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José Augusto Ribeiro

Jornalista e escritor, autor entre outros livros de “A Era Vargas” (2001)

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País que entrega seu petróleo entrega também sua soberania

Ao entregarmos assim nosso petróleo, não é só a nossa soberania que estamos renunciando. Estamos desistindo da retomada de nosso desenvolvimento

País que entrega seu petróleo entrega também sua soberania

Há quase setenta anos, Getúlio Vargas fez na Bahia, durante a campanha presidencial de 1950, uma afirmação que hoje, 2019,  precisamos renovar e transmitir a todo o país, a todos os brasileiros, eleitores no ano passado de Bolsonaro ou Haddad, ou de qualquer outro candidato no primeiro turno, brasileiros de centro, direita ou esquerda, trabalhadores e empresários, empregados e empregadores, civis e militares, jovens e velhos de todas as origens – enfim ao país inteiro.

- País que entrega seu petróleo – disse Getúlio - entrega também sua soberania. 

Ele tinha autoridade para dizer isso. Logo depois da Revolução de 30, nos primeiros meses de seu primeiro governo, Getúlio acabou com a verdadeira farra de concessões petrolíferas que vinha da República Velha e decidiu que o petróleo deixaria de ser uma questão a cargo dos Estados e passaria a depender do governo federal. 

Não se sabia sequer se existia petróleo no Brasil e só em 1921 a Standard Oil, norte-americana, hoje Exxon, e a Shell, inglesa, assinaram cerca de 120 contratos de concessão – em média dez contratos por mês. Antes da Revolução de 30, o grande Estado do Amazonas tinha sido dividido em seis fatias, seis áreas de concessão, quatro das quais entregues a laranjas da futura Exxon e as outras duas a outras multinacionais.

Getúlio acabou com isso em 1931, subordinando ao governo federal as decisões sobre petróleo - e foi mais longe. Em 1934, ele decretou o Código de Minas, estabelecendo que a propriedade da terra, da superfície, não incluía a propriedade do sobsolo, e que as riquezas do subsolo, como o petróleo que nele fosse encontrado, seriam propriedade da Nação, pertenceriam ao povo brasileiro. Em 1938, Getúlio anulou, sem direito a qualquer indenização, todas as concessões feitas na República Velha. A partir desse momento já se podia dizer o que se proclamou depois: o petróleo é nosso!

Na campanha presidencial de 1950, Getúlio deixou claro que, no governo, adotaria para a questão do petróleo uma solução brasileira, voltada para o interesse nacional e comprometida com a soberania e o desenvolvimento do Brasil. Já em 1951, ele mandou ao Congresso o projeto da Petrobrás, que se transformou na Lei 2004, de 3 de outubro de 1953 e tornou ainda mais realidade a afirmação que mobilizara o Brasil: o petróleo é nosso!

No domingo, 1º de agosto de 1954, a Petrobrás, ainda em organização, assumiu o controle total das reservas de petróleo já encontradas ou ainda por encontrar em todo o Brasil e também da única refinaria então existente, a de Mataripe, na Bahia, e dos navios da frota nacional de petroleiros. Nesse momento, conversando com Lutero, seu filho mais velho, Getúlio lembrou a queda de seu primeiro governo, em 1945, seguida imediatamente pela autorização de entrada de capitais estrangeiros na indústria do refino, que é a fatia mais lucrativa da cadeia do petróleo e permite o controle dos preços pagos por seus consumidores finais.

Nessa conversa, Getúlio previu o que seria tentado no futuro contra ele e a Petrobrás – e disse a Lutero:

- Vai acontecer de novo...

O futuro não demorou. Três dias depois, com o atentado da rua Tonelero, começou a crise que Getúlio transformou de tragédia em seu maior triunfo. A oposição civil mobilizou os quartéis, porque no atentado morrera o major da Aeronáutica Rubens Vaz. A cúpula das Forças Armadas se dividiu e o grupo mais barulhento embarcou no clamor das ruas, produzido como sempre pela grande mídia, e somou-se à oposição civil, pedindo a renúncia ou a derrubada de Getúlio.

O jornalista Carlos Lacerda, ferido no atentado e maior voz da campanha golpista, falava toda noite, pedindo a derrubada de Getúlio, numa das duas únicas TVs existentes no Brasil, uma no Rio, que era a capital da República, e outra em São Paulo, já a capital econômica do país. Lacerda falava o tempo que queria, porque as TVs tinham sido postas à disposição do golpe por seu dono, Assis Chateaubriand, o Rei da Mídia na época, dono também de poderosos jornais e rádios em todos os Estado, e de uma ainda mais poderosa revista semanal de meio milhão de exemplares de tiragem. As TVs de Chateaubriand eram um verdadeiro monopólio privado que pautava quase toda a mídia impressa e radiofônica do país e era dona de um pensamento único na TV. Alguma semelhança com épocas posteriores?

