A arquitetura da destruição e o silêncio das máquinas
Vivemos a era em que o campo de batalha se digitalizou e a morte passou a ser mediada por sensores e dados
Por Reynaldo Aragon e Eden Cardim
Quando as máquinas silenciam, é porque a guerra aprendeu a pensar. Entre algoritmos, dados e sistemas autônomos, a violência tornou-se cálculo, e a ciência, sua linguagem mais precisa
O tempo e a máquina
Vivemos a era em que o campo de batalha se digitalizou e a morte passou a ser mediada por sensores e dados. O inimigo pode ser uma assinatura térmica. O ataque, uma linha de código. A estratégia, um loop de feedback em tempo real. A guerra do presente já não é feita apenas de músculos e aço, mas de redes, inteligência sintética e controle da atenção. E se ela parece tão silenciosa é porque sua brutalidade opera dentro de padrões de eficiência que dispensam a fúria do espetáculo. A guerra, hoje, sussurra em linguagem de máquina.A história da técnica militar sempre foi, também, a história da ciência. O arco e flecha, a pólvora, o radar, a bomba atômica: cada um desses saltos foi também uma revolução na forma como o conhecimento se fez instrumento. Mas há algo qualitativamente novo no que testemunhamos agora. A tecnologia de combate deixou de ser mera extensão da vontade humana para tornar-se infraestrutura da própria vontade. A cibernética, os algoritmos e a inteligência artificial não apenas nos ajudam a guerrear, elas começam a nos dizer por quê, como e contra quem guerrear. A guerra, cada vez mais, pensa. E essa forma de pensamento, fria, lógica, matemática, pode muito bem ser a primeira forma de inteligência verdadeiramente inumana a moldar o destino da humanidade.
A anatomia do novo campo de batalha
Se Clausewitz dizia que a guerra é a continuação da política por outros meios, talvez hoje devêssemos dizer que ela é a continuação da engenharia por meios automáticos. O campo de batalha contemporâneo não é mais delimitado por fronteiras geográficas, mas por sistemas de dados interconectados. A guerra não acontece apenas “em” algum lugar, ela acontece “entre” os fluxos: entre servidores, sensores, redes neurais e satélites. A topografia do conflito tornou-se invisível, desmaterializada, mas não menos letal.
Na Ucrânia, drones FPV com visão computacional atingem alvos a centenas de quilômetros com precisão quase cirúrgica, coordenados por inteligência artificial distribuída. O exército israelense, por sua vez, utiliza sistemas automatizados de targeting que calculam em segundos o grau de aceitabilidade de danos colaterais, delegando a decisão de matar a uma probabilidade estatística. No Sahel, algoritmos definem padrões de movimentação considerados “suspeitos” com base em dados opacos coletados por parceiros privados. Na Ásia, China e Taiwan engajam-se em uma guerra de sombra, onde o poder de dissuasão está cada vez mais ligado à superioridade em computação quântica, criptografia e guerra cibernética ofensiva.
Desativar centrais elétricas, corromper dados logísticos, sequestrar fluxos de informação, capturar subjetividades. A guerra deslocou-se do chão para a malha, e a malha é a totalidade do mundo. As batalhas contemporâneas se desenrolam dentro de um ecossistema global interconectado, onde cada ataque, por menor que seja, reverbera em múltiplas camadas do sistema, desestabilizando não apenas alvos físicos, mas a própria coerência informacional que sustenta o mundo funcional. A guerra, hoje, é uma perturbação em rede: como em sistemas caóticos, um único pulso pode desencadear colapsos em cascata.
Essa transformação, longe de ser apenas tecnológica, é também epistemológica. O inimigo não precisa mais ser visível. Basta que ele seja modelável em termos de dados. A lógica não é mais a da presença, mas a da inferência. Os alvos são calculados com base em padrões, não em certezas. E assim, como na brilhante obra de Orson Scott Card, “O Mundo do Exterminador”, a guerra torna-se cada vez mais parecida com uma simulação: uma guerra estatística, onde matar pode ser apenas a execução de um modelo preditivo, onde inclusive crianças podem participar.
