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Reynaldo José Aragon Gonçalves

Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC) e do INCT em Disputas e Soberania Informacional.

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O lobby que quer calar a regulação da IA

O Congresso dos EUA abriu caminho para um apagão jurídico que favorece apenas uma coisa: o lucro sem freio

Ilustração com letras e mão metálica - 23/06/2023 (Foto: Reuters/Dado Ruvic)

A Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou, de forma quase despercebida pelo debate público, uma emenda que impõe uma moratória de dez anos sobre qualquer lei estadual que tente regular a inteligência artificial e os chamados sistemas automatizados de decisão. A medida foi incluída no pacote orçamentário batizado de One Big Beautiful Bill e, se aprovada também pelo Senado, bloqueará por uma década a possibilidade de Estados como Califórnia, Illinois e Nova York legislarem sobre temas como reconhecimento facial, vieses algorítmicos, deepfakes, discriminação em processos seletivos e transparência de dados. Sob o pretexto de evitar um “emaranhado regulatório” que prejudicaria a competitividade dos EUA frente à China, o que se tenta, na prática, é blindar as Big Techs contra qualquer forma de controle local — impedindo que legislações já em vigor continuem protegendo cidadãos comuns contra abusos cada vez mais sofisticados.

Onde isso se insere.

A proposta surge em um momento crítico. A inteligência artificial deixou de ser uma promessa futura e já opera silenciosamente na base de decisões que afetam vidas reais: contratações, concessões de crédito, sentenças judiciais, policiamento preditivo, vigilância em massa. Em vez de debater como proteger a população desses riscos, o Congresso americano, sob forte influência do lobby tecnológico, busca desarmar preventivamente qualquer esforço regulatório local. A justificativa é a de sempre, garantir harmonização legal e evitar que empresas enfrentem regras diferentes em cada estado. Na prática, trata-se de uma reação coordenada ao avanço de legislações estaduais que, nos últimos anos, começaram a impor limites reais ao poder algorítmico. O setor de tecnologia responde como sempre respondeu, tentando antecipar-se às regras, escrevendo-as ele próprio ou simplesmente impedindo que existam.

Porque isso é um problema.

A moratória proposta não é apenas uma jogada técnica ou um detalhe burocrático. Ela representa uma tentativa explícita de impedir qualquer reação democrática diante dos abusos crescentes das plataformas digitais. Se aprovada, enterrará por dez anos leis locais que já protegiam milhões de pessoas contra usos indevidos da inteligência artificial. O impacto é direto. Estados não poderão mais exigir que empresas revelem como seus algoritmos funcionam, nem impor limites ao reconhecimento facial em espaços públicos, nem responsabilizar sistemas automatizados por discriminação em processos seletivos ou concessão de crédito. A proposta cria, na prática, uma zona franca algorítmica, onde as grandes empresas de tecnologia podem operar sem prestar contas a ninguém. Mais do que evitar a fragmentação legal, o que se quer é garantir um mercado unificado sob as regras do Vale do Silício, onde a ausência de regulação se confunde com eficiência. Nesse cenário, o lucro vem antes da justiça, e a velocidade da inovação atropela qualquer princípio democrático de precaução.

O impacto internacional e a ameaça ao Brasil.

O que acontece no Congresso dos Estados Unidos não se restringe às suas fronteiras. A moratória contra leis estaduais de inteligência artificial cria um precedente perigoso que pode ser usado como argumento por lobistas e empresas de tecnologia em países do Sul Global. No Brasil, onde o debate sobre regulação da IA ainda é recente e fragmentado, esse tipo de iniciativa serve como escudo para quem defende o atraso normativo e a desproteção estrutural. A retórica já está pronta. Se os Estados Unidos não estão regulando, por que o Brasil deveria?

Esse discurso ignora que o vácuo regulatório só favorece um lado. Países em desenvolvimento se tornam ambientes perfeitos para experimentação tecnológica sem salvaguardas. A ausência de normas claras transforma populações inteiras em laboratórios de modulação de comportamento, coleta de dados sensíveis e decisões automatizadas sem transparência. É uma nova forma de colonialismo digital, na qual empresas extraem valor cognitivo e informacional sem qualquer contrapartida social.

O Brasil já sente os efeitos disso. As plataformas digitais dominam o debate público, moldam eleições, impõem regras ao jornalismo, influenciam decisões econômicas e políticas e operam acima de qualquer fiscalização efetiva. Sem regulação própria, seguimos exportando soberania e importando algoritmos que não compreendemos nem controlamos. A moratória americana, se confirmada, funcionará como um bloqueio ideológico e jurídico contra qualquer tentativa brasileira de exercer controle democrático sobre tecnologias que estão redesenhando as formas de poder e dominação no século XXI.

As leis que os Estados Unidos querem silenciar.

A proposta de moratória não é apenas uma medida preventiva. Ela mira diretamente legislações que já existem e que vinham funcionando como barreiras importantes contra os abusos da inteligência artificial. Leis estaduais estavam criando jurisprudência, protegendo populações locais e servindo de inspiração para outros países. A moratória, ao congelar por dez anos qualquer avanço nesse campo, tenta enterrar esse processo antes que ele se consolide.

O caso de Illinois é emblemático. O estado aprovou o Biometric Information Privacy Act, que obriga empresas a obter consentimento explícito para coleta de dados biométricos como impressões digitais e reconhecimento facial. Essa lei resultou em ações judiciais bilionárias contra gigantes como o Facebook, que violaram sistematicamente a privacidade dos usuários. Já na Califórnia, leis exigem que empresas revelem os critérios usados por algoritmos em decisões sobre crédito, emprego e habitação. Nova York, por sua vez, aprovou uma norma que obriga empresas a fazer auditorias independentes de ferramentas de inteligência artificial utilizadas em processos de recrutamento.

Essas legislações têm algo em comum. Foram criadas em resposta a problemas reais, com base em evidências e pressão popular. São instrumentos concretos de defesa do cidadão diante de sistemas opacos que definem quem pode estudar, trabalhar, morar ou se expressar. Ao tentar eliminá-las com um movimento legislativo silencioso e disfarçado de pragmatismo técnico, o Congresso americano não protege o consumidor nem o país. Protege apenas os interesses de um setor que há muito opera sem escrutínio e que agora deseja impedir, preventivamente, qualquer forma de responsabilização.

Conclusão.

O debate sobre inteligência artificial não pode ser sequestrado por argumentos técnicos nem decidido a portas fechadas por quem mais tem a lucrar com a ausência de regras. A moratória proposta nos Estados Unidos é uma tentativa de institucionalizar o atraso, blindar corporações contra o controle público e estabelecer uma jurisprudência global da desregulação. O impacto vai muito além das fronteiras americanas. Afeta diretamente o Sul Global, onde empresas testam tecnologias de vigilância, modulação de comportamento e exploração algorítmica em ambientes políticos frágeis e juridicamente desprotegidos.

No Brasil, o alerta é urgente. Não se trata apenas de acompanhar o que ocorre no exterior, mas de reconhecer que o país está inserido em uma disputa global por soberania informacional. Aceitar o vácuo regulatório como modelo é abrir mão do direito de proteger nossa população, nossas instituições e nosso futuro. A inteligência artificial não é neutra. A ausência de regulação também não é. Quem define os limites da tecnologia define, em última instância, os contornos da democracia. E ninguém deveria ter o poder de interditar esse debate por uma década.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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