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Marcelo M. Nogueira

Ggraduado em Direito e mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ. Pesquisador em direitos humanos (UFRJ e PUC-RS), foi coordenador executivo da ABJD e atua como colaborador da Comissão de Estudos e Combate ao Lawfare da OAB-RJ)

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Quando o Congresso Tenta Subverter a Dosimetria do STF no Julgamento do 8 de Janeiro

A democracia não se sustenta com anistias seletivas, mas com a responsabilização de todos

Hugo Motta (Foto: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados)

Em um país que ainda busca cicatrizar as feridas deixadas pela tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) cumpriu, em setembro de 2025 – com julgamento iniciado em 9 de setembro e concluído em 11 de setembro –, seu papel constitucional ao condenar os oito principais articuladores do "Núcleo Crucial" desse atentado à democracia – Jair Bolsonaro, Alexandre Ramagem, Almir Garnier Santos, Anderson Torres, Augusto Heleno, Walter Braga Netto, Paulo Sérgio Nogueira e Mauro Cid. As sentenças, proferidas pela Primeira Turma da Corte, aplicaram o rigor da dosimetria da pena conforme o Código Penal (CP) e a Constituição Federal de 1988 (CF), reconhecendo crimes graves como tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP), organização criminosa armada e dano qualificado. No entanto, em uma manobra que beira o surreal, parlamentares bolsonaristas na Câmara dos Deputados agora propõem um Projeto de Lei (PL 2.162/2023, originalmente conhecido como "PL da Anistia" e rebatizado como "PL da Dosimetria") que poderá interferir em decisões judiciais já prolatadas, dependendo do teor final do texto aprovado. Essa iniciativa, que teve regime de urgência aprovado em 17 de setembro de 2025 para acelerar sua tramitação, representa não apenas uma violação flagrante à separação dos Poderes – cláusula pétrea imutável de nossa Constituição –, mas um ataque direto à independência do Judiciário e à essência do Estado de Direito.

A dosimetria da pena, prevista no art. 68 do Código Penal (CP), é um mecanismo técnico-jurídico trifásico projetado para garantir a individualização da sanção penal, adaptando-a às circunstâncias concretas do crime e do agente. Na primeira fase, o juiz fixa a pena-base com base nas oito circunstâncias judiciais do art. 59 do CP (culpabilidade, antecedentes, conduta social, etc.); na segunda, aplica agravantes e atenuantes legais (arts. 61, 62, 65 e 66); e, na terceira, incorpora causas de aumento ou diminuição específicas do tipo penal. Esse processo, reformado pela Lei 7.209/1984 para limitar o arbítrio e promover proporcionalidade, é de exclusividade absoluta do magistrado sentenciante – no caso, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), como guardiões da Constituição (art. 102, CF). Qualquer revisão das penas impostas, dentro do devido processo legal, é prerrogativa exclusiva da defesa por meio de recursos judiciais cabíveis, como embargos de declaração ou agravos, apresentados no âmbito do próprio STF, respeitando a autonomia do Judiciário e o princípio do contraditório (art. 5º, LV, CF). Tentativas de interferência por outros Poderes, como as propostas no Legislativo, configuram não apenas um equívoco jurídico, mas uma manobra inconstitucional maculada pela conveniência política de parlamentares aliados aos responsáveis pelos atos golpistas de 8 de janeiro.

O que os articuladores bolsonaristas propõem no Projeto de Lei (PL) 2.162/2023, em tramitação na Câmara, não é uma reforma neutra, mas uma intervenção legislativa que busca reduzir penas em processos judiciais em curso ou já prolatados no STF, como as condenações por atos golpistas. O relator, deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), admitiu, em declarações recentes, que o texto poderá beneficiar "todos, inclusive Bolsonaro", ao propor alterações em critérios de cálculo que retroativamente atenuem condenações por atos golpistas – desde que o texto final seja aprovado nessa linha. Tal pretensão, embora se apresente como uma lei penal mais benéfica (cuja retroatividade é permitida pelo art. 5º, XL, da CF), ignora os limites do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa e pode configurar uma anistia velada se aplicada de forma seletiva a crimes políticos, o que seria inconstitucional por violar a proibição de perdão geral a atentados contra a ordem constitucional (art. 5º, XLIII, CF, que torna insuscetíveis de graça ou anistia os crimes hediondos e equiparados, categoria em que se enquadram os delitos contra a democracia).

Essa interferência não é mera discordância política; é uma usurpação de competências que fere a essência da separação dos Poderes (art. 2º, CF), cláusula pétrea que garante a independência e harmonia entre Legislativo, Executivo e Judiciário. A revisão de decisões judiciais, como as penas impostas pelo STF, compete exclusivamente às partes legítimas – notadamente a defesa dos réus – por meio de recursos previstos no ordenamento processual penal, e nunca a parlamentares movidos por interesses políticos alinhados aos condenados. O STF, como corte suprema, detém a palavra final sobre a aplicação da lei penal (art. 102, I, 'a', CF), e qualquer lei que pretenda ditar rumos a sentenças específicas seria declarada inconstitucional por controle de constitucionalidade difuso ou concentrado – especialmente se afetar penas acessórias, como perda de mandato ou patente militar. Ministros da Corte, como Alexandre de Moraes, já sinalizaram publicamente que veem nessa proposta um "retrocesso", rechaçando anistia ampla aos crimes contra o Estado Democrático de Direito como inconstitucional, embora aceitem discutir reduções gerais de penas por dosimetria em abstrato. Embora as decisões da Primeira Turma ainda sejam passíveis de recurso interno no STF, o que não as torna transitadas em julgado, a tentativa de interferência legislativa sobre processos em andamento agrava ainda mais a violação, pois compromete a serenidade do julgamento, a autonomia judicial e a própria credibilidade das instituições democráticas.

A essência dessa manobra reside na inobservância da separação dos Poderes, erigida como cláusula pétrea pelo art. 60, § 4º, IV, da CF – um limite intransponível a emendas constitucionais, inspirado no pensamento de Montesquieu e na tradição republicana brasileira desde 1891. Essa cláusula não é um formalismo vazio: ela preserva a democracia ao evitar concentrações de poder que levem a abusos, como o que se viu em 8 de janeiro, quando forças golpistas tentaram subverter a vontade popular expressa nas urnas. Parlamentares bolsonaristas, ávidos por uma "vitória simbólica" após as condenações, articulam a aprovação acelerada do PL, contando com folga de votos na Câmara graças ao regime de urgência. Essa pressa revela o viés político: não se trata de aprimorar o sistema penal para todos os brasileiros, mas de blindar aliados condenados por conspiração contra o Estado Democrático de Direito. A base governista, corretamente, denuncia a iniciativa como uma "afronta ao STF", enquanto protestos em capitais como São Paulo e Brasília ecoam o repúdio popular a qualquer perdão aos golpistas. O que esses deputados esquecem é que o Legislativo legisla em abstrato (art. 59, CF), definindo tipos penais e sanções gerais, mas não julga casos concretos – isso é prerrogativa exclusiva do Judiciário, sob pena de violação ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CF) e à inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF).

Historicamente, tentativas semelhantes de interferência legislativa em julgamentos do STF – como projetos de anistia ampla aos atos de 8 de janeiro – foram barradas pela Corte, que reafirmou sua autonomia em precedentes como a ADI 5.526 (sobre interferências em investigações). Aqui, o risco é ainda maior: ao manipular a dosimetria, o Congresso não só poderá comprometer processos em andamento, mas incentivar a impunidade seletiva, corroendo a confiança nas instituições. É uma receita para o caos, onde o perdedor eleitoral de 2022 se torna mártir fabricado por aliados parlamentares, perpetuando a narrativa de "perseguição" que alimentou o golpe frustrado.

A tentativa da Câmara de interferir na dosimetria imposta pelo STF aos articuladores do 8 de janeiro não é apenas absurda; é um assalto à arquitetura constitucional brasileira. Em vez de manobras partidárias, urge que o Congresso respeite a separação dos Poderes, priorizando pautas que fortaleçam a democracia, como a defesa dos direitos fundamentais, a promoção da equidade social, o combate à corrupção, a reforma tributária progressiva e o enfrentamento da crise climática. O STF, ao condenar os responsáveis pelo golpe, não agiu por vingança, mas por dever constitucional – preservar a República contra seus inimigos internos.

Que os parlamentares bolsonaristas, em nome da história e do futuro do Brasil, abandonem essa empreitada temerária. A cláusula pétrea da separação dos Poderes, inscrita no art. 60, § 4º, IV, da Constituição, é inegociável – pilar intocável da liberdade e da ordem democrática. Qualquer tentativa de subvertê-la por meio de manobras legislativas não conduz à justiça, mas ao abismo do caos disfarçado de política. A sociedade brasileira, atenta e mobilizada, rejeitará com veemência qualquer tentativa do Legislativo de ceder ao revanchismo de uma minoria extremista. A democracia não se sustenta com anistias seletivas ou perdões aos que atentam contra o Estado Democrático de Direito, mas com a aplicação rigorosa e imparcial da lei, garantindo a responsabilização de todos, sem distinção.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.