É nesse novo campo que se inscreve o presente e o futuro dos conflitos armados. E é nesse terreno, onde realidade e virtualidade se imbricam, que a guerra encontra sua nova forma: uma guerra sem rosto, sem fronteira, sem pausa, mas com dados, mapas, inferências e ciclos de retroalimentação incessante. A guerra, agora, é um sistema de captação e processamento constante.
Cibernética e a guerra como sistema pensante
Em sua célebre genealogia da guerra científica, o pesquisador de estratégia militar Antoine Bousquet descreve a forma como os sistemas bélicos modernos passaram, ao longo dos séculos, por quatro grandes paradigmas: o da mecânica clássica, que via a guerra como um relógio de precisão; o da termodinâmica, que enxergava a guerra como uma máquina a vapor, impulsionada pela entropia; o da cibernética, onde o conflito é tratado como um computador, um sistema de controle e feedback; e, por fim, o atual paradigma onde a guerra se transforma numa rede, baseada em caos e complexidade, no qual a guerra se comporta como um organismo adaptativo, em permanente mutação.Se o campo de batalha já foi uma máquina previsível, hoje ele se tornou um sistema vivo, informacional e orgânico. A cibernética não apenas introduziu uma nova linguagem para pensar a guerra, ela fundou uma nova ontologia do conflito. A partir de Norbert Wiener, os militares passaram a entender que a guerra podia ser modelada como um sistema de entrada e saída de dados, regulado por feedback contínuo, capaz de se adaptar, reconfigurar e, sobretudo, aprender com seus próprios erros.Esse deslocamento inaugurou uma era em que o planejamento estratégico cede lugar à modulação dinâmica. Já não se busca o controle total, mas a governança da instabilidade. A vitória não depende mais da ocupação de terreno, mas da capacidade de manter o inimigo em permanente estado de desorganização. As guerras se tornaram iterativas, autorreguladas, programadas para evoluir em tempo real conforme as reações do oponente. É a guerra como um processo computacional, o ultraliberalismo levado à última consequência: até a morte é autorregulada.Os centros de comando militares tornaram-se “data centers”, centrais de processamento de dados. Os mapas de guerra agora se parecem com dashboards: matrizes de fluxo, painéis de calor, algoritmos preditivos, redes neurais e sociais. As contas de redes sociais operam como um console de monitoramento da guerra. O like, um tiro que ajuda a vencer a batalha. Atirem à vontade! Berram os influencers, os generais da batalha contemporânea. A decisão, antes vinculada à intuição e à experiência, agora passa por modelos estatísticos, simulações em tempo real, interfaces de vigilância automatizadas. O comandante é assessorado, ou substituído, por uma máquina que calcula cenários com uma frieza que nenhum humano poderia sustentar por muito tempo.Mas não é apenas o hardware da guerra que mudou. Sua lógica interna também foi alterada. Se antes a guerra era concebida como uma interrupção da ordem política, agora ela opera como extensão contínua da governança algorítmica. O campo de batalha tornou-se indistinguível da infraestrutura digital da própria sociedade. A guerra, portanto, não mais invade e ocupa. Ela reconfigura. Não destrói fisicamente, reconstrói os fluxos. A guerra cibernética é menos um evento do que uma forma de ambiente.
