Para quem "vale tudo"?
Não é o povo brasileiro que é capaz de tudo por dinheiro. É a elite!
A música "Brasil", escrita por Cazuza, Nilo Romero e George Israel, foi lançada em 1988 no álbum "Ideologia". Um ícone "oitentista", a canção expressa uma "crítica" à sociedade brasileira, abordando temas como corrupção, desigualdade social e o famoso "jeitinho brasileiro". A letra é famosa por seu tom provocador e escrachado, que reflete um suposto descontentamento com a situação política e social do país na época.
Uma das versões mais conhecidas foi interpretada por Gal Costa, em ritmo de samba, e fez parte da trilha sonora da versão de 1988 novela "Vale Tudo", ampliando o alcance da canção.
A letra da canção é errática e não analisa uma questão central: quem são os verdadeiros responsáveis pela degradação moral e social do país?
A canção, apesar de sua virulência, é ingênua e padece de consciência política. Ao usar o pronome indefinido no verso "transformam o país inteiro num puteiro", ela dissolve a culpa na responsabilidade coletiva, sem nominar os reais agentes do caos: as elites econômicas e políticas, que historicamente se beneficiam da exploração, da degradação econômica da população, da corrupção e da manipulação da máquina pública.
"Brasil", de Cazuza, é uma manifestação equivocada que não enxerga com clareza a estrutura de poder. É um disparo sem alvo definido, uma "indignação" inócua e cega, pela falta de consciência de classe e de uma leitura mais profunda da luta por poder e riqueza.
Evitar nomear os culpados para não enfrentar represálias ou perder espaço na grande mídia e no mercado talvez também tenha sido uma estratégia comercial dos autores e do intérprete.
Quem sabe "Brasil", porém, não seja uma rebeldia de dentro da elite, que, apesar de sincera, também é limitada...
A realidade é que não é “todo mundo” que se corrompe e se vende; é a elite que sempre se vale de tudo para manter os seus privilégios.
O verso “transformam o país inteiro num puteiro / Porque assim se ganha mais dinheiro”, apaga o sujeito histórico responsável pela corrupção. Quem transforma o país em puteiro? O sujeito oculto permite uma interpretação ampla, diluída, genérica e dúbia. É o povo? São os políticos? São os empresários? É a "mídia"? A única resposta concreta, histórica e honesta é: são as elites brasileiras, que concentram a renda, detêm os meios de produção e controlam grande parte das estruturas estatais e midiáticas. São elas que, há séculos, moldam o país ao sabor de seus interesses econômicos e políticos.
Essa ausência de responsabilização na letra é uma forma de reprodução da ideologia dominante, onde o sistema é "criticado", mas os agentes do sistema são preservados e mantidos protegidos, ou no anonimato. É uma manifestação do “mal-estar” burguês, em que se percebe o colapso moral do país mas se evita reconhecer o lugar dos reais responsáveis e cúmplices no processo.
No verso “Brasil! Mostra tua cara / Quero ver quem paga / Pra gente ficar assim”, parece haver uma exigência de transparência. Mas novamente, falta a denúncia explícita e objetiva. Quem paga? A letra aponta o caos, denuncia o sintoma, mas oculta o agente do crime.
Ao deixar oculto quem transforma o país em um bordel de negociatas, clientelismo e corrupção, o discurso se esvazia, ou pior: parece culpar todos, indistintamente, reforçando a ideia de que "brasileiro é assim mesmo": um lugar-comum e vulgar da autoimagem nacional construída pelas elites para eximir-se de qualquer culpa.
Não é o povo brasileiro que é capaz de tudo por dinheiro. É a elite!
Desde a colônia, passando pelo Império e pela República Velha, até os dias atuais, quem dá golpes, difama adversários, compra consciências, sangra o Estado, constrange os pobres, suborna, corrompe, mata e conspira é a elite econômica e política do país, que se reinventa a cada ciclo histórico com novas máscaras: ora como liberal progressista, ora como conservadora moralista, ora como tecnocrata fazendária salvadora. É ela que sempre se beneficiou das riquezas do país, concentrando terras, recursos e poder, enquanto acusa o povo de ser "malandro", "acomodado", "corrupto por natureza", "ladrão" e "maconheiro".
O Brasil tem uma elite que nunca aceitou democracia de fato, a não ser quando esta pode ser totalmente manipulada pelos seus interesses. Quando há qualquer ameaça real de redistribuição de poder ou riqueza, essa elite não hesita: dá golpes institucionais, financia campanhas de desinformação, sabota governos e coopta instituições. E, quando necessário, impõe a violência bruta, como se viu na ditadura militar, na sabotagem institucional, ou no apoio ao golpismo e à ilegalidade, entre tantos outros momentos de indignação desonesta e seletiva.
O mau exemplo que vem de cima contamina, "naturaliza" a desonestidade e corrompe, mas isso não significa que a culpa esteja no povo. A origem do mal que assola a sociedade brasileira não está na base, mas em quem detém o poder econômico. A degradação moral interessa a quem concentra poder. Para quem é pobre, o que deve importar é a ética, a não ser que tenha sido alienado e corrompido.
A roubalheira no Brasil nunca foi um desvio de rota, mas sim parte do cardápio institucional servido em bandeja de prata pelos que se consideram os donos da festa, e que sempre viram no Estado a sua fonte inesgotável de recursos. Na ditadura, a patifaria usava farda e porrete; hoje, chega de roupa de grife, smartphone de luxo e perfil de coach patriótico de direita. Sabotagens, golpes e a institucionalização da canalhice são apenas modos elegantes de chamar o que sempre foi: estupro da democracia pela elite econômica, com aplauso de quem, mesmo só roendo o osso, se acha esperto demais.
O exemplo que escorre lá de cima vem sujo de caviar vencido, e contaminado com a peste da impunidade. Não é o povo que apodreceu. É o povo que está sob quarentena num sistema que só livra e promove os ricos; e este sistema tem um nome: capitalismo!
Cazuza não teve visão ou coragem para mostrar a cara dos verdadeiros responsáveis pelo "Vale Tudo", e eles gostaram e agradeceram, colocando a sua canção na abertura de uma novela que também culpa o povo brasileiro e não os seus algozes.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.