YouTube como arma digital: propaganda israelense e a digitalização da política
A aliança entre plataformas privadas e projetos políticos autoritários é hoje uma realidade global
Nos últimos meses, tornou-se quase inevitável assistir a vídeos no YouTube a partir da Europa sem se deparar com inserções patrocinadas pelo governo de Israel. Os vídeos publicitários aparecem dentro do conteúdo — não antes, como anúncios tradicionais. São peças de cerca de 30 segundos, produzidas pelo Ministério das Relações Exteriores de Israel, narradas em alemão, francês, inglês ou italiano.
Confesso que, a princípio, eu evitava esses vídeos. Não por falta de interesse, mas por cansaço mesmo: cada vez que abria o YouTube, lá estava uma propaganda política de Israel. Minha reação inicial foi pular, ignorar, desviar o olhar, aliada ao descontentamento de ver a plataforma se transformar num palco de guerra fria digital. Mas a frequência me intrigou. Estavam em todo lugar. E foi então que resolvi assistir com atenção. Assisti a algumas das peças publicitárias do Ministério das Relações Exteriores de Israel e percebi que não se tratava de anúncios soltos, mas de uma campanha coordenada, planejada e muito bem financiada.
Um dos vídeos mais recentes da campanha, disponível no canal oficial do governo israelense tem como título: “Israel mira nas ameaças militares; o regime iraniano mira nos civis” (tradução livre). Logo nos primeiros segundos, a peça afirma que o Irã lança bombas sobre civis, famílias e crianças, enquanto Israel ataca apenas alvos militares com precisão. A intenção é clara: apresentar Israel como racional e legítimo, e o Irã como bárbaro e criminoso.
Esse padrão já estava presente na fase anterior da campanha, voltada ao conflito com Gaza, sempre iniciada com a frase: “Hamas é terrorismo.” Agora, o foco se desloca para o Irã, mas a lógica permanece: justificar ataques militares com base em uma retórica de autodefesa moralmente superior. Ao final, o vídeo encerra com a mensagem: “Israel está fazendo o que deve ser feito”.
Outros vídeos tentam pintar Israel como humanitário, alegando que envia ajuda aos civis afetados. Contudo, é amplamente documentado que Israel impõe bloqueios severos à entrada de alimentos, remédios e combustível em Gaza. Segundo comunicado da OMS de 12 de maio de 2025, “a população de Gaza está passando fome, adoecendo e morrendo enquanto o bloqueio de ajuda continua”. O que chega à população são migalhas calculadas, enquanto a propaganda encena generosidade.
O mais preocupante é que essa mensagem é continuamente adaptada. Conforme os alvos geopolíticos mudam, os vídeos também mudam. Quando o foco era Gaza, o inimigo era o Hamas. Agora, com o Irã em destaque, a narrativa muda para ameaças nucleares e ataques civis. A propaganda é moldada em tempo real para legitimar as ações do governo israelense, sempre com aparência de neutralidade informativa.
Os vídeos são quase diários e circulam livremente no YouTube. Embora os comentários estejam abertos, não há praticamente nenhuma interação, mesmo em vídeos com milhares de visualizações. Isso sugere controle rígido da visibilidade ou um desinteresse forçado pela ausência de espaço real para debate.
A escolha do público europeu também é estratégica. O governo alemão, por exemplo, mantém um apoio incondicional a Israel, mesmo diante de denúncias internacionais de violações de direitos humanos. Isso torna o ambiente ainda mais receptivo a esse tipo de propaganda, que se disfarça de informação neutra, mas atua como doutrinação digital.
Tudo isso revela um problema maior: as Big Techs deixaram de ser neutras. O YouTube, ao aceitar e monetizar esse tipo de conteúdo, torna-se cúmplice na disputa geopolítica. Plataformas digitais não apenas hospedam, elas promovem, priorizam e impulsionam narrativas com base em interesses econômicos e políticos.
A aliança entre plataformas e governos não se restringe ao Oriente Médio - No Brasil, a jornalista Sara Góes publicou no Brasil247 um artigo revelador: “BigTechs e Bolsonaro armam exército digital para 2026”, mostrando como empresas como Google, Meta e CapCut participaram do encontro do PL em Fortaleza, oferecendo oficinas e treinamentos para estruturar um exército digital bolsonarista. A aliança entre plataformas privadas e projetos políticos autoritários é hoje uma realidade global.
O elo entre Israel na Europa e Bolsonaro no Brasil está na forma como plataformas digitais são usadas: não para ampliar o debate, mas para controlá-lo. Quando um governo pode comprar espaço para dizer que fez o que precisava ser feito, e um partido pode treinar suas bases com apoio técnico de multinacionais, a ideia de democracia informada se dissolve. O algoritmo, travestido de neutralidade, virou engrenagem da política. E o espectador acredita estar apenas vendo vídeos, mas é levado para dentro de uma guerra de narrativas invisível, silenciosa, fragmentada e tão perigosa quanto qualquer arma real.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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