Seca: o inimigo silencioso que ameaça o planeta
Em um planeta coberto por oceanos, o bem mais precioso - a água doce - está desaparecendo rapidamente
Nos últimos 20 anos, a escassez hídrica aumentou em duração e intensidade. Metade da superfície terrestre já viveu ao menos um mês de seca extrema e, até 2050, três em cada quatro pessoas serão afetadas direta ou indiretamente. Da África à Europa, dos Estados Unidos até a Ásia, o fenômeno da escassez de água aumentou nos últimos 20 anos, tanto em duração quanto em intensidade. Estima-se que até 2050, 75% da humanidade - a começar pelos países menos desenvolvidos - sofrerá com a falta do “ouro azul”.
Nosso planeta é coberto em 71% da sua superfície por oceanos. Mas as reservas, sobretudo as de água doce, desse bem precioso e fundamental para a existência da vida, estão diminuindo constantemente, dando origem a um assassino silencioso capaz de mudar nossas vidas: a seca, responsável por crises alimentares, hídricas, energéticas e tragédias humanas.
Diversos estudos, reunidos no World Drought Atlas, Atlas Mundial da Seca, - um atlas que ajuda a compreender o avanço da falta de água - mostram que a ocorrência de secas no mundo dobrou nos últimos 120 anos. Hoje, metade da superfície terrestre já passou por ao menos um mês de seca extrema. E as projeções indicam que, até 2050, três em cada quatro pessoas no planeta serão direta ou indiretamente atingidas por esse fenômeno.
Três rostos da seca - Existem três tipos de seca:
- Meteorológica: menos chuva que o normal, precipitações abaixo da média.
- Agrícola: solo seco e improdutivo, quando a umidade do solo não é suficiente para as lavouras.
- Hidrológica: rios e aquíferos em queda, quando o nível das águas superficiais ou subterrâneas fica abaixo da média por um período prolongado.
Todos os três tipos de seca, no momento, são agravados pela crise climática, que altera padrões de chuva, aumenta o calor e acelera a evaporação. A conjunção desses fatores pode gerar crises severas, como a do leste africano entre 2020 e 2022, a pior em 40 anos. Ali, o aquecimento global tornou a seca cem vezes mais provável, segundo o World Weather Attribution. Fenômeno semelhante afetou a Amazônia no segundo semestre de 2023, provocando a pior seca desde o início dos registros.
Um mapa recente da UNCCD, Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação, mostra as regiões mais afetadas hoje. Na África Austral e no leste do continente - de Angola à Somália - falta água para beber, plantar e criar gado, com impacto até na produção de energia elétrica.
No Brasil e na Amazônia, bem como no Panamá, a seca dificulta a navegação fluvial, afeta o comércio e favorece incêndios. Na Europa, especialmente na Espanha e na Itália (como na Sicília), houve racionamento de água potável e rios - como o Reno - viram sua navegação comercial comprometida.
No Sudeste Asiático, do Vietnã à Indonésia, plantações tradicionais, como arrozais, sofrem com a escassez. No México e nos EUA - sobretudo no Texas e na Califórnia - a seca persiste há quase 20 anos, sendo considerada a pior dos últimos 1.200 anos. Na Califórnia, o prejuízo anual para a agricultura chega a US$ 1,1 bilhão.
No Chifre da África, 23 milhões de pessoas enfrentam fome extrema, muitas obrigadas a abandonar suas terras. Entre 1970 e 2019, as secas representaram apenas 6% dos desastres naturais, mas causaram 34% das mortes relacionadas, sobretudo por fome na África.
Os mais vulneráveis pagam o preço - Como sempre acontece com fenômenos intensificados pela crise climática, a seca não atinge de forma homogênea, mas torna-se letal sobretudo para os mais vulneráveis e aumenta as desigualdades sociais. Isso vale para países inteiros, como os menos desenvolvidos do Chifre da África, para a fauna e flora dos ecossistemas mais frágeis e, de modo geral, especialmente para mulheres, idosos e crianças. No leste da África, a seca é até responsável pelo aumento de casamentos forçados com menores de idade: eles dobraram nas quatro regiões dessa área, já que as famílias, para sobreviver, empurram sobretudo as filhas mais jovens a se casar em troca de um dote necessário para contribuir com as necessidades de famílias exaustas pela sede e pela impossibilidade de cultivar. “A seca não é apenas um evento meteorológico, mas pode representar uma emergência social, econômica e ambiental”, lembra Kelly Helm Smith, uma das autoras do Atlas Global sobre a Seca.
Atenção aos glaciares e aos data centers - Num mundo globalizado, onde as atuais políticas econômicas ainda não estão realmente enfrentando de frente as ações de mitigação necessárias para lidar com a crise climática, os cenários futuros relacionados à seca também se mostram dramáticos e com repercussões em cadeia em todo lugar. Quanto menos reduzirmos as emissões, mais caminharemos para um planeta escaldante: segundo o IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, num cenário de aquecimento de +4 °C, a frequência e a intensidade médias da seca poderão aumentar até sete vezes. Isso significa milhões de mortes e economias em colapso. Por isso, recomenda-se um esforço global para preservar o bem mais precioso - a água doce - que, além das ameaças já conhecidas, agora enfrenta um novo desafio: o uso de grandes quantidades de água necessárias para abastecer os data centers de inteligência artificial.
Estimativas da Universidade da Califórnia preveem que o consumo de água destinado aos data centers para IA poderá chegar a 6,6 bilhões de metros cúbicos em 2027, um valor equivalente a mais da metade do consumo anual de água do Reino Unido. Com ameaças desse porte, torna-se ainda mais importante preservar quem ainda guarda 70% das reservas de água doce da Terra: as geleiras e glaciares, nossos “bancos de água” que ajudam os territórios nos períodos de seca. O derretimento deles, antes muito mais lento e gradual, até agora ajudou a atenuar a redução de rios e lençóis freáticos, como é bem visível, por exemplo, nos Andes. Porém, nas últimas duas décadas, a taxa de derretimento das geleiras dobrou - significa que estamos perdendo os recursos de nossos “bancos azuis”, que garantem disponibilidade hídrica para todas as nossas atividades. Essa aceleração, segundo a Fundação Cima Research, é hoje agravada pela “seca de neve”, ou seja, acúmulos de neve extremamente baixos. Quem altera as variáveis de formação e persistência da cobertura de neve é sempre a crise climática - aquela contra a qual precisamos unir esforços de enfrentamento. Isso porque, como diz Ibrahim Thiaw, secretário da UNCCD, com o aquecimento global “a seca aumenta, infiltra-se e esgota os recursos. Não é mais uma ameaça distante e requer urgente cooperação global, pois, quando energia, comida e água acabam ao mesmo tempo, as sociedades começam a se desintegrar”. Não à toa a ONU alerta: a seca já não é uma ameaça distante, é uma emergência global.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: