Chico e a farsa de quem se diz silenciado
Ao chamar de censura o que é justiça, transformam a mentira em bandeira e a calúnia em espetáculo. Chico só pede o que é seu: respeito
Há um velho truque na política contemporânea: transformar a própria responsabilização em espetáculo. A mais recente encenação vem da vereadora suplente Samantha Cavalca (sim, não é Cavalcante), que declarou estar sendo “censurada” por Chico Buarque — o artista que, desde os anos de chumbo, enfrentou repressões, exílios e juízos de poder com a arma mais profunda que conheceu: a poesia. O contraste é gritante: quem foi silenciado pela ditadura hoje é acusado de “calar” quem usurpa sua obra para disseminar falsidades.
Chico não está sendo julgado — ele é quem recorreu à Justiça. Moveu ação contra Ratinho, o youtuber Thiago Asmar e a vereadora, por acusações públicas infundadas de que teria recebido verba irregular pela Lei Rouanet. A Justiça determinou: apresentem provas ou retratem-se em cinco dias, sob pena de responsabilização. Não se trata de cercear opinião, mas de exigir verdade diante de uma calúnia travestida de discurso.A confusão entre expressão livre e mentira é terreno fértil para oportunistas. Nas redes, muitos invocam “meu direito de falar” como salvo-conduto moral, esquecendo que todo direito vem acompanhado de dever. Quando o contraditório chega, o discurso se converte em narrativa de vítima — e o acusado em herói. Samantha gravou vídeos, lamentou suposta falta de salário, pediu doações via PIX, transformando o processo em tribunal emocional e a mentira em bandeira política.
Tinha cinco anos de idade quando ouvi, pela primeira vez, A Banda, na voz de Nara Leão. Aquela canção leve e transparente me apresentou ao poder que a música tem de enfeitar o cotidiano com humanidade. Aos dez anos, escutei Olê, Olá e A Rita — e percebi que Chico compunha mais do que melodias, criava um espelho para o país. Aos treze, ouvi Construção: foi ali que entendi que a arte pode desconstruir para ressurgir. Desde então, sua poética acompanhou meus anos de juventude e me vestiu na maturidade.É uma lástima ver criaturas sem ética nem pudor usarem a obra dele para defender o indefensável — exaltar os anos de chumbo, justificar o autoritarismo, promover o ódio e o desprezo pelo outro. Nada mais vil do que usar versos de amor e liberdade como combustível de intolerância. E fazê-lo em nome de um artista cuja trajetória é símbolo de resistência e consciência.
A narrativa de “estou sendo censurada” costuma nascer quando a Justiça exige responsabilidade. É uma manobra semântica que inverte papéis: o falsificador se diz vítima, o autor se torna agressor, e o ato de exigir verdade é travestido de tentativa de silenciamento. Trata-se de um truque perigoso — confunde responsabilizar com calar e transforma o delinquente moral em mártir da pós-verdade.Chamar de censura o que é simples exigência judicial é operar um truque político que eleva a impunidade ao status de liberdade. A censura prévia é crime de Estado; a responsabilização posterior é o alicerce da civilização democrática. Quem acusa falsamente não exerce liberdade: comete abuso. E quem reage a isso não persegue — apenas protege o sentido da palavra “justiça”.
Chico já disse: “Este é um governo que não fala fino com os Estados Unidos nem grosso com a Bolívia.” A frase é uma síntese magistral da ética do equilíbrio: nem servilismo aos poderosos, nem arrogância com os frágeis. É o retrato da lucidez política que ele imprime em suas letras e em sua vida.
Em outro momento, afirmou: “Quero me juntar às vozes que denunciam o genocídio de palestinos em Gaza.” Essa declaração reafirma a coerência moral de sua arte: para Chico, política é um modo de amar o mundo, não de explorá-lo.
E ainda: “Às vezes o que a gente procura não é o que a gente procura, é o que a gente encontra.” Aparentemente leve, essa frase revela uma pulsão profunda — a descoberta de sentido no inesperado, a lição de que a vida é feita de encontros que não cabem no cálculo da razão.
Há ironia histórica: o homem que enfrentou o AI-5 e desafiou generais com versos dissimulados precisa agora se defender de acusações vulgares feitas sob o pretexto de liberdade. Antes, o censor usava farda; agora, usa algoritmo. A diferença é que, naquela época, queriam calar a arte — hoje, querem sequestrá-la para servir ao ódio.
Responsabilidade é o nome civilizado da liberdade. Sem ela, o debate público se degrada em lamaçal, e a reputação, em troféu miserável. Distinguir censura de responsabilização é uma urgência democrática. A democracia não exige silêncio — exige decência, verdade e consciência.Quem fala o que quer, cedo ou tarde, terá de responder — não como vítima, mas como autor de suas palavras. Isso não é censura. É justiça.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.