No auge da campanha televisiva e radiofônica de Lacerda contra Getúlio, com um discurso de ódio e mentira que se antecipava à era das fake news, o subchefe do Gabinete Militar de Getúlio, General Mozart Dornelles, resolveu procurar Chateaubriand, a quem conhecia desde a Revolução de 30, ele combatente e Chateaubriand jornalista. 

O General perguntou por que tanto rancor, intolerância e veneno nos pronunciamentos de Lacerda. E se pelo menos seria possível evitar essa violência, manter a crítica em linguagem dura, mas civilizada? Chateaubriand interrompeu-o:

- Mozart, eu sou o maior admirador do Presidente, eu adoro o Presidente... Quando ele quiser, eu tiro o Carlos Lacerda da televisão e entrego a televisão a quem o Presidente quiser, para fazer a defesa do governo.

O General não teve tempo de dizer nem perguntar nada, porque Chateaubriand, fazendo de imediato o preço da chantagem, acrescentou:

- É só o Presidente desistir da Petrobrás que eu tiro o Lacerda da televisão.

Surpreendido e chocado, o General voltou para o Palácio do Catete, sede da Presidência da República, ainda no Rio, e aí encontrou-se com o Ministro da Justiça Tancredo Neves, seu cunhado. O General perguntou se devia comunicar a Getúlio que tinha feito essa visita e o resultado dela. Tancredo respondeu que Getúlio devia ser informado sem demora e disse:

- Mas nós dois sabemos, Mozart, que o Presidente morre, mas não desiste da Petrobrás.

Dias depois, Getúlio estava morto e o tiro que varou seu coração adiou por dez anos o golpe de 64 e manteve a Petrobrás viva e cada vez maior pelos até agora 65 anos seguintes.

O Vice Café Filho, que assumiu a Presidência no lugar de Getúlio, não teve coragem de mexer na Petrobrás e disse isso ao chefe de seu Gabinete Militar. General Juarez Távora, que fora o líder do minoritário grupo militar descrente nas possibilidades da Petrobrás e favorável à entrega do petróleo brasileiro às multinacionais; e que naquele agosto chefiara a corrente golpista nas Forças Armadas. Nos governos seguintes, com os Presidentes Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, a Petrobrás nada de mais grave teve a temer, apesar dos esforços dos partidários da entrada de capitais estrangeiros na exploração do petróleo brasileiro incrustados nos dois. No governo do Presidente João Goulart, Ministro do Trabalho e herdeiro político de Getúlio, a Petrobrás foi muito fortalecida.

Apesar do caráter inicial do regime militar instaurado em 1964 com a derrubada de João Goulart, regime que via comunismo em tudo que não fosse submissão incondicional aos interesses dos Estados Unidos, a Petrobrás, paradoxalmente, não foi ameaçada e até foi levada, no governo Geisel e no auge da crise internacional do petróleo desencadeada em 1973, ao desafio das águas profundas na Bacia de Campos, primeiro passo para nossa autossuficiência em petróleo e para a futura descoberta do Pré-Sal.  Para os militares no poder, o petróleo não era uma commodity, era estratégico e essencial à segurança e ao desenvolvimento do país.

Com a volta do poder civil, a Petrobrás correu riscos no governo Collor, que não teve tempo para agir contra ela. Em seguida, ela foi duramente mas ainda não mortalmente atingida no governo Fernando Henrique, com a entrega às multinacionais de áreas promissoras encontradas pela Petrobrás. Na era Lula, a descoberta do Pré-Sal em 2006 teve como consequência o restabelecimento parcial das garantias conferidas à Petrobrás pela Lei 2004, sua lei original, sancionada pelo sangue de Getúlio Vargas.

No governo Temer e agora no governo Bolsonaro, este presidido por um ex-militar que jurou nossa bandeira e nossa soberania, é que começou e avança velozmente o desmonte da Petrobrás. Agora não é só a entrega às multinacionais de áreas decobertas pela Petrobrás. É a venda em andamento de suas refinarias, que têm o poder de decidir que preço o consumidor final vai pagar pelo diesel, pela gasolina e, afetando perversamente as famílias mais pobres, pelo botijão de gás. É o desmantelamento, pela privatização, de partes vitais das operações da Petrobrás, como oleodutos, gasodutos e terminais.

Ao entregarmos assim nosso petróleo, não é só a nossa soberania que estamos renunciando. Estamos desistindo da retomada de nosso desenvolvimento, estamos aceitando essas taxas humilhantes de desemprego, estamos condenando à miséria milhões de brasileiros que começavam a sair dela, estamos oferecendo a nossas gerações jovens um futuro sem esperança e sem horizontes. Estamos, de fato, devolvendo o Brasil à condição de colônia. 

Para Getúlio Vargas, a primeira obrigação de qualquer governo é promover a justiça social. E não há justiça social sem desenvolvimento, nem desenvolvimento sem soberania. O desmonte da Petrobrás já avançou demais. Sem a Petrobrás não teremos nem soberania nem desenvolvimento e muito menos justiça social. 

O que todos temos de dizer neste momento cabe em pouquíssimas palavras: chega! o petróleo é nosso! 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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