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Dafne Ashton

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Se não há escuta, não há democracia

Ataques à ministra Marina Silva expõem o silenciamento estrutural contra mulheres no poder e ameaçam a própria noção de política democrática

Ministra Marina Silva, senador Marcos Rogério e o secretário-executivo do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), João Paulo Capobianco (Foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

Por uma perspectiva da psicanálise e da teoria política, este artigo reflete sobre o significado do silenciamento de vozes femininas no espaço público e institucional.

Hannah Arendt, filósofa que investigou a política como o espaço essencial da pluralidade, afirmava que o mundo comum só se constrói onde há escuta. A política, segundo ela, não é território de monólogos, mas da troca, da palavra que se transforma ao encontrar o outro. Quando, então, uma mulher negra, ministra de Estado e ambientalista, é sistematicamente interrompida e deslegitimada durante uma audiência no Senado, a afronta não se limita à sua figura. O ataque atinge, de forma mais profunda, a própria ideia de democracia.

Em 27 de fevereiro, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, foi alvo de ataques verbais durante uma sessão na Comissão de Infraestrutura do Senado. Ao tentar se defender de acusações que considerou ofensivas, teve seu microfone cortado várias vezes pelo senador Marcos Rogério (PL-RO), que a interrompeu, ironizou e ainda afirmou que ela deveria “se pôr no seu lugar”. Na sequência, o senador Plínio Valério (PSDB-AM) tentou dissociar gênero e cargo ao afirmar que “a mulher merece respeito e a ministra, não”.

Não se trata de uma ocorrência isolada. A cena se insere num padrão reiterado: o esforço simbólico de calar, humilhar e subjugar uma mulher que ocupa uma posição de poder e cuja trajetória é marcada pela resistência. A violência verbal e simbólica nesse episódio escancara uma cultura política ainda pautada pelo autoritarismo patriarcal, embora revestida pelo discurso institucional.

Na psicanálise, a escuta é central. Para Freud, ela é uma abertura ao inconsciente do outro. Jacques Lacan aprofunda essa noção, afirmando que escutar é mais do que ouvir sons ou palavras — é deixar-se atravessar pelo discurso do outro. Escutar, nesse sentido, é reconhecer o sujeito em sua singularidade, inclusive naquilo que provoca desconforto. A recusa da escuta é, portanto, uma recusa à alteridade. E foi exatamente isso que se viu no episódio envolvendo Marina Silva: a rejeição violenta de uma mulher que não aceita ocupar o lugar simbólico de submissão que lhe é imposto por parte dos senadores.

Lacan oferece ainda outro conceito crucial: o gozo. No ato de silenciar uma mulher, opera-se uma forma perversa de gozo, que se realiza na tentativa de aniquilar simbolicamente aquele que transgride normas tácitas. Quando Plínio Valério profere que gostaria de “enforcar” Marina ou que “a ministra não merece respeito”, essas falas não se configuram como simples críticas. Elas revelam o retorno de uma pulsão de morte disfarçada de embate político.

A resposta de Marina Silva aos ataques evidencia essa dinâmica. “Só os psicopatas são capazes de fazer isso”, afirmou a ministra, denunciando o fechamento absoluto à escuta e a operação discursiva que a reduz a um objeto de desumanização.

No campo político, escutar significa suportar o que o outro tem de mais difícil de aceitar. Significa admitir que há posições que desafiam, tensionam e desestabilizam certezas. Quando a escuta é interditada, instala-se a violência: um discurso que se alimenta do apagamento do outro. O caso de Marina Silva evidencia mais do que uma questão de gênero ou partidarismo. Expõe a fragilidade de uma democracia que se diz plural, mas que se recusa a ouvir quem não se submete.

Como disse a própria ministra: “Não é pelo fato de eu ser mulher que vou deixar as pessoas atribuírem a mim coisas que eu não disse”. Sua afirmação é o grito de tantas outras que também se recusam a ocupar o lugar da submissão. A escuta, como lembrava Lacan, é condição de possibilidade para o sujeito. E, quando transposta ao campo político, é também o que mantém viva a possibilidade de reinvenção democrática.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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