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Miguel Paiva

Miguel Paiva é chargista e jornalista, criador de vários personagens e hoje faz parte do coletivo Jornalistas Pela Democracia

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Veríssimo, de verdade

Fico com pena que ele não vai poder assistir ao julgamento do golpista maior deste país e que ele tanto criticou em vida. A democracia deve a você e nós também

Luis Fernando Veríssimo (Foto: Unesp/Divulgação)

247 - Acho que o Luís Fernando falava pelo que escrevia e pelo que tocava. Apesar de estar vendo agora ele falar muito com o Pedro Bial numa entrevista, ele falava pouco. Convivi com ele muitos anos e se não fosse a Lucia, sua mulher e tradutora simultânea, teríamos nos comunicado pouco. Trabalhei com ele muitos anos e me lembro da Lúcia me mandando um fax com o texto do Ed Mort e depois ao telefone, confirmando o que estaria escrito. O fax na época era muito precário. Hoje o fax nem é lembrado. Fizemos juntos o Ed Mort, ele os textos e eu os desenhos durante 10 anos. Foram milhares de tiras e 5 livros publicados pela L&PM. 

Além disso Veríssimo me destinou a Velinha de Taubaté e eu como seu cuidador me encarreguei dos seus esquetes para o Jornal de Vanguarda na TV Bandeirantes com Fernando Barbosa Lima que abençoou o casamento. Frequentei várias vezes a cama de hospede e a mesa de Luís Fernando e Lúcia em Porto Alegre. Minha família ser de lá me ajudou a inventar motivos para ir ao sul. Dona Mafalda, mãe de Luís Fernando era minha companhia de papos ao fim da tarde. Saboreando um bom uísque conversávamos. Um dia ela me mostrou um armário cheio de perfumes e sabonetes que ela ganhava nos seus aniversários. Sabendo disso antes passei a levar só uísque. Era uma bela contadora de casos. 

À mesa Luís Fernando falava pouco, mas nos ensaios de sua banda no quintal dos fundos da casa ensaiava sua banda e não economizava notas musicais do seu sax. Luís adorava jazz e romances policiais americanos. Daí, certamente surgiu o Ed Mort que me pegou ainda só nas crônicas e eu criei a imagem do detetive à semelhança do texto maravilhoso que Veríssimo escrevia. Aquela imagem permaneceu durante anos. Publicamos aqui, na Itália e na Espanha creio eu. Digo sempre que Ziraldo me ensinou a desenhar e Luís Fernando a fazer humor. Sua capacidade de síntese (Vodka? Perguntpu ela. Vodko, respondi, vide ilustração) era única. Sua sofisticação aliada ao enorme sucesso popular provava que o humor podia ser fino e politicamente correto. Aprendi tudo isso com ele e sinto muita falta das noites em que dormia no seu escritório e que folheava aqueles livros todos da estante. Ir a Porto Alegre para visitar ou trabalhar com Luís Fernando era sempre um bom pretexto para chegar na cidade que tanto amo. Dava uma qualidade à cidade que me enchia de orgulho ser amigo e parceiro dele. 

Lembrava também da primeira vez que encontrei com ele. Fui com o Zé Rodrix num fevereiro de calor insuportável e conversamos sobre a adaptação para musical da peça O Analista de Bagé. Falamos, falamos, falamos, ele ouviu e disse tudo bem. Foi o inicio de uma amizade que durou muito tempo e que viu de tudo, até eu tocando atabaque na primeira apresentação da Muda Brasil Tancredo Jazz Band no Salão de Piracicaba junto com os irmãos Caruso, Aroeira e outros. 

Veríssimo escrevia, desenhava, tocava e pensava de maneira muito correta, sempre. Fico com pena que ele não vai poder assistir ao julgamento do golpista maior deste país e que ele tanto criticou em vida. A democracia deve a você e nós também. Um beijo e vá em paz.

Miguel Paiva-Artigo Veríssimo-Vodka
Miguel Paiva-Artigo Veríssimo-Vodka(Photo: Miguel Paiva)Miguel Paiva

 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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