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Mãe acusa Estado por morte de jovem absolvida após seis anos presa: ‘foi abandonada’

Damaris Vitória, inocentada pelo júri em agosto, morreu dois meses depois de ser libertada; família diz que negligência agravou câncer

Damaris Vitória Kremer da Rosa morreu aos 26 anos (Foto: Reprodução)

247 - O último abraço entre Claudete Kremer e a filha, Damaris Vitória, 26, veio acompanhado de um pressentimento difícil de explicar. A jovem, recém-absolvida após passar seis anos presa preventivamente, estava fraca, debilitada e sem resposta ao tratamento contra um câncer de colo do útero já em estágio avançado. Dois meses depois de o júri reconhecer sua inocência, ela morreu. As informações foram publicadas originalmente pelo UOL, que entrevistou a mãe e ouviu autoridades e órgãos envolvidos no caso.Claudete ainda tenta entender a sequência de falhas, atrasos e negativas que marcaram a prisão da filha desde 2019. “Na verdade, o meu coração, a minha mente, ainda não se despediram dela. Me parece que ela vai entrar pela porta a qualquer momento”, afirmou. Para a mãe, a morte prematura foi consequência direta da negligência do Estado: “Ela foi abandonada”.

Prisões, acusações frágeis e anos de espera
O caso de Damaris começou em novembro de 2018, quando Daniel Gomes Soveral foi encontrado morto em Salto do Jacuí (RS), com o carro incendiado. A investigação concluiu que o jovem teria sido atraído por ela até o local da execução, supostamente a mando de dois homens — Henrique Kauê Gollmann e Wellington Pereira Viana — apontados como autores dos tiros e da queima do veículo.Mesmo negando participação desde o início, Damaris teve a prisão preventiva decretada em agosto de 2019. Passou por diversas unidades prisionais do Rio Grande do Sul, sem que novas provas fossem produzidas. A mãe recorda a rotina de incerteza: viagens longas, dificuldades nas visitas e mudanças de presídio sem aviso. “Ela sentava no meu colo, pedia carinho, dizia que não aguentava mais.”As detentas e familiares de outras internas também demonstravam preocupação com o estado de saúde dela. Em cartas, alertavam Claudete sobre a piora de Damaris: “Faz alguma coisa, porque a tua filha vai morrer aqui dentro”, escreviam.]

Negativas sucessivas de atendimento e prisão domiciliar tardia
No fim de 2024, os primeiros sintomas graves — dores, sangramentos e perda de peso — chamaram atenção dentro do presídio feminino de Rio Pardo. A defesa e a família solicitaram atendimento especializado e a conversão da prisão em domiciliar, mas os pedidos foram negados repetidas vezes.Somente em março de 2025, já com o diagnóstico confirmado de câncer de colo do útero, a Justiça autorizou a transferência para a casa da mãe, em Balneário Arroio do Silva (SC), com uso de tornozeleira eletrônica. Segundo Claudete, a filha “praticamente não conseguia mais ficar em pé”.

Absolvição confirmada pelo júri
Em 13 de agosto de 2025, em Cachoeira do Sul, o júri popular absolveu Damaris por unanimidade de todas as acusações de homicídio qualificado e incêndio. A decisão confirmou o que a família defendia há seis anos: não havia provas de que ela tivesse participado do crime.A celebração, porém, foi contida. Mãe e filha foram a um restaurante simples, onde mal conseguiu comer. “A alegria da absolvição era só dentro dos nossos corações”, diz Claudete.

Morte após semanas de agravamento
Pouco mais de dois meses depois, durante o retorno de uma consulta médica, Damaris passou mal e foi internada. Morreu em 26 de outubro de 2025.Claudete descreve os últimos instantes: “Eu disse: ‘Filha, a mãe deixa você ir. Você está sofrendo demais. Pode ir, vai com Jesus, vai descansar.’ Ela abriu os olhos bem grandes, olhou nos meus, deu um suspiro de alívio e partiu.”O namorado da jovem, Allan Silva, relatou que pediu Damaris em casamento instantes antes da sedação. “Te pedi um beijo e você retribuiu com o mesmo entusiasmo do primeiro”, escreveu em uma publicação.A jovem desejava cursar Biomedicina, viajar pela Europa e reconstruir a vida após anos presa. “Ela tinha muitos planos. Não deu tempo”, lamenta a mãe.

Posicionamento da defesa, Tribunal de Justiça e Ministério Público
A advogada Rebeca Canabarro, que representa a família, afirmou em nota que o caso expõe “a face mais dolorosa da morosidade da Justiça” e a incapacidade do sistema prisional em garantir o mínimo direito à saúde. A família irá acionar judicialmente o Estado do Rio Grande do Sul.O Tribunal de Justiça do RS, por sua vez, declarou que o processo “tramitou regularmente” e que a prisão preventiva foi reavaliada periodicamente, sempre mantida devido a indícios de participação no crime. Segundo o TJRS, a liberdade por motivo de saúde foi concedida “assim que houve comprovação médica formal”.O Ministério Público afirmou que, na primeira notificação sobre a doença, não havia documentação suficiente, e que a liberdade foi autorizada quando o laudo médico foi anexado.Já a Polícia Penal negou falhas e comunicou que Damaris recebeu mais de 300 atendimentos técnicos, incluindo consultas médicas, psicológicas, enfermagem e internações hospitalares. O órgão disse ter garantido todos os encaminhamentos necessários via SUS.

“Nós iremos lutar por justiça”
Hoje, Claudete vive entre o luto e a busca por reparação. A casa ainda guarda sinais de Damaris — inclusive a cachorrinha Jade, que a filha adorava. “Peguei o celular para filmar e mandar para ela. Parei na hora. Lembrei que eu não tinha mais para quem enviar.”A mãe promete transformar a dor em mobilização: “Nós iremos lutar por justiça. Não somente pela minha Damaris, mas por todas as Damaris que sofrem injustiças, como a minha sofreu.”Enquanto tenta reorganizar a própria vida, ela ainda sente a presença da filha nos pequenos gestos. “Meu coração ainda não se despediu dela.”