Algoritmos, cognição e controle da realidade
Nenhuma bala é mais silenciosa que uma ideia que se infiltra. Nenhum ataque é mais letal que aquele que reconfigura o real sem ser percebido. A guerra contemporânea descobriu que não basta ocupar territórios físicos: é preciso ocupar a mente. “O que os olhos não vêem, o coração não sente”, diz o ditado popular. E essa ocupação não se dá mais por propaganda grosseira ou censura explícita, mas por meio de algoritmos que modulam a atenção, fabricam senso comum e operam sobre os circuitos afetivos da população. A guerra se tornou, acima de tudo, uma disputa pela hegemonia cognitiva.Neste novo front, as armas são invisíveis. Um post, um vídeo curto, uma manchete enviesada, uma cascata de notificações, cada um desses elementos, aparentemente inócuos, pode ser parte de uma operação de guerra. Com a ascensão dos grandes modelos de linguagem, dos mecanismos de microtargeting e das tecnologias de simulação, como os deepfakes, possibilitou-se projetar realidades alternativas inteiras, alinhadas a interesses geopolíticos específicos. Cria-se o evento, constrói-se a emoção, instala-se o medo. A máquina cuida do resto.O inimigo não é mais o “outro” reconhecível, mas o “dado anômalo”. O alvo não é mais o corpo, mas a atenção. A luta desloca-se da pólvora para o pixel, da metralhadora para o câmera, da trincheira para o feed. É a guerra como disputa semântica, como arquitetura de percepção, como engenharia do verossímil. A batalha acontece no intervalo entre o que se vê e o que se crê, e é nesse intervalo que se decide o que será verdade.
Os algoritmos, treinados por milhões de interações humanas, aprendem não apenas a prever comportamentos, mas a induzi-los. A guerra se torna uma forma de curadoria da realidade. Os sistemas de poder já não precisam convencer: basta que filtrem o que aparece e o que desaparece. O que emerge como “opinião pública” pode ser apenas a sedimentação de milhares de manipulações imperceptíveis. O consentimento é programado, a revolta é antecipada, a distração é cultivada com ciência.
A guerra, assim, já não precisa ser declarada, ela pode ser sentida como ansiedade coletiva, como colapso da confiança, como esgotamento da linguagem. O objetivo não é apenas vencer: é desestabilizar permanentemente a capacidade de distinguir o real. A paz, nesse contexto, não é mais o fim da guerra, mas o sucesso na gestão silenciosa do conflito.
A ciência como infraestrutura da violência
O projeto científico, quando acoplado ao aparelho militar, torna-se um dispositivo de poder sem precedentes. Sob a lógica da guerra, a ciência deixa de ser apenas busca pelo saber e passa a operar como tecnologia de controle. O laboratório se funde ao centro de comando. A equação se torna vetor da morte. O cientista, figura outrora contemplativa, transforma-se em engenheiro de conflitos. Não por maldade, mas por estrutura.
Mas há aqui algo ainda mais profundo: ao tornar-se a linguagem por meio da qual a guerra se organiza, a ciência passa a moldar também os limites do pensável. Não se trata apenas de fazer a guerra com ciência, mas de pensar a guerra cientificamente e, ao fazê-lo, naturalizar sua presença. A violência torna-se uma equação. A decisão de matar, uma métrica de eficiência. O conflito, um problema de otimização.
Essa é, talvez, a dimensão mais perversa do novo paradigma: não é preciso mais ideologia para guerrear. Basta informação. O risco, então, já não é apenas técnico, é ontológico. Pois quando o mundo é reduzido a dados, o outro torna-se ruído. Quando a vida é modelada por estatísticas, o sofrimento torna-se uma exceção tratável, uma margem de erro. A ciência, assim, pode matar sem ódio e, portanto, sem culpa.
Ainda assim, não se trata de renunciar à ciência, nem de demonizar seu poder. O que está em jogo é disputá-la. Reinscrevê-la no horizonte da humanidade e do comum. Reconhecer que, assim como serve à destruição, a ciência pode servir à emancipação. Mas para isso, é preciso arrancá-la da lógica instrumental da guerra e reivindicá-la na ética da vida.
A dialética da técnica: entre o comum e a catástrofe
Toda tecnologia carrega em si uma ambiguidade fundamental. É instrumento e possibilidade. É ferramenta e horizonte. A mesma rede que vigia pode também conectar. O mesmo algoritmo que direciona um míssil pode prever uma enchente. O mesmo sistema que cataloga vulnerabilidades pode curar. A técnica não tem moral própria, ela adquire sentido nos usos que lhe damos, nos sistemas que a organizam, nos projetos históricos que a enredam. Nas configurações que a humanidade atribui.
