Troque seu Reborn por uma criança pobre
Hoje, o melhor modo de “adotar” uma criança em situação de pobreza extrema é fazer isso dentro da sua própria família biológica
Na década de 1990, o Tamagotchi se tornou um fenômeno entre crianças e adolescentes. Era um brinquedo eletrônico, uma espécie de “bichinho virtual” que precisava ser cuidado. O brinquedo consistia num dispositivo eletrônico em forma de ovo com uma pequena tela onde vivia um ser virtual. O “jogador/cuidador” precisava tratar desse “bichinho” desde o nascimento, alimentando-o, limpando-o, brincando e tratando dele quando ficava “doente”. Se abandonado ou negligenciado, ele “morria”.
As bonecas Reborn são um Tamagotchi de silicone, mais elaborado e com um maior apelo emocional, pela similaridade com a aparência humana, mas, fundamentalmente, envolve o mesmo tipo de transferência de afeto para um ser simbólico, com a diferença do fenômeno atual envolver adultos, e ter contorno mais patéticos.
O mercado de brinquedos obviamente sabe que há um público consumidor disposto a cuidar de seres que não existem, se esses forem apresentados de forma emocionalmente convincente, explorando o desejo humano de se sentir necessário.
Em tempos de hiperconectividade, superficialidade e de “relações líquidas”, cuidar de algo que precisa de você, que não lhe julga e que não vai lhe abandonar, pode ser reconfortante. Embora excêntrico e bizarro, o apego a um objeto assim poder ser explicado em função desse tipo de carência.
Os fabricantes exploram essa necessidade de conexão, responsabilidade e afeto, dentro de um ambiente “controlável”, no qual alguém tenta lidar com seu próprio vazio e solidão através de uma simulação psicológica. Diferente de um bebê real, uma boneca Reborn não demanda cuidados constantes nem oferece riscos, o que gera uma sensação de controle e previsibilidade, ao parecer uma alternativa emocionalmente mais "segura".
O fenômeno vem crescendo desde o início dos anos 2000, sobretudo com a popularização da internet. Os modelos são cada vez mais realistas e feitos artesanalmente, imitando com grande fidelidade a aparência de bebês humanos.
As bonecas mais elaboradas podem chegar a milhares de reais e costumam ser tratadas pelos seus compradores como se fossem crianças reais, sendo alimentadas, vestidas, levadas a passeios, entre outras atividades, o que alimenta um nicho de mercado caro e sofisticado. Os colecionadores desses itens movimentam uma indústria multimilionária que envolve desde bonecas artesanais até acessórios, roupas e móveis customizados.
O debate em torno do tema se avolumou quando alguns donos de bonecas Reborn começaram a tentar “batizá-las” em suas respectivas religiões e até exigir atendimento médico análogo ao humano para os objetos de seu afeto.
Numa época de francas bizarrices, quando alguns indivíduos se identificam como “therians”, renunciando até mesmo a sua identidade humana, cultuar uma boneca como se fosse um ser vivo não parece ser tão grave.
Talvez os dois fenômenos tenham uma similaridade: a falta de empatia com a humanidade. Dizer-se um “não-humano” ou ter como objeto de afeto um fragmento de silicone, é uma renúncia à empatia e a solidariedade, e expressa não apenas uma fantasia ou desejo incomum, mas também uma profunda fratura na relação com a humanidade, o que é uma forma de renúncia simbólica à experiência humana compartilhada.
Escolher o silêncio do inanimado ou a fantasia do não-humano é uma negação da solidariedade, pois ser solidário exige se reconhecer como parte do mesmo drama humano que se tenta evitar.
Em vez de canalizar cuidados, tempo e dinheiro para bonecas hiper-realistas, que apenas simulam bebês com impressionante realismo, por que não direcionar esse mesmo afeto e atenção para crianças reais, que vivem em abandono ou em extrema carência?
Estamos vivendo um tempo em que se mimetizam comportamentos animais e “humanizam” bonecas, pets e inteligências artificiais, ao mesmo tempo em que desumanizam crianças pobres, moradores de rua e pessoas em sofrimento real.
Mesmo o clipe politicamente incorreto da canção “Rock da Cachorra”, de Eduardo Dussek, não a torna anacrônica, pois toca num tema ainda atual. Há crianças necessitadas de atenção estatal e social porque, antes delas, os seus pais também foram economicamente abandonados.
Hoje, o melhor modo de “adotar” uma criança em situação de pobreza extrema é fazer isso dentro da sua própria família biológica. Ajudar toda a família, sem separar crianças de seus pais, é uma prática mais humana, sensível e descente, pois preserva o vínculo familiar original e promove a sua continuidade. Mas esse seria um ato posterior a decisão de cuidar de seres humanos reais, em vez de um pedaço inanimado de vinil macio e silicone de platina.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.