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Alexandre Aragão de Albuquerque

Escritor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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Tempos coloniais

Da capela da casa-grande aos templos neopentecostais, a religião segue como pilar de poder e controle no Brasil

Tempos coloniais (Foto: Reuters/Jason Cohn)

Em sua obra seminal Casa-Grande e Senzala (Global Editora, 2013), marco da sociologia, publicada originalmente em 1933, o antropólogo, sociólogo e ensaísta pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) oferece uma rica leitura da formação da sociedade brasileira, a partir de sua vivência no bairro de Apipucos, em Recife. Sua trajetória pessoal e intelectual está intimamente ligada à cidade e ao bairro onde viveu.

Sobre esta obra monumental, o poeta João Cabral de Melo Neto escreveu:

“Ninguém escreveu em português no brasileiro de sua língua: esse à vontade que é o da rede, dos alpendres, da alma mestiça, medindo sua prosa de sesta, ou prosa de quem se espreguiça”. (Museu de tudo. José Olympio, 1975).

E Carlos Drummond de Andrade arrematou:

“Velhos retratos; receitas de carurus e guisados; as tortas Ruas Direitas; os esplendores passados; a linha negra do leite coagulando-se em doçura; as rezas à luz do azeite; o sexo na cama escura; a casa-grande; a senzala; inda os remorsos mais vivos, tudo ressurge e me fala, grande Gilberto, em teus livros”. (Viola de bolso novamente encordoada. José Olympio, 1955).

Freyre descreve a casa-grande como um microcosmo do poder colonial patriarcal: fortaleza, escola, banco, capela e cemitério. O senhor de engenho, além de proprietário das terras, era proprietário de pessoas: escravos, parentes, filhos, esposa, amantes, padres e políticos. Era o senhor da vida e da morte. Esse domínio se estabeleceu incorporando tais elementos e não os excluindo. O padrão que se expressa na casa-grande é capaz de abrigar desde escravos até os filhos do patriarca e suas respectivas famílias (SOUZA, Jessé. A elite do atraso. Leya, 2017).

“A sífilis foi a doença por excelência das casas-grandes e das senzalas. O filho do senhor de engenho a contraía quase brincando entre negras e mulatas ao desvirginar-se precocemente aos doze ou aos treze anos”. (Casa-Grande e Senzala, p. 109).

Um dos aspectos relevantes para o tema que aprofundamos em nossas reflexões – a religião – é destacado por Gilberto Freyre, em seu clássico, ao apresentar a imposição da fé cristã católica durante o período colonial, não apenas como um elemento de crença espiritual, mas como uma ferramenta de controle social e cultural. Os colonizadores adotaram o catolicismo como a única religião admitida pela metrópole na colônia, impondo-a aos estrangeiros europeus, aos povos originários e aos africanos escravizados.

“O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza da raça. Durante todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades coloniais que fossem de fé ou religião católica. Para ser admitido como colono no Brasil no século XVI, a principal exigência era professar a religião católica: somente cristãos poderiam adquirir sesmarias. O português esquece raça e considera seu igual aquele que tem religião igual à que professa”. (Casa-Grande e Senzala, p. 91).

Os dominadores brancos portugueses usavam a religião para legitimar sua autoridade, moldando a moralidade e os costumes da sociedade colonial. A fé católica não era apenas espiritual. A capela doméstica simbolizava o poder do senhor de engenho sobre a moral e a fé dos que viviam sob o seu domínio. O rei de Portugal reinava no Brasil sem precisar governar, pois as famílias da casa-grande reproduziam a ordem moral e religiosa da metrópole.

A presença da capela doméstica, portanto, não era apenas decorativa: ela simbolizava a centralidade da fé católica na vida social e moral dos habitantes da propriedade. O senhor de engenho, além de proprietário de terras e pessoas, assumia o papel de guardião da fé, reproduzindo a ordem religiosa da metrópole. A fé católica era imposta como sinal de civilização, enquanto práticas religiosas afro-brasileiras e indígenas eram reprimidas. O sincretismo religioso era submetido a extrema vigilância.

“A casa-grande venceu, no Brasil, a Igreja [Católica] nos impulsos que essa a princípio manifestou para ser a dona da terra. Vencido o jesuíta, o senhor de engenho ficou dominando a colônia quase sozinho. O verdadeiro dono do Brasil. Mais do que os vice-reis e os bispos”. (Casa-Grande e Senzala, p. 38).

Herdeiros de tal herança religiosa, patriarcal e rural, vive-se no momento presente brasileiro uma espécie de transformação: uma mudança de mãos do mercado da fé, antes absoluta em posse da tradição católica, agora com grande parcela desse mercado religioso nas mãos de líderes protestantes conservadores neopentecostais, formados nas teologias do domínio e da prosperidade, ocupando espaços centrais na política nacional.

A aliança entre o bolsofascismo e tais setores conservadores religiosos é sinal evidente dessa metamorfose. Outrora a capela doméstica; agora, as infinitas igrejas e templos congregando pessoas em cultos neopentecostais e carismáticos; antes a imposição da fé católica, hoje a afirmação obediente às diretrizes do pastor e aos assim chamados valores da tradição; no passado, a supressão das religiões africanas e indígenas; no presente, a intolerância religiosa contra terreiros e cultos não cristãos.

Politicamente, a bancada cristã de tradição protestante tem se fortalecido vigorosamente nos últimos 20 anos, com sua presença no Congresso Nacional, direcionando a pauta dos costumes, da educação moral e da segurança, com retrocessos nos direitos civis.

Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 não apenas pela manipulação dos algoritmos das redes digitais (notadamente o WhatsApp, naquele período), mas com forte apoio de militares, ruralistas e pastores e clérigos conservadores, por meio de uma estratégia que o apresentava aos seus fiéis seguidores como alguém “escolhido por Deus” para combater o mal encarnado na esquerda política.

A narrativa bolsofascista alimenta continuamente a ideia de guerra espiritual, na qual o “mito Bolsonaro” é visto como uma missão divina de luta contra o comunismo, o aborto, a ideologia de gênero, apregoando o negacionismo científico (resistência à vacinação, ao uso de preservativos, ao aborto legal etc.), retrocessos em pautas de direitos civis (direitos da mulher, de indígenas, de pessoas LGBTQIA+) e retrocessos no campo da educação humana (censuras aos debates e produções de conteúdos sobre sexualidade, distribuição econômica e direitos humanos).

Tal influência religiosa conservadora assimilada pelo bolsofascismo está conectada a uma rede transnacional, como o evangelismo estadunidense trumpista, representado pelo Family Research Council e por Franklin Graham. Tais instituições apoiam financeiramente igrejas conservadoras brasileiras, visando alimentar a guerra cultural.

Por fim, compreende-se que a transição da capela da casa-grande rural do século XVI para os atuais templos protestantes neopentecostais e para a bancada evangélica no Congresso parece ser menos uma ruptura e mais uma adaptação aos novos tempos de base material capitalista neoliberal globalizada. Percebe-se, então, que a religião, longe de ser neutra, permanece como um dos pilares da dominação desde os tempos coloniais.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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