A crítica radical à tecnociência belicista não pode, portanto, recair em nostalgia ou tecnofobia. Seria um erro infantil condenar a IA, a cibernética ou a computação em bloco. A verdadeira tarefa crítica é outra: disputar os sentidos. Reorientar a técnica em favor do comum. Rasgar sua captura pelos imperativos do capital, da vigilância e da guerra, e devolvê-la ao mundo como promessa de cooperação, cuidado e justiça.
Não faltam exemplos de usos emancipadores. Sistemas algorítmicos para mapeamento de crises humanitárias, plataformas de dados abertos para vigilância ambiental, robótica assistiva, modelos preditivos voltados à saúde pública, inteligência artificial aplicada à educação e à produção do conhecimento coletivo. A pergunta que se impõe, então, é: por que deixamos que a vanguarda tecnológica se dedique majoritariamente a matar com mais precisão?
A resposta está na estrutura: quem financia, quem regula, quem define as prioridades da pesquisa. A ciência não é neutra porque seu chão material é político. Enquanto a guerra for mais lucrativa que a paz, o engenheiro continuará sendo convocado a projetar o drone, não o poço artesiano. Enquanto os algoritmos servirem à extração de dados e à modulação do consumo, continuarão servindo também à guerra da atenção e à manipulação cognitiva. Não há técnica neutra fora do campo social que a engendra.
Mas a história ainda é aberta. A técnica pode ser retomada como instrumento de reconstrução do ser humano, de rearticulação do vínculo social, de superação do medo. Isso exige uma reapropriação coletiva da infraestrutura digital, uma pedagogia crítica das tecnologias, uma radical democratização da ciência. Exige que a guerra deixe de ser o vetor natural da invenção, e que a criação reencontre o cuidado.
A catástrofe não é destino. É uma tendência histórica que pode ser revertida. Mas para isso, é preciso primeiro nomeá-la. E depois, reorganizar o campo de batalha, não contra os outros, mas contra as estruturas que nos colocam uns contra os outros. Nessa luta, o conhecimento é arma. Mas também é cura.
O silêncio da máquina
No início, a guerra era um grito. Depois, um tambor. Um canhão. Um sinal de rádio. Hoje, é um micro-impulso eletrônico. Um código silencioso que atravessa fibras óticas e decide destinos sem que ninguém ouça. O mais perturbador da nova guerra talvez não seja sua violência, mas seu silêncio. Ela não exige mais discursos inflamados nem marchas retumbantes. Basta que tudo funcione exatamente como planejado.
O campo de batalha, agora, é um sistema operacional. E como todo sistema bem projetado, ele se esconde sob a aparência da normalidade. Um sistema que continua a operar mesmo quando todos dormem. Um sistema que mata com eficiência, mas sem fúria. Que destrói sem fanatismo. Que decide sem hesitação. E que, talvez por isso, seja ainda mais perigoso do que qualquer tirania.
Não há tanques nas ruas quando a guerra é travada em redes. Não há corpos espalhados quando o alvo é a subjetividade. Não há bombas quando a destruição vem pela corrosão da confiança, da linguagem, do real. A guerra se tornou uma forma de organização da vida, e sua vitória se mede pela sua capacidade de produzir instabilidade, de manter a sociedade em conflito silencioso permanente, não pela capitulação do inimigo.
Mas nem mesmo as máquinas escapam da história. Toda técnica, por mais sofisticada, carrega o embrião de sua contestação. Todo sistema pode ser reprogramado. A luta, portanto, ainda é possível, mas exige que escutemos novamente os sons da guerra. E que, mesmo em meio ao silêncio das máquinas, sejamos capazes de imaginar outro futuro.
Pois quando a guerra aprende a pensar, talvez a tarefa mais urgente da humanidade seja aprender a sentir e, com isso, reaprender a resistir.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: