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Washington Araújo

Jornalista, escritor e professor. Mestre em Cinema e psicanalista. Pesquisador de IA e redes sociais. Apresenta o podcast 1844, Spotify.

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Viver é, sobretudo, aprender a dizer adeus

A vida nos exige muitas despedidas — mas nenhuma tão cruel quanto assistir à morte do que nos fazia inteiros, enquanto ainda respiramos.

Praia de Tamandaré, na APA Costa dos Corais (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

A vida, quando olhada com calma, é um calendário recheado de despedidas. Uma sequência de adeuses que se entrelaçam como contas invisíveis, formando a corrente secreta de nossa existência. 

Somos feitos tanto de chegadas quanto de partidas, mas é nas despedidas que mais nos reconhecemos, porque nelas se revela a fragilidade e a grandeza de ser humano.

O primeiro adeus nos é imposto antes mesmo de termos memória. É a dolorosa ruptura com o ventre materno. Ali, no escuro amniótico, tínhamos tudo: alimento, calor, batida constante de um coração a embalar-nos. E, de repente, somos arrancados dessa perfeição e lançados ao clarão, ao frio, ao choro. A primeira lição da vida é dizer adeus ao lugar mais seguro que jamais conheceremos.

Crescemos e aprendemos a sorrir, a brincar, a confiar. Os primeiros amigos de infância são cúmplices da inocência: dividimos balas, bolinhas de gude, sonhos improvisados nas calçadas. Mas o tempo se move depressa, e basta uma mudança de bairro, de cidade ou de país para perdê-los. Um dia damos conta de que aqueles risos já não ecoam na mesma esquina. Essa despedida precoce nos ensina que a amizade, por mais doce, não está imune ao destino.

E então chega o amor, em sua versão inaugural. O primeiro amor é uma revolução de sentidos: o frio na barriga, a ansiedade do encontro, o beijo que parece conter todo o universo. Mas cedo ou tarde a vida impõe outro adeus: esse amor, que julgávamos eterno, se desfaz em silêncio, deixando apenas a lembrança de como era amar pela primeira vez. É uma despedida cruel porque encerra não apenas uma relação, mas a própria inocência de acreditar que bastava amar para ser feliz.

Com o tempo, atravessamos os portões da juventude e seguimos para os bancos universitários. Ali, passamos anos sentados entre provas, livros e sonhos. Aquele espaço se torna extensão de nós mesmos. Mas um dia, na formatura, vestimos beca e chapéu para um último adeus. É a despedida da escola que nos acompanhou desde a infância. Encerramos um ciclo de aprendizagem formal, deixando para trás corredores que já não nos pertencem.

Logo a vida nos apresenta outra estação: escolhemos alguém para compartilhar o destino. Casamos. Construímos uma nova família. Mas se casar é também despedir-se: da vida de solteiro, da liberdade individual, da casa dos pais que nos acolheu por tanto tempo. Nesse momento, atravessamos o limiar que separa a juventude da maturidade, levando conosco um adeus silencioso às paredes onde crescemos.

Chegam os filhos, e com eles outro corte profundo. Já não nos pertencemos inteiramente. O que antes eram preocupações pessoais agora se dissolve no cuidado constante com esse ser frágil que exige tudo de nós. Dormimos pouco, mas sonhamos muito. Cada choro noturno é um lembrete de que nos despedimos definitivamente de uma vida voltada apenas para nós, para abrir espaço ao amor mais radical que existe: aquele que nos entrega a outro ser sem esperar retorno.

E há despedidas que doem sem aviso. 

O dia em que perdemos o pai é uma quebra de chão. É como se a coluna que sustentava parte do nosso mundo desabasse. Fica o silêncio da cadeira vazia, o conselho que já não ouviremos, a mão firme que não nos guiará mais. É um adeus que nos arranca a infância remanescente, mesmo quando já estamos adultos.

Mais tarde, quando chega a vez da mãe, a despedida é ainda mais dolorosa. É como se a vida nos tirasse o último porto seguro. Sem o olhar dela, o mundo parece mais frio, mais deserto. É um adeus que fere fundo porque, ao perdermos a mãe, perdemos também a última testemunha da nossa origem. É a despedida definitiva do abrigo emocional, a mais dolorosa de todas até que a morte nos reclame.

O tempo, com sua cadência implacável, nos obriga a outras renúncias: despedimo-nos da juventude quando o corpo já não acompanha o espírito; despedimo-nos da saúde quando as forças se retraem; despedimo-nos dos amigos que partem, um a um, levando consigo partes de nossa história. Até mesmo do espelho nos despedimos, quando ele nos devolve um rosto que já não reconhecemos como nosso.

E assim seguimos, de despedida em despedida, até o último instante — aquele em que fechamos os olhos para sempre. Mas talvez a morte não seja o fim, apenas a última metamorfose. Talvez seja o maior de todos os adeuses, que se abre, paradoxalmente, para um reencontro.

Miguel Torga, com a lucidez de quem sabia olhar fundo, escreveu: “toda a vida humana é uma breve ou demorada despedida, que começa logo à nascença e acaba aparentemente no dia da morte.” Ele tinha razão. Viver é atravessar sucessivas perdas, e é nesse movimento de desapego que reside a nossa grandeza.

E recordo isso porque, ao revisitar a vida e a obra do grande poeta lusitano Miguel Torga — esse homem de raízes e horizontes, que em 1993 recebeu o Prémio Montaigne e transformou suas próprias despedidas em matéria literária — compreendi melhor que viver não é apenas chegar, conquistar, permanecer. 

Viver é, sobretudo, aprender a dizer adeus.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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