerusalém como sua capital e sem assentamentos.”

      Essa adaptação tática sinaliza uma mudança significativa. Após décadas insistindo na libertação total, atores palestinos importantes agora consideram abertamente um Estado truncado. Seria isso um reflexo de uma dinâmica de poder em mudança? Ou um realinhamento imposto sob pressão regional e internacional?

      Em seu entendimento, mesmo que todos os países europeus reconhecessem a Palestina, isso não passaria de um simbolismo sem sua aplicação. Não haveria fronteiras definidas para o Estado, nenhum controle sobre seu próprio território e nenhuma interrupção na expansão de assentamentos ou nas políticas de anexação adotadas pelo Estado ocupante.

      Como sabemos, Tel Aviv rejeita completamente a premissa. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, insiste que qualquer futuro Estado palestino seria "uma plataforma para destruir Israel" e que o controle soberano de segurança deve permanecer com Israel. Ele tem descartado repetidamente o retorno às condições anteriores a 7 de outubro. 

      Assim, apesar da rejeição internacional da entidade sionista, para o autor, Israel está se expandindo e se consolidando, enquanto o movimento palestino reduz suas demandas e os estados regionais normalizam os laços, o que exatamente foi alcançado? 

      Facções da resistência que antes rejeitavam a existência de Tel Aviv agora propõem a criação de um Estado em seus termos. O reconhecimento europeu vem sem força. Os assentamentos crescem. O deslocamento continua. Isso não é libertação. É o enterro do sonho sob o disfarce da diplomacia. 

      “A solução provisória se tornará o arranjo final. O "Estado" palestino se tornará um eufemismo diplomático – uma estrutura vazia elogiada em discursos, mas negada na prática.”

       

      Ricardo Mohrez Muvdi, presidente da União Palestina da América Latina, também debruçou-se na onda de países europeus, como Espanha, Noruega, Irlanda, Eslovênia, entre outros, anunciaram o reconhecimento do Estado da Palestina. 

      Aparentemente, trata-se de um passo histórico. “Para outros, é uma vitória moral após décadas de ocupação e sofrimento. Mas por trás desses gestos diplomáticos esconde-se uma estratégia muito mais complexa. A pergunta é inevitável: quais são os reais interesses por trás dessa repentina avalanche de reconhecimentos?”

      Em primeiro lugar, afirma, “é preciso entender que esses reconhecimentos não surgem do nada. Eles ocorrem em meio a uma guerra genocida contra Gaza, onde Israel fracassou em sua tentativa de eliminar a resistência palestina, particularmente o Hamas. Nem com bombas, nem com fome, nem com deslocamentos forçados, conseguiu subjugar um povo que resiste com dignidade.”

      Diante do horror midiatizado e as manifestações cada vez maiores de apoio ao povo palestino, o Ocidente não consegue “mais sustentar a narrativa de que Israel está "se defendendo". Precisam oferecer uma alternativa que mantenha o controle político, desative a resistência e alivie as pressões sociais internas. É aí que entra o reconhecimento do "Estado palestino".” Ou seja, é um esforço por parte das elites ocidentais de “salvar a cara”, distanciar-se publicamente do genocídio palestino da qual participaram ativamente.

      Como Al-Khoury, volta à questão importante: “Por que o Estado reconhecido não tem fronteiras, nem exército, nem soberania sobre seu território. Não controla nem seu espaço aéreo nem marítimo. Não pode garantir a segurança de seus cidadãos e não tem unidade política. Em essência, é um fantasma administrativo sob ocupação. E não é um Estado de verdade.”

      Sentencia, ao reconhecer um "Estado palestino" sem impor sanções a Israel, a venda de armas não é reduzida e a expansão dos assentamentos continua. Em outras palavras, uma solução diplomática é legitimada sem alterar as condições materiais da ocupação.

      Para o autor, há um outro aspecto sinistro neste reconhecimento. A mesma mídia corporativa que reconhece a “solução de dois Estados”, é a mesma que demoniza a resistência palestina representada pela Jihad Islâmica e o Hamás, visto como organizações terroristas e essencialmente contrários aos valores seculares, liberais e democráticos que o Ocidente diz valorizar.

      Ao escolher a Autoridade Nacional Palestina, criada a partir dos Acordos de Oslo, 1994, busca-se “reorganizar a liderança palestina de fora, excluindo movimentos de resistência como o Hamas ou a Jihad Islâmica? Estamos buscando criar um Estado artificial e obediente que administre a ocupação sem questioná-la”. Portanto, “a avalanche de reconhecimentos seria menos uma demonstração de solidariedade e mais uma manobra geopolítica para neutralizar a luta do povo palestino.”

      Enquanto isso, “existe um enorme risco de que o mundo comece a se referir à Palestina como um "Estado reconhecido", enquanto, na prática, ela continua sendo uma nação ocupada, colonizada e bloqueada. Essa ficção jurídica pode ser usada para congelar o conflito, neutralizar as queixas internacionais e culpar as próprias vítimas por sua situação."

       Para ele, “nesse cenário, a causa palestina de uma luta anticolonial legítima se transforma em uma disputa burocrática entre dois governos. A história é apagada, o apartheid é invisibilizado e as vozes dos mártires são silenciadas.”

      Sem dúvida, essa “avalanche de reconhecimento" não é gratuita, nem desinteressada, nem revolucionária. Faz parte de um reajuste político global diante da erosão moral do Ocidente e da ascensão da resistência palestina. Isso pode ser útil diplomaticamente, sim, mas não devemos nos deixar enganar: a verdadeira libertação não virá de potências estrangeiras, mas da determinação do povo palestino, em Gaza, na Cisjordânia, no exílio e na diáspora.”

      O problema para os palestinos, e igualmente para toda a Ásia Ocidental, é a própria existência do Estado de Israel, um crime cometido pelas potências vencedoras da II Guerra Mundial, que aprovou a expropriação das terras do povo palestino para implantação do projeto sionista, por sua natureza, colonial e racista e que até hoje permite ao Ocidente o controle das fontes de energia e da logística do comércio internacional.

      Tal como foi feito para acabar com o regime do apartheid na África do Sul, é preciso isolar o regime sionista por meio do boicote, desinvestimento e sanções. Só isso fará dobrar a elite e povo de Israel para uma solução que contribua para paz e prosperidade na região. O resto é hipocrisia.

      Fontes

      Malek al-Khoury. A Europa está pressionando pela criação de um estado palestino ou pela rendição palestina?            https://thecradle.co/articles/is-europe-pushing-for-palestinian-statehood-or-palestinian-surrender

      Ricardo Mohrez Muvdi. Pensamento crítico: O que está por trás da avalanche de reconhecimentos do Estado da Palestina?

      https://reseauinternational.net/pensee-critique-que-cache-lavalanche-de-reconnaissances-de-letat-de-palestine